Conversa com o especialista
Conversa com o especialista: confira a entrevista com Munir Lauer, professor da rede estadual e membro do Coletivo de Educação do MST/RS
Coordenador pedagógico na EEEF 29 de Outubro, localizada no município de Pontão, Doutor em Educação e membro do Coletivo de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Rio Grande do Sul (MST/RS), Munir Lauer, é figura ilustrativa da potência que as escolas do Campo são, em essência.
Em entrevista ao CPERS, o educador destacou os interesses neoliberais que regem o atual projeto político do governo estadual e ressaltou o papel da pedagogia desenvolvida no Campo na resistência dos paradigmas do mercado empresarial.
“Visualizar o Campo, como parte integrante do mundo, e não apenas, como aquilo que resta além das cidades” é o que propõe Prof. Munir ao refletir sobre a construção educacional dentro do MST, que caminha em paralelo com a luta pela terra, e ao alertar sobre os riscos da municipalização das escolas do Campo.
>> Confira a conversa com o especialista:
CPERS: Prof. Munir, a educação do campo tem sido colocada à margem nos últimos governos estaduais, desde a gestão de Sartori (MDB) até a atual administração de Eduardo Leite (PSDB). Quais políticas públicas são mais urgentes e merecem atenção do poder estadual?
Munir: A Educação do Campo no Rio Grande do Sul passa por um período de estagnação quanto a políticas públicas. E a pauta de reivindicações sinaliza o quanto as escolas do Campo, carentes de apoio governamental, seguem resistindo a todas as agruras deste período nebuloso. Para romper com tal situação, seria necessário retomar a modalidade das Escolas do Campo, aprovada em diretrizes do Conselho Estadual de Educação (Resolução 342/2018), que foram esquecidas na atual política educacional no RS.
É pertinente garantir o transporte escolar das crianças assentadas, em que os contratos com os municípios e empresas licitadas fossem realizados em tempo hábil para o início de cada ano letivo. É emergente também a formação dos educadores(as). As escolas do campo têm recebido em seus espaços professores(as) sem formação específica à modalidade, dificultando uma sequência no Projeto Político Pedagógico inerente ao campo. Ligado a isso, é imprescindível que a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) incentive esse processo formativo dos educadores(as) das escolas do Campo e, em especial, das áreas de assentamentos, liberando os professores(as) para formações organizadas pelos movimentos sociais do campo, pelas organizações populares e pelas universidades.
Quanto ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), há solicitações no sentido de que as compras dos produtos industrializados não perecíveis das cooperativas da agricultura familiar e reforma agrária sejam centralizadas nas Coordenadorias Regionais de Educação. Assim, haveria uma diminuição na burocracia, e principalmente, facilitaria a distribuição nas escolas, já que se trata de produtos que podem ser estocados por mais tempo.
Outra demanda, trata da infraestrutura das escolas do Campo, que em muitas situações requerem manutenção ou construção de prédios novos. Mas a falta de investimento público ou descaso faz desta situação uma luta permanente na busca de melhorias.
No sentido pedagógico, se requer ainda debates aprofundados sobre a multisseriação de turmas nas escolas. Normalmente, tal situação, com exceções, não leva em consideração preceitos pedagógicos ou de processos de ensino aprendizagem, mas meramente preocupações com a redução de carga horária e diminuição de custos. Sabemos que em muitas situações, a multisseriação é uma forma de manutenção do funcionamento das escolas, porém, a falta de diálogo com a comunidade escolar sobre o assunto desmerece o trabalho pedagógico das instituições.
Entretanto, é a municipalização das escolas uma das temáticas que tem tomado maior tempo nos debates internos das escolas do Campo e nos Coletivos de Educação. A municipalização pode ferir drasticamente nosso trabalho pedagógico. Em muitas escolas do Campo, são os professores(as) estaduais que mantêm ativas as concepções filosóficas e pedagógicas da Educação do Campo. Ao haver uma mudança nos recursos humanos das escolas, profundas mudanças aconteceriam na relação com o entorno comunitário e com o desenvolvimento do próprio Projeto Político Pedagógico construído pelos sujeitos do Campo, e para eles.
Tais demandas, que indicam a falta de políticas públicas, resumem os principais problemas enfrentados pelas escolas do Campo na contemporaneidade. Adversidades que, conjugadas ao mesmo tempo, nos mesmos espaços e territórios, nos dão uma ideia da resistência diária dessas instituições.
CPERS: A educação no estado, de maneira geral, tem sido fortemente negligenciada pelo projeto político do atual governador. No entanto, as escolas indígenas e do campo têm estado ainda mais isoladas do debate e investimento públicos. Por que tu achas que não há interesse do estado gaúcho em fortalecer o projeto educacional pensado pelos movimentos do campo?
Munir: Para responder tal questionamento, tomarei como embasamento teórico algumas concepções encontradas no livro – A escola não é uma empresa – de Christian Laval. O projeto político do atual governo estadual recebe influência das ideias do capital financeiro na educação, ou seja, a educação compreendida como mercadoria, algo que pode ser comprado e vendido. A escola nessa concepção intenta um modelo que condiciona a educação como um bem necessariamente privado, cujo sentido existencial está na obtenção do lucro econômico. Neste sentido, o capital humano deve ser rentável para as empresas, isto é, a empreitada educativa necessita do retorno financeiro.
Por isso das avaliações externas: a educação precisa ser medida e contabilizada, para ver se está dando lucro, se é necessária, se é útil ou inútil. E neste contexto de retorno financeiro, as reformas da educação pressionam para uma padronização dos métodos de ensino-aprendizagem e dos conteúdos, para um novo gerenciamento das escolas e para a profissionalização dos professores(as). Neste cenário, há o fortalecimento do capital humano e do empreendedor individual. “O homem e a mulher flexíveis, o trabalhador autônomo” como ideal pedagógico.
Assim, a escola passa a apresentar um propósito: o de estar a serviço da economia de mercado, que parte da premissa – “que tipo de empregados(as) que as empresas desejam?”. E a resposta trata-se de “técnicos competentes e, ao mesmo tempo, ignorantes socialmente”, sem visão crítica do que acontece na sociedade. Contudo, não podemos esquecer que esse modelo é recusado por numerosos indivíduos, grupos, movimentos, associações, sindicatos e instituições no mundo inteiro. E a pedagogia das escolas do Campo, na sua gênese, justamente, tem esse propósito, como território de resistência aos paradigmas do mercado empresarial.
Em razão do exposto, a inexistência de políticas públicas para Educação do Campo no RS explica-se de forma que veem o campo como local de atraso e de espaço sem custo-benefício, baseando-se numa visão extremamente preconceituosa de seus sujeitos e comunidades. Desta forma, a política de fechamento de escolas objetiva o envio destes sujeitos do campo para a cidade, para ser mão de obra barata, mas profissionalmente técnica e “competente”. Para o Deus-mercado, as escolas do Campo são empecilhos para o desenvolvimento da educação-mercadoria, pois não resultam em lucro.
Quanto à escola e seus professores(as), recai a necessidade de compreender que nesse momento, mais do que nunca, há a essencialidade de um trabalho de formação humana, de cidadãos críticos. Esse objetivo é fortemente atacado pelo setor empresarial, visto que o mercado fortalece a competição entre os sujeitos na sociedade, e consequentemente, proporciona sua alienação subjetiva e social.
A própria manutenção de escolas do Campo em seus territórios, como espaço de formação humana, são acima de qualquer pretensa teoria filosófica ou pedagógica um ato de resistência e esperança. Aliás, tais palavras – resistência e esperança – estão muito presentes no vocabulário contemporâneo dos educadores(as) do Campo. De certa forma, representam bem o sentimento da categoria, ou seja, resistir aos ataques empresariais do capital financeiro e almejar um futuro melhor para a educação pública.
CPERS: Qual a importância de modelos pedagógicos específicos para a educação do Campo, como a Pedagogia da Alternância e a Pedagogia do Movimento?
Munir: É importante destacar que a Pedagogia do MST é um processo construído pelos próprios sujeitos e para eles. Algo surgido de dentro para fora. Fruto de muita luta. A história de educação do Movimento caminha em paralelo à luta pela terra e pela Reforma Agrária. Foi a aglutinação de experiências em escolas de acampamentos e assentamentos, apoiada por universidades, governos progressistas, organizações sindicais e sociais e indivíduos da sociedade civil, que forjou uma concepção de educação amparada em princípios filosóficos e pedagógicos.
Na sua essência, fruto de discussões, reflexões e da intencional aproximação entre educação e formação, a educação no MST possui cinco princípios filosóficos: 1) Educação para a transformação social; 2) Educação para o trabalho e a cooperação; 3) Educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; 4) Educação com/para valores humanistas e socialistas; 5) Educação como um processo permanente de formação e transformação humana.
A partir destes princípios filosóficos e de outras treze resoluções pedagógicas, bem como à conquista gradual de assentamentos, foi possível o desenvolvimento de uma outra escola, uma escola diferente que exigia também um professor diferente, com outra formação. Com a mesma obstinação em ocupar e conquistar terras, decidiram criar a Escola da Terra, onde expandira-se uma educação deste lugar, do Campo.
Este novo contexto social, aos poucos, também despertou o olhar das universidades e dos centros de pesquisa, que começaram a elaborar metodologias e produzir referenciais teóricos que dessem conta de compreender essa nova formatação da realidade, que se desenvolvia no campo brasileiro. Visualizar o campo, como parte integrante do mundo, e não apenas, como aquilo que resta além das cidades, era algo inovador. Assim, desse ponto de vista, os Sem Terra foram refletindo e ponderando com os outros povos do campo, quilombolas, indígenas e camponeses, sua concepção de saber que se esboçou na Conferência Nacional “Por Uma Educação Básica do Campo”, realizada em 1998. Desta forma, portanto, surge a Educação do Campo, tendo suas concepções amparadas na Pedagogia do MST.
O principal programa de educação do Campo é o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). O Pronera é uma política de Educação do Campo realizada em áreas da Reforma Agrária, efetivada pelo governo brasileiro. O objetivo principal é fortalecer o mundo rural como território de vida em todas as suas dimensões. Este Programa nasceu em 1998, a partir da luta dos movimentos sociais e sindicais de trabalhadores rurais pelo direito à educação com qualidade social. Em virtude do Programa, milhares de jovens e adultos, trabalhadores e trabalhadoras das áreas de Reforma Agrária têm acesso ao direito de alfabetizar-se e de continuar os estudos em diferentes níveis de ensino, desde a alfabetização até ensino superior.
E quando se trata de educação, uma das metodologias de organização de ensino mais utilizadas nas escolas do Movimento é a Pedagogia da Alternância. Esta, estabelece diferentes experiências formativas distribuídas ao longo de tempos e espaços distintos, almejando como finalidade a formação profissional. A reflexão em torno da alternância é a de pensar o campo a partir dos próprios sujeitos e de uma escola que responda aos interesses dos educandos. E concomitantemente, possibilite uma formação direcionada para a sua realidade, qualificação técnica para viabilizar o fortalecimento da agricultura camponesa e oportunização de alternativas de resistência e permanência nestes territórios.
Em resumo, pode-se dizer que a Educação do Campo é resultante de concepções orgânicas do MST, mas também de outros agentes sociais que participaram do processo de construção histórica. Somado a isto, apresenta-se a Pedagogia da Alternância, como metodologia de organização de ensino e aprendizagem, direcionado aos sujeitos do Campo. Campo escrito com o ‘C’, em maiúsculo, para destacar claramente o sentido de identidade e de pertencimento àquele espaço territorial.
CPERS: Que iniciativas estão sendo implementadas no Campo que poderiam servir de referência para a construção do Plano Nacional de Educação (PNE), por exemplo?
Munir: Ao longo dos seus 40 anos, a serem completados em 2024, o MST possui como intencionalidade o direito à educação pública nos espaços, onde os trabalhadores(as) Sem Terra se encontram. Segundo dados do próprio Movimento, até o momento, o MST já alfabetizou 100 mil adultos no Brasil em campanhas de educação de jovens e adultos (EJA), baseadas no método de alfabetização cubano “Sim, eu posso” e no Círculo de Cultura de Paulo Freire.
A prioridade é que os acampamentos e assentamentos organizados pelo MST tornem-se territórios livres do analfabetismo, de modo que o jeito de fazer a luta por educação esteja inerente à luta pela terra, tendo como centralidade reflexiva o cotidiano dos trabalhadores(as) do campo.
Quanto à educação superior, o Pronera destina verbas específicas objetivando o acesso de jovens em instituições federais. No estado, há três exemplos disto: o curso de Agronomia, com ênfase em agroecologia (em Pontão, pela UFFS), o curso de História (em Viamão, também, pela UFFS), e o curso de Medicina Veterinária (em Pelotas, pela UFPEL).
Conforme dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no período entre 1998 até 2018, o Pronera ofertou aproximadamente 500 cursos em parceria com 94 instituições de ensino, atendendo cerca de 190 mil pessoas, desde a educação de jovens e adultos até programas de pós-graduação.
Nesse sentido, numa visão de efetividade teórica e prática, as duas iniciativas apresentam experiências riquíssimas, servindo como exemplos de concretude para políticas públicas eficazes e de simbolismo, no que diz respeito à luta permanente pelo acesso à educação pública. Ambas as iniciativas acarretam contribuições significativas para um Plano Nacional de Educação.
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