Construir uma pedagogia antifascista

Construir uma pedagogia antifascista

Pistas para construir uma pedagogia antifascista

Lógicas neoliberais corroem a Educação, impõem desalento e destroem a perspicácia de renovar as perguntas libertárias. Resultado: avanço da agenda conservadora. Freá-la requer mais diálogo entre gerações, dando voz aos estudantes

Por  -  Publicado 09/06/2022 
Como se me lembrasse que devo dialogar com invisíveis rios e tudo em meu redor podem ser paredes onde eu nego a tentação do desalento (Mia Couto).

 

Ao longo dos últimos anos, no Brasil, assistimos a uma intensificação da agenda neoconservadora em nossas políticas educacionais. Quando discutíamos, há quase uma década, sobre como enfrentar os movimentos da Escola sem Partido ou mesmo os denunciadores da nomeada ideologia de gênero não tínhamos efetiva clareza da direção que estávamos tomando. Uma literatura crítica bastante significativa nos auxiliou a descrever e analisar os traços neoconservadores que se materializavam nos currículos estaduais e municipais, particularmente no cenário pouco afeito ao diálogo que caracterizou a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No final do último mês, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do projeto de lei que autoriza o ensino domiciliar (homeschooling) em nosso país. Talvez os últimos anos nos retiraram a capacidade de espanto; mas, ainda me deixa desconcertado pensar que estamos ficando com poucas respostas, ou – pior que isso – estamos perdendo a capacidade de realizar diagnósticos mais perspicazes e de renovar nossas perguntas. Para tentar compreender a este cenário, ensaiando algumas hipóteses, vou compartilhar com nossos leitores e leitoras algumas perspectivas.

Primeiramente, precisamos considerar que as relações entre educação e democracia, sempre frágeis e precárias, ingressaram em um processo de erosão (como explicou o professor português Manuel Barbosa). Esta situação se deve a um conjunto de fatores; mas, valeria a pena mencionar as décadas de neoliberalização da educação – que a reduziram a métricas de desempenho e a pressão por inovação – e a despolitização dos modelos de organização das atividades escolares. Empobrecemos o processo democrático nas escolas reduzindo-os a processos de escolha de representantes, comissões e documentos institucionais. Certamente que tais procedimentos são fundamentais; todavia, foram conduzidos como um mero formalismo ou assumidos no interior de uma retórica representacional. Os processos democráticos ficaram mais difíceis de serem engendrados em um cenário em que a própria representação política ingressou em uma crise bastante aguda. Wendy Brown e muitos outros pesquisadores no campo da política estavam nos alertando que a democracia, em si mesma, não apresentava mecanismos próprios para sua renovação. Democracias vibrantes exigem modelos educativos mais abertos e plurais.

Outro aspecto que merece destaque é que as políticas progressistas, no Brasil, abdicaram do diálogo com as futuras gerações e das possibilidades pedagógicas em torno da valorização da voz dos estudantes. Ocorreu uma desconexão política entre as práticas educacionais e as demandas estudantis em torno da autonomia ou do protagonismo. Gestão democrática, educação integral, educação profissional ou mesmo o enfrentamento das desigualdades e da crise climática foram questões deliberadas em termos políticos desprovidos de estratégias dinâmicas de participação. Quando leio autores e autoras da pedagogia crítica, como Michael Fielding – por exemplo, reconheço a importância da educação como elemento central para a criação e a renovação da democracia; todavia, isso ocorre em uma perspectiva de reciprocidade profunda. Isto é, as formas mais elaboradas de participação ou de valorização da voz dos estudantes ancoram-se na aprendizagem intergeracional, em que compromisso e responsabilidades compartilhados fortalecem uma agenda de vida em comum.

Se, por um lado, não conseguimos redirecionar nossas agendas progressistas para novas conexões entre escola e democracia – por meio de uma desejável autocrítica -; por outro, também não percebemos os efetivos riscos advindos do fortalecimento da agenda neoconservadora. Neste âmbito, recomendo a leitura do livro Pedagogía Antifascista, escrito pelo colega espanhol Enrique Díez-Gutiérrez e publicado pela Octaedro Editorial, há poucas semanas. De acordo com o autor, precisamos reconhecer que não estamos experimentando, atualmente, um mero retorno ao nazismo ou ao fascismo pelas mãos da ultradireita. As práticas autoritárias, violentas e retrógradas, emergentes no contemporâneo, “mesclam neoliberalismo, neoconservadorismo, nacionalismo primário, racismo e xenofobia, desprezo aos pobres e mulheres e islamofobia”. O mais problemático, como explica Díez-Gutiérrez, é que se trata de “um entorno social cuidadosamente planejado para desalentar a mobilização e a solidariedade coletiva”. Em termos educacionais, tais pedagogias misturam individualismo com liberdade, articulam medo de doutrinação com currículos padronizados e disfarçam a segregação com a excelência.

Porém, a segunda parte do livro nos oferece um inventário, bastante generoso, de tradições e correntes de pensamento crítico que nos permitem educar diante das atuais formas de neofascismo. Pedagogia crítica, pedagogia em valores, pedagogia da memória, pedagogia feminista, pedagogia do apoio mútuo, pedagogia inclusiva, pedagogia digital crítica, pedagogia lenta, pedagogia decolonial, pedagogia intercultural e antirracista, dentre outras, são revisadas em suas possibilidades de enfrentamento – crítico e criativo – ao atual jogo de relações. Díez-Gutiérrez, com riqueza de detalhes, auxilia-nos a descrever a agenda neofascista em educação e favorece novas insurgências em nosso pensamento e em nossa compreensão das práticas educativas. Para finalizar este pequeno texto, tenho defendido que precisamos aproveitar as movimentações políticas deste ano, no Brasil, para reconstruir nossos debates sobre os propósitos educacionais. É momento de renovar nossas perguntas e redesenhar nossos agenciamentos democráticos para a participação de nossos estudantes. Há que se reinventar uma atitude intelectual que, nas belas palavras de Mia Couto que nos servem de epígrafe, nos levem a negar a tentação do desalento!


Referências:

DIEZ-GUTIERREZ, Enrique. Pedagogía antifascista: construir una pedagogía inclusiva, democrática y del bien común frente al auge del fascismo y la xenofobia. Barcelona: Octaedro, 2022.

BARBOSA, Manuel Gonçalves. Educação e democracia: do risco de desarticulação a uma recomposição crítica. Cadernos de Pesquisa, v. 50, n. 177, p. 759-773, 2020.

FIELDING, Michael. Democracia radical y la voz del alumnado en escuelas de secundaria. Voces de la Educación, s/n., p. 28-42, 2018.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Por uma agenda curricular democrática com foco na inovação educativa para o Brasil. Educação em Revista, v. 37, p. 1-16, 2021. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/354878446_POR_UMA_AGENDA_CURRICULAR_DEMOCRATICA_COM
_FOCO_NA_INOVACAO_EDUCATIVA_PARA_O_BRASIL

 

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