Contexto histórico da reforma EM

Contexto histórico da reforma EM

O contexto histórico da reforma do ensino médio

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Por DANIEL BRAZIL*

 

Ou a educação é para todos ou não é educação, mas mecanismo de perpetuação de desigualdades

 

Para entender as circunstâncias e o contexto histórico da Reforma do Ensino Médio, cuja implantação tem causado revolta e protestos em todo o país, é preciso recuar até o governo Lula, de 2002 a 2008.

O ex-metalúrgico instituiu uma política de Conselhos em várias áreas, onde reunia representantes de classe, especialistas, estudiosos e profissionais do ramo. O que nos interessa aqui é o Conselho Nacional de Educação, que ouviu centenas de profissionais da educação e apontou linhas de modernização do sistema educacional brasileiro. Em consonância com outras frentes de ação do governo, aprovou as cotas, raciais e para os estudantes advindos da escola pública. O governo petista também ampliou as Universidades federais e escolas técnicas, em todo o país, além de criar sistemas de financiamento para estudantes carentes e estimular bolsas científicas no exterior.

O resultado imediato foi a inclusão de uma grande parcela de jovens pobres no ensino superior. E parte da classe dominante, horrorizada, viu que a filha da empregada ocupava a vaga que historicamente era destinada a seu filhinho. Não há melhor ilustração deste quadro que o filme Que horas ela chega?, de Anna Muylaert (2014).

Após o golpe de 2016 assumiu Michel Temer, que desmontou todos os conselhos. As centenas de sugestões que estavam sendo compiladas e organizadas para uma verdadeira reforma do ensino médio, foram ignoradas ou deturpadas. Em poucos meses, foi formado um pequeno grupo de “especialistas” em educação que formularam as novas regras da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), implantada sem consulta aos principais interessados: estudantes, pais e professores. Presenciei a patética “consulta pública” realizada no Memorial da América Latina, em 8 de junho de 2018, com dezenas de “selecionados” pelo governo vindo de todo o Estado para dizerem “sim”. Felizmente o movimento social organizado, junto com estudantes e professores, impediu a farsa da consulta.

Mas, infelizmente, a chamada Reforma do Ensino Médio foi incrementada sob o desgoverno do miliciano, com os pitorescos episódios de ministros da Educação com currículo falso, processos na justiça, barras de ouro negociadas com pastores evangélicos e total desprezo pelas reivindicações dos profissionais de educação. Cortes de verbas, de bolsas, de vagas nas Universidades. O resultado é um desastre pedagógico, mas que faz parte de um projeto, como dizia o visionário Darcy Ribeiro.

E que projeto é esse, nunca explicitado, mas difusamente semeado? Primeiro: precarizar a escola pública, cortar verbas, sucatear equipamentos, deixar de fazer concursos públicos, até o ponto em que bradem “está um lixo, melhor privatizar!” E há grandes corporações internacionais interessadas nessa privatização, claro, além de muitos empresários tupiniquins. A Educação, juntamente com a Saúde, responde constitucionalmente pela maior fatia dos orçamentos municipais, estaduais e federal.

Segundo: eliminar matérias básicas do ensino médio, que caem em qualquer vestibular. Retire filosofia e sociologia, desidrate história e geografia, diminua carga horária de português e matemática. Pronto! Você terá jovens semi-alfabetizados, incapazes de entrar em uma Universidade pública, mas aptos a engrossar as fileiras do trabalho precário. É sempre bom lembrar que a Reforma do Ensino Médio veio acompanhada de uma “reforma trabalhista”, que retirou direitos e institucionalizou a informalidade.

Criaram os “itinerários”, sem preparar professores ou dar escolha aos alunos. Aí o infeliz tem, na sua escola pública em Xiririca da Serra ou numa grande capital, aulas de como cuidar de seu pet, ou de como fazer brigadeiro. E chamam isso, de forma cínica, de empreendedorismo! Aulas dadas, muitas vezes, por EAD (Ensino à Distância), porque não há professores na escola treinados para essas “especialidades”. E alguém está lucrando vendendo essas vídeo-aulas para a rede pública, não tenha dúvida.

Qual é o truque para que isso funcione? Escolas privadas não precisam seguir a reforma! Reforçam aulas de português, matemática, inglês, história, sociologia, etc., e adequam os tais itinerários às reais necessidades: informática, computação, análise de dados, linguagem audiovisual, etc. Para que o projeto se complete, empobreça a escola pública a ponto de não contar com esses recursos. Pronto! Novamente, em pleno século XXI, somente os privilegiados entrarão na Universidade pública, como no século XIX. Como diz o ex-deputado José Genoino, instituiu-se o apartheid no ensino brasileiro.

A Apeoesp, maior sindicato do país, que congrega os mais de 300 mil professores da rede oficial do estado de SP, tem denunciado a precarização do ensino desde 2017. A implantação de PEI (Programa de Educação Integral) com professores despreparados, eliminação de cursos noturnos e exclusão de alunos que trabalham; a maléfica criação de escolas cívico-militares, bico para oficiais da reserva darem aulas de “educação moral e cívica”, história, etc., sem concurso, por “notório saber”; a tentativa de impor uma “Escola sem partido” absolutamente persecutória e inimiga da liberdade de cátedra; tudo isso faz parte de um projeto, como dizia o sempre lúcido Darcy Ribeiro.

Em audiência pública realizada na Assembleia Legislativa no dia 16 de março de 2023, convocada pela presidenta da Apeoesp, professora Bebel, depoimentos de especialistas, professores e estudantes reforçaram, com dezenas de exemplos, o desastre implantado nas escolas públicas. No mesmo dia, estudantes realizaram um ato na avenida Paulista, com a palavra de ordem Revoga Já! Um bom resumo dos dois eventos pode ser visto aqui.

Vamos colocar um grão de sal nesse angu. É necessário reformar o ensino médio? Sim! Não podemos prosseguir como em meados do século XX, na base da lousa, giz e saliva. O mundo se transforma, o mercado de trabalho tenta se adequar, a comunicação hoje é instantânea e universal, novas ferramentas surgem e urge estabelecer outros parâmetros. Isso estava no horizonte do Conselho Nacional de Educação que foi desmontado pelo governo de Michel Temer.

Exigir a imediata revogação desta reforma do ensino médio (ou deforma, como dizem os estudantes) e instauração de um Conselho realmente democrático para trabalhar em regime de urgência novas diretrizes curriculares adequadas aos tempos em que vivemos é crucial. Já perdemos uma geração, e disso depende o futuro das próximas. Ou a educação é para todos ou não é educação, mas mecanismo de perpetuação de desigualdades.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

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