“Contágio”: o filme de ficção
“Contágio”: o filme de ficção que parece um documentário
por Ana Carolina da Costa e Fonseca
Vivemos uma situação muito difícil, inimaginável para a maioria das pessoas. Isolamento social se faz necessário devido a uma pandemia global. “Contágio” (2011), de Steven Soderbergh, é um filme que, visto no presente, parece estranhamente familiar: um vírus transmitido de um morcego para um porco numa cidade do interior da China acaba contaminando uma mulher norte americana, que fez vários voos até chegar em casa nos Estados Unidos. Ao longo do trajeto, passou por diferentes lugares, contaminou muitas pessoas que rapidamente contaminaram outras tantas e, em poucos dias, uma epidemia global de um vírus altamente contagioso e letal se espalhava, deixando um rastro mortes e caos.
Muitas vezes já foi dito que o cinema, ao contar histórias, nos possibilita pensar sobre nossa realidade. No caso de “Contágio”, Soderbergh parece ter levado tal possibilidade bem a sério. Quando pensamos sobre as questões de ética postas em cena, percebemos o quanto o filme pode nos fazer refletir a respeito da situação que vivemos. Há questões envolvendo saúde pública e tomada de decisão em caso de pandemia. Como deve atuar a Organização Mundial da Saúde? Como devem atuar governos federais e locais? Como devem ser distribuídos os recursos públicos existentes, que são sempre limitados? E quando lidamos com cada caso em particular, como deve ser o cuidado para com o paciente e para com seus familiares? Como dar notícias tristes? Como contar que a esposa de alguém morreu? E, ao fazer perguntas importantes para fins epidemiológicos, como lidar com a percepção do fato de que o marido sobrevivente foi traído pela esposa morta pouco depois de ser contaminada?
Enquanto muitos trabalham para cuidar dos que já estão doentes e evitar que outras pessoas sejam contaminadas, há os que desenvolvem pesquisas científicas para procurar um tratamento que cure os já infectados e uma vacina para evitar que os ainda não infectados venham a ser. As pesquisas científicas são desenvolvidas seguindo protocolos estabelecidos pela própria comunidade científica com vistas a respeitar aspectos éticos. Tal respeito, apesar de fundamental, toma tempo. Em caso de pandemia, quanto mais o tempo passa, mais pessoas morrem.
Uma das dificuldades está em encontrar um equilíbrio entre o desejo de salvar mais vidas e o respeito às regras estabelecidas pela própria comunidade de participantes do fazer científico. Evidentemente, a imagem que se costuma ter do cientista transgressor é a daquele indivíduo que, graças à sua “ousadia” e “coragem” descobriu a cura de alguma doença e salvou muitas vidas. Esta é uma visão romântica da ciência. Pense em quantos pesquisadores trabalham (enquanto eu escrevo este artigo e, ainda estarão trabalhando quando você, leitor, o ler). Certamente, são milhares de pesquisadores. Pouquíssimos serão aqueles que encontrarão, de fato, a cura ou a vacina. Isso de maneira alguma desqualifica o trabalho dos demais, apenas reforça o fato de que o comportamento ético ao longo de todo o processo de investigação científica é fundamental.
Assustadoramente, o valor atribuído por muitas pessoas a informações não distingue conhecimento validado cientificamente de fake news, por exemplo, em relação ao que pode ser considerado um medicamento eficaz. Influenciadores digitais se comunicam de modo mais acessível do que cientistas. Mesmo que enganosas, as respostas dos influenciadores digitais correspondem mais facilmente ao esperado e desejado pela maioria das pessoas. A ciência conhece suas dúvidas e está ciente de que mesmo o que “sabe” pode ser temporário. O desejo de certeza faz com que as pessoas prefiram acreditar em qualquer coisa, mesmo que falsa, ao invés de lidarem com a ausência de resposta para muitas das demandas sociais, como a cura de uma doença que está causando uma pandemia.
Há ainda o fantasma do isolamento social, por um lado, fundamental para controlar e impedir a transmissão do vírus, mas, por outro, colocando em evidência o sentimento de solidão, que decorre deste isolamento. Somos seres fundamentalmente gregários, o que explica nosso desejo por vida em comunidade. Ao mesmo tempo, nas últimas décadas, com o avanço dos recursos tecnológicos e da Internet, vivemos de modo cada vez mais solitário, apesar da sensação de estarmos conectados a mais e mais pessoas. Quando o isolamento social é imposto, percebemos que não sabemos lidar com a própria solidão, não sabemos mais como ocupar o próprio tempo, que se torna uma sucessão de horas agora longas porque sem tarefas obrigatórias.
O filme é uma inquietante descrição feita em 2011 do que acontece em 2020. Mas ele também pode ser visto como um alerta de como devemos nos conduzir no presente: racionalmente e conforme o que se conhece cientificamente. Ou seja, sem entrar em pânico, ciente de que é a ciência e não influenciadores sociais que devem ser ouvidos e seguidos, com a adoção de medidas de proteção, o que inclui isolamento social e higienização do próprio corpo e do que nos cerca, conforme recomendado por profissionais da saúde, que trabalham e colocam suas vidas em risco para salvar outras vidas… muitas vidas… tantas vidas quanto for possível. É difícil… muito! Mas precisamos aguentar! Então, fique em casa! Lave as mãos! E assista a bons filmes, como “Contágio”!
(*) Professora de Filosofia da UFCSPA, em isolamento social, lava as mãos muitas vezes por dia, dá banho em pacote de arroz, lê muitos livros, assiste filmes, e deseja que vocês estejam bem!