Consciência histórica para quê?
Consciência histórica para quê?
por Luís Alfredo Galeni 25 de março de 2021
Uma sociedade que esquece o passado não consegue ver de onde veio, quais acontecimentos pretéritos lhe constituíram, o que lhe marcou. Um presente sem passado é um mundo sem história, um mundo sem história é um mundo doente
Um mundo sem história?
Um “mundo sem história?”¹,perguntou o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer em 1972. Observando a sociedade, ele notou o entusiasmo que temos em relação à ideia de progresso, o motor do pensamento científico. A excitação provocada pelos ideais de progresso contém a busca pela novidade, pela simples satisfação em ter o novo. Os seres humanos, encantados pelas novas tecnologias, são seduzidos por uma promessa futurista, o amanhã nos é prometido através de carros, celulares, computadores e eletrodomésticos. As “modernidades” criam a impressão de que o presente é levado ao futuro, ou dito de outro modo, o futuro é trazido ao presente.
A pandemia de Covid-19, iniciada em 2020, é uma das faces do entusiasmo científico. Por questões de saúde, esperamos a vacina com apreensão, confiamos na ciência para nos salvar. No campo político, uma das bandeiras levantadas pelo presidente Jair Bolsonaro, em sua campanha eleitoral de 2018, foi a promessa de tecnicidade de seus futuros ministros – promessa que não se cumpriu.
A questão aqui não é questionar a validade da ciência, é fato que ela melhora em muitos aspectos nossa vida. O problema está em como a sociedade tem se relacionado e orientado sua vida: exclusivamente por um desejo científico de inovações. Em todos os casos citados, a ciência e a técnica se justificam como mestras de nossa existência, seja pelo desejo de consumo, pelo desejo de cura de doenças ou do controle da vida política por técnicos. É como se nada mais importasse, a não ser o que gira em torno da cientificidade e suas promessas – a fabricação um celular mais novo ou um novo medicamento.
É por isso que Gadamer se perguntou se nosso mundo não teria mais história. Ele incomodava-se com o esquecimento do passado causado pelo desejo do novo, pelo desejo de futuro – desejo perigoso, pois o futuro não é palpável, ainda não aconteceu e, por isso, não existe. Aqueles que estão mergulhados nas preocupações científicas só têm olhos para o futuro, e se esquecem ou abandonam o passado, ou seja, a história e assim não conseguem ver de onde vieram, quais acontecimentos pretéritos lhes constituíram. Um presente sem passado é um mundo sem história, um mundo sem história é um mundo doente. Para curar essa doença, precisamos de consciência histórica.
Consciência histórica, o remédio.
“Brasil, país do futuro”, escreveu Stefan Zweig em 1941, frase que virou jargão entusiasmado para muitos brasileiros. Ao mesmo tempo que soa agradável aos nossos ouvidos, a frase é perigosa. Diríamos que o Brasil é um país-promessa. Olhar somente o horizonte daquilo que ainda não aconteceu gera um sentimento de negação e desimportância em relação ao horizonte que já aconteceu. Dessa forma, negamos a nossa própria história – a escravidão negra atlântica, o genocídio indígena e as ditaduras são reduzidos a acontecimentos sem relevância ou impacto na atualidade, tratados com descaso ou esquecidos. Essa mentalidade produziu um país que não se identifica com o passado, não vive o presente e ainda não é o que promete ser. Viver o presente é ter consciência de que há um passado que nos moldou, com suas tragédias e conquistas, e que o mundo que vamos deixar é construído no agora. Sem a história não conseguimos existir inteiramente.
O risco de se projetar sempre no futuro é a imobilização da sociedade, que deixou de agir. Precisamos olhar para o mundo que veio antes do nosso, entendê-lo para entendermo-nos no agora. É um procedimento semelhante ao traçado em uma terapia: o paciente faz um retrospecto, busca acontecimentos de sua infância, adolescência, do início da vida adulta, reflete sobre tudo que pensou e busca respostas para suas dores e ações para sua cura. Através da análise, a pessoa adquire uma consciência de si mesma. Em uma nação, o olhar retrospectivo do passado tem o mesmo sentido, garantindo a esse país uma consciência de si, que Gadamer chamava de wirkungsgeschichtlichen Bewußtseins², algo como consciência dos efeitos da história e que aqui nomeio apenas de consciência histórica.
Consciência histórica não é simplesmente saber datas e fatos pretéritos. Alguém pode saber o dia exato de um acontecimento marcante em sua vida, mas não entender como aquilo o afeta. Tal como um colecionador, posso “colecionar” uma infinidade de fatos históricos, saber datas e nomes de grandes guerras, lembrar de todos os imperadores romanos, mas não saber o que esse apanhado de informações significa. Posso me lembrar o dia, a hora e o que eu estava fazendo quando meus pais me avisaram que iriam se divorciar, mas não consigo entender como aquilo me afetou. O que adianta saber todas as batalhas travadas por Alexandre, o Grande, se não consigo interpretar (e sentir) o impacto e as transformações trazidas por sua campanha militar rumo ao Oriente, como o florescer do helenismo e seu papel na história ocidental.
Segundo Gadamer, a consciência histórica faz parte de um ato natural a todos os seres humanos: o de interpretar. Desde pequenos, interpretamos o mundo. Alguns mais sensíveis ou mais bem treinados, conforme crescem – e são impelidos a refletir –, notam que o mundo é plural, que existiram pessoas antes de nós, que nós possuímos uma certa cultura e tradição que não construímos, mas herdamos. Cada geração passa adiante a tradição um pouco diferente de como a herdou e, por conseguinte, nesse processo de heranças, experimentamos o tempo. Conversar com alguém mais velho, por exemplo é conversar com o passado, é experimentar um pedacinho desse passado que sobreviveu.
Em suma, a consciência histórica é um ato de interpretação e compreensão em que a pessoa olha para o passado e para os indivíduos que nele viveram, tentando entender seu mundo, sua sociedade, sua cultura, sua tradição, sua própria vida, não se esquecendo de que ela é fruto desse passado, que é histórico e temporal.
Alguém estimulado a refletir sobre o passado e suas tradições tem mais chances de desenvolver um pensamento crítico. Voltando ao exemplo de Alexandre, o Grande, um historiador erudito pode compreender as transformações que a expansão militar da Macedônia trouxe, mas seu olhar está carregado de frieza e desprezo por todos aqueles que morreram no processo. A ele falta o entendimento simples de que, ao parir um novo mundo, Alexandre sacrificou milhares de vidas. Esse historiador pode ter compaixão pelas pessoas de seu tempo, mas a ele falta o compadecimento pela vida humana passada. A ele falta o “sentir”. Além de mal historiador, lhe falta consciência histórica.
Almeida Garrett (1799-1854) não foi historiador, mas tinha uma consciência histórica muito aguçada. Ao viajar pelo interior de Portugal, chegou cheio de alegria a uma charneca entre a cidade de Cartaxo e Santarém, local histórico por onde D. Pedro IV passou com suas tropas em revista antes de enfrentar o seu irmão, D. Miguel, pelo trono de Portugal. Garrett reflete: “Então caí completamente em mim, e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta geração, Deus sabe para quê – Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros […] Toda guerra civil é triste. E é difícil dizer para quem mais triste, se para o vencedor ou para o vencido”³. Sua alegria some e ele continua refletindo sobre a guerra, sobre os prejuízos humanos dessa guerra, questiona-se se há realmente ganhos. Conclui seus pensamentos sobre sentir o passado e seus efeitos dizendo: “Estive ali, e senti bater-me o coração com essas recordações, com essas memórias dos grandes feitos e gentilezas que ali se obraram. Por que será que aqui não sinto senão tristeza? Porque lutas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e porque…”⁴.
Diante do fato de a escravidão negra africana ter existido no Brasil por 388 anos, um brasileiro consciente da história tem mais chances de refletir como ela marcou profundamente a sociedade, em especial pelas políticas que excluíram a participação dos negros da vida política e social, mesmo depois da abolição de 1888. Em último caso, esse cidadão, seja de qual etnia for, aumentará suas chances de se comportar de maneira mais humana diante do outro.
Em defesa da consciência histórica
Em A Viagem do Elefante, José Saramago escreveu: “têm razão os cépticos quando afirmam que a história da humanidade é uma interminável sucessão de ocasiões perdidas”⁵.Gosto de pensar que essas ocasiões são oportunidades éticas, breves que sejam, da realização dos seres humanos em se compreenderem consigo mesmos e com os seres humanos do passado. E não há razão para crermos que essas ocasiões que se perderam dizem respeito apenas ao fracasso dos “grandes nomes” ou das “grandes nações”. Os fracassos também dizem respeito a toda gente “miúda”, que nunca conseguiu ser mais do que matéria anedótica, quantitativa ou política dos estudos acadêmicos, perdendo sua alteridade e, consequentemente, sua compreensibilidade. Por isso, sem receio, afirmamos que a história, muitas vezes, é um amontoado de registros dos desencontros e das incompreensibilidades dos seres humanos de uns para com os outros.
Em sala de aula, o grande desafio que encontro, como professor, é fazer meus alunos compreenderem que são pequenos pontos no tempo histórico, personagens que se constroem inseridos em uma história em construção, que é mais do que as letras e imagens frias da apostila. Esse não é um desafio apenas pedagógico, restrito às salas de aulas, ele é um desafio que diz respeito a toda sociedade. Cabe-nos mostrar que o passado é um outro, semelhante a um estrangeiro, um estrangeiro-temporal. O outro não é só o nosso contemporâneo, mas também a vida humana ao longo da história e a própria história.
Um país que deseja construir verdadeiramente seu futuro, precisa antes saber de onde veio, quais são seus problemas fundadores e persistentes, quem foram os privilegiados, os esquecidos ao longo de sua trajetória e no que isso impacta o presente. É preciso entender que esse passado não está morto como pensamos – ainda há fantasmas a nos assombrar. A consciência histórica exorciza esses fantasmas, ou melhor, apazigua-os. Ela repercute no comportamento e vivência em sociedade. Os exemplos que temos de sua falta são, muitas vezes, não um descuido, mas um projeto político.
Por essa razão precisamos repensar o ensino da própria disciplina história. Precisamos torná-la menos conteudista, sem excessos de nomes e fatos para serem decorados, devemos aproximá-la de outras áreas do saber. Podemos trabalhar os conteúdos escolares através de HQ’s, como explicar a Guerra Fria mostrando aos alunos a famosa narrativa de A foice e o martelo, história alternativa da DC em que o Superman foi criado na União Soviética em vez dos Estados Unidos; ou então explicar a Revolução Russa e o stalinismo com a leitura de Revolução dos bichos de George Orwell (1903-1950), ou até mesmo a adaptação cinematográfica de 1954, dirigido por John Halas e Joy Batchelor. Há ainda o uso de narrativas históricas através de músicas, que são sempre bem-vindas, como a reflexão do massacre indígena nos Estados Unidos explicada pela canção Run to the hills da banda inglesa Iron Maiden. Esses são alguns poucos exemplos de formas narrativas que ajudam na melhor compreensão do passado – além de darem forma e vida aos indivíduos que viveram e morreram. Através de elementos da ficção, homens e mulheres do pretérito, ganham contornos mais humanos. Isso ajudará a formar toda uma geração que pensa historicamente, que se habituou a falar sobre a história, a vivê-la, mesmo que brevemente através de narrativas “ficcionais”.
Consciência histórica para quê?
Antoine Compagnon, ao responder à pergunta literatura para quê?, afirmou que devemos aprender literatura pois ela nos transmite experiências dos outros que estão distantes de nós no espaço e no tempo, tornando-nos sensíveis à diversidade dos outros⁶. Podemos dizer o mesmo da consciência histórica para quê? Ela nos ajuda a experimentar um mundo diferente do nosso ao mesmo tempo que nos faz refletir sobre nossa forma de pensar e agir.
“Um mundo sem história”, talvez ainda não, embora caminhemos para um. Mas, como disse Gadamer em uma entrevista na TV, kein Mensch kann wirklich leben, wenn nicht noch ein Funken von Hoffnung in ihm ist (nenhuma pessoa pode realmente viver, se não há mais nela nenhuma faísca de esperança). Tenho a esperança de que a consciência histórica nos ajudará a construir um mundo mais humano, mais sensível e mais crítico, e assim, um mundo com história.
Luís Alfredo Galeni é mestre em estudos da literatura e professor de História.
¹GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Giachini. Vozes: Petrópolis, 2011. p. 334.
²GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr & Siebeck, 1975, p. 347.
³GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Cotia: Ateliê Editorial, 2012. p. 105.
⁴GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Cotia: Ateliê Editorial, 2012. p. 106.
⁵SARAMAGO, José. A viagem do elefante. Companhia das Letras: São Paulo. 2006, p. 120.
⁶COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê. Trad. Laura Taddei Brandini. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2009. p. 47.