Contra direitos, versus pelos direitos
O Brasil que luta contra direitos versus o Brasil que luta pelos direitos: o caso do ensino domiciliar
O ensino domiciliar se alinha com as políticas de Estado mínimo e Estado zero
Matheus Gomes, Fernando Seffner e Mariângela Bairros (*)
Dentre as bandeiras e compromissos da campanha ultra conservadora de Bolsonaro, desde sempre constou a aprovação do ensino domiciliar ou homeschooling. O tema voltou à tona em fevereiro de 2021, quando a presidência da república entregou uma listagem de 34 propostas, consideradas prioritárias pelo governo, aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, recém eleitos. Ali constava o PL 2401/19, que regulamenta a educação domiciliar no Brasil, ao mesmo tempo que exige formalização da escolha dos pais junto ao Ministério da Educação. Dentre as 34 propostas ditas prioritárias, não há nenhuma outra que trate do campo educacional. Ou seja, ficaram de fora questões como infraestrutura de acesso à internet de qualidade a alunos da rede pública; aparelhamento das escolas para atender aos desafios do tempo de pandemia; diretrizes claras em relação aos protocolos sanitários para retomada das aulas presenciais; previsão de retorno da merenda escolar, mesmo em regime de aulas online, como medida de segurança alimentar; para ficar apenas nos desafios do contexto atual, e sem levar em conta demandas já antigas.
Que se diga de modo claro: o governo federal, e seus aliados nas casas legislativas, se esforçam por aprovar o ensino domiciliar, medida que, por um lado, pode beneficiar apenas uma parcela ínfima da população, aquela mais rica; e por outro lado desvia recursos humanos e materiais dos sistemas de ensino para atender a essa meia dúzia de privilegiados. Sem contar o fato de que a aprovação do ensino domiciliar atrai os grupos privados, que já se movimentam na produção de materiais pedagógicos, para os quais certamente vão solicitar subsídios governamentais, uma vez que a legislação, se aprovada, insere tal modalidade em nosso sistema educacional. Aprovar o ensino domiciliar não é conquistar um direito, é abrir a porta para que se diminua o aporte de recursos na educação pública. O ensino domiciliar não amplia liberdades. Pelo contrário, nos joga de volta ao antigo regime dos governos aristocráticos, anteriores à Revolução Francesa. Aqueles em que os ricos mantinham tutores para educar seus filhos, com isso usavam parte da estrutura de governo em benefício próprio, enquanto se desinteressavam do financiamento da educação para todos e todas. Embora possa não parecer a quem apenas lê os projetos de lei, a proposição de uma educação domiciliar é animada claramente por um espírito racista, classista e elitista. E se dirige especialmente ao controle das jovens mulheres, fazendo com que fiquem em casa.
No atual contexto, no Brasil, existe uma parcela dos políticos que se movimenta contra direitos. A história do Brasil é de lutas árduas de conquistas pela ampliação de direitos, mas não é o que acontece no atual governo. A agenda de campanha do governo Bolsonaro em relação à educação teve sempre uma pauta explícita de diminuição de direitos. Logo após a eleição destacou que implementaria a educação a distância, priorizou o escola sem partido que restringe a liberdade de ensinar, o ensino quase exclusivo de matemática e português na educação básica, a redução da política de cotas para ingresso nas universidades públicas e o resgate da disciplina de moral e cívica, conteúdo muito conhecido do período da ditadura militar. O ensino domiciliar é parte desta agenda conservadora, que tem no seu núcleo a retirada de direitos sociais, e o esvaziamento das políticas públicas que beneficiam amplas maiorias da população.
Outro ponto acerca do ensino domiciliar diz respeito à responsabilidade do ensinar. A responsabilidade pela educação básica e ensino superior é do Estado, não da família. O artigo 205 da Constituição Federal assegura que “Educação direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ao longo da educação básica, que vai dos 4 anos com o ingresso na Educação Infantil, atravessa todo o Ensino Fundamental e se conclui com o término do Ensino Médio, a parceria com a família é importante e central, Mas não é de responsabilidade dos pais a educação escolar. E os pais que não têm formação de professores para dar conta da educação de seus filhos? Vão contratar professores? Vão consumir materiais preparados sem levar em conta os diferentes contextos de um país tão diverso?
Esta agenda, e o debate implementado pelo presidente e parlamentares de sua base aliada, remonta ao Brasil Colônia, anterior à Constituição de 1824, do período imperial, que no artigo 179 já assegurava: XXXII. A Instrucção primária é gratuita a todos os Cidadãos. XXXIII. Collegios, e Universidades, onde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes. O ensino domiciliar é um retrocesso, sobretudo, por que aprofunda o fosso da desigualdade no Brasil, não promove a igualdade de direitos, e não permite uma formação científica adequada. Os filhos do ensino domiciliar são privados da vida social na escola, da pluralidade de ideias, do convívio com a diversidade da sociedade, do diálogo com as diferentes culturas juvenis. Temos aí claramente o crime de abandono intelectual, na medida que estes menores não podem sequer escolher estar em uma escola ou não, pois tal decisão será de seus pais.
O ensino domiciliar, que mais apropriadamente poderia ser chamado de educação doméstica, pelo seu caráter claramente domesticador, se alinha com as políticas de Estado mínimo e Estado zero. Se faz imperiosa a defesa incondicional da educação no Brasil e ampliação de acesso, permanência e sucesso escolar para todas as crianças e jovens. Foi através do ingresso massivo na escola pública, a partir das políticas públicas e da obrigatoriedade originadas da Constituição Federal de 1988, que alunos e alunas pobres, negros e negras, indígenas, populações vulneráveis, começaram a ter acesso a um percurso completo de escolarização. Um dos resultados visíveis desse processo é o paulatino ingresso dessas populações no ensino superior. A educação é uma questão pública e de Estado, não doméstica. A Constituição Federal de 1988 define que a educação é um direito de todos, é dever do Estado, e será ofertada em condições de igualdade de oportunidades e com pluralismo pedagógico. O ensino domiciliar não respeita nenhuma dessas diretrizes. A construção de um Brasil com justiça social passa necessariamente pela ampliação e melhoria da escola pública brasileira. Essa é a prioridade, o resto são políticas para meia dúzia de privilegiados, que buscam mais uma vez usar estrutura e recursos do Estado para seus interesses privados.
(*) Matheus Gomes é Vereador da bancada do PSOL na Câmara Municipal de Porto Alegre, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História UFRGS
Fernando Seffner é Professor da Faculdade de Educação UFRGS, área de Ensino de História
Mariângela Bairros é Professora da Faculdade de Educação UFRGS, área de Políticas da Educação