Corremos o risco de retroceder

Corremos o risco de retroceder

Faltam seis semanas para terminar 2020, e o Congresso Nacional corre contra o tempo para aprovar um projeto de lei que regulamente o novo Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb.

O principal mecanismo de financiamento da educação básica no Brasil foi incorporado à Constituição Federal em agosto, por meio da aprovação da Emenda Constitucional 108. Porém, como sinaliza a coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, o novo Fundeb – cuja lei atual perde a vigência esse ano - precisa ser regulamentado de maneira a garantir que os avanços trazidos pela EC 108 saiam do papel. A expectativa é que esse processo ganhe impulso após o primeiro turno das eleições, no dia 15 de novembro. O prazo é apertado, e o governo federal já prometeu apresentar uma medida provisória para regulamentar o fundo caso o Congresso não aprove uma lei que o faça até o final do ano. O problema, segundo Andressa, é que várias das agendas defendidas pelo governo federal no processo de discussão do novo Fundeb significariam retrocessos. Nessa entrevista, Andressa fala sobre os riscos envolvidos no processo de regulamentação do Fundeb.

André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 13/11/2020

A aprovação da Emenda Constitucional do Fundeb em agosto foi considerada uma vitória por movimentos e entidades da área como a própria a Campanha Nacional pelo Direito à Educação? Por quê? Em que medida esses avanços dependem da regulamentação do fundo?

A aprovação da PEC que se tornou a Emenda Constitucional 108 foi a culminância de cinco anos de tramitação da PEC na Câmara e no Senado Federal, com muitas notas técnicas, posicionamentos, debates de vários atores do campo educacional. A Campanha considera que foi uma grande vitória porque conseguimos tornar o Fundeb permanente, essa que é uma das principais políticas educacionais no Brasil e uma das que de fato têm sido implementadas. A gente tem na história das políticas educacionais brasileiras um cenário de descontinuidade. O Fundeb é uma das políticas que de fato funcionou, mas que precisava avançar em termos de melhoria da sua estrutura de distribuição, do cumprimento do piso salarial do magistério e a valorização dos profissionais da educação e do aporte do recurso federal, que ficou estagnado. A aprovação da EC 108 traz sete principais pontos de avanço, que foram todos pontos defendidos pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. O primeiro é que ele se torna permanente. É muito importante que a gente tenha essa estabilidade e essa garantia sustentável de um fundo dedicado à educação básica. O segundo ponto é o aumento da complementação da União para 23% [do total aportado por estados e municípios no fundo] com recursos novos, e isso foi uma das questões debatidas no final, uma vez que o governo sugeriu fazer uso de recursos do salário-educação para cobrir esses 23%. Esse é um ponto importante de avanço, garantir mais recursos novos do governo federal. Um terceiro ponto é a inclusão do Custo Aluno-Qualidade como parâmetro para o financiamento da educação e também como vínculo desse financiamento para que ele se transforme de fato em melhoria da qualidade da educação no Brasil. Um quarto ponto é a inclusão do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica como parâmetro para esse sistema de financiamento, para que se possa ter a perspectiva de que o Sinaeb seja regulamentado e colocado em prática, avançando em termos de avaliação da educação básica no Brasil, que hoje se resume muito a um discurso simplista ligado ao Ideb. Um quinto ponto é a melhoria do sistema de distribuição em um sistema híbrido, em que a gente até os 10% continua a distribuição como ela é hoje e garante que as redes não sejam desestruturadas no novo sistema de distribuição, mas a partir desses 10% a gente considera também as outras capacidades orçamentárias dos municípios. Um sexto ponto é a garantia de que 70% desses recursos sejam dedicados aos profissionais da educação, o que é um indutor de valorização desses trabalhadores. E por último, que também tem ligação com os profissionais da educação, é a exclusão dos inativos. Havia muito uso do recurso para o pagamento de inativos. Esses são sete pontos de avanço, e todos eles passam por questões que agora estão no debate da regulamentação. A regulamentação também diz respeito à gestão, acompanhamento, controle social e monitoramento desses recursos, então a gente precisa muito de um fortalecimento dos conselhos de acompanhamento do Fundeb.


Qual é a avaliação da Campanha sobre os projetos de lei hoje em tramitação no Congresso Nacional para regulamentar o Fundeb?

Temos no Congresso Nacional dois projetos de lei que estão tramitando: o 4.372/20, de autoria da deputada Dorinha [Seabra], com mais sete coautores, e o projeto de lei 4.519/20, de autoria do senador Randolfe Rodrigues, que tramita no Senado Federal. A diferença primordial entre eles é que o projeto do Randolfe inclui o Custo Aluno-Qualidade, que não consta do projeto de lei da deputada Dorinha. Ele também vincula 2,5% de complementação da União a uma noção de equidade, enquanto o projeto de lei da Dorinha fala em resultados.


O que isso significa?

Durante o debate das PECs do Fundeb, houve essa proposta de destinar 2,5% dos 13% de complementação nova da União no fundo a escolas e redes que tenham melhorado seus resultados na educação. A proposta inicial era vincular a resultados do Ideb. As escolas que melhorassem seu Ideb ganhariam mais recursos, como se fosse uma premiação. Muitos movimentos, inclusive a Campanha, foram terminantemente contra esse tipo de destinação de recursos justamente porque não só o Ideb é um mecanismo muito falho em termos de avaliação - ele avalia só uma parte da educação - como também em todos os lugares que houve esse processo de financiamento da educação por esse tipo de bonificação as desigualdades foram aprofundadas em vez de reduzidas. As escolas que têm mais capacidade de ter melhores resultados em avaliações de larga escala são escolas que já têm alguma infraestrutura. Destinar mais recursos para as escolas que têm mais capacidade é um contrassenso. A gente precisa destinar recursos para aquelas que precisam mais. Mas como houve um entendimento de que haveria a necessidade de incentivar as redes de ensino a ampliar acesso, permanência e qualidade, se aprovou esses 2,5% vinculados a essas melhorias, mas vinculado ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, o Sinaeb, que claro, precisa ser regulamentado. Ele já existiu no Brasil, foi publicado em uma portaria de 2016, mas foi revogado no governo [Michel] Temer, então nunca foi implementado. Mas vários estudos de entidades envolvidas com a formulação do Sinaeb garantem que o sistema traga no seu núcleo esses três elementos da educação: acesso, permanência e qualidade, e qualidade não só vinculada a resultados em avaliações de larga escala. Então o projeto de lei da Dorinha chama esse sistema de distribuição desses 2,5% de valor aluno ano por resultado, passando ao largo do Sinaeb. O projeto de lei do Randolfe chama de valor aluno-ano equidade, conceito que traz uma visão mais ampla, pensando em redução das desigualdades, mais do que em bonificações, trazendo também a perspectiva de regulamentação do Sinaeb. Essa é uma diferença entre os projetos.


Existem outras?

O projeto de lei do Senado aprofunda processos de gestão democrática, do controle social. Ele também garante melhor a inclusão de estudantes com deficiência e avança na questão da laicidade, que são dois pontos que estão particularmente em risco por conta de propostas que vêm do governo. Ele garante mecanismos de transição e prazos para que o recurso do Fundeb que hoje é destinado às escolas conveniadas passe a ser destinado para a educação pública. Hoje é permitido que sejam destinados recursos do Fundeb para escolas religiosas, comunitárias e filantrópicas. Esse recurso geralmente é destinado quando há falta de vagas na rede pública, o que acontece muito na educação infantil e na educação especial, em que existe um atendimento especializado feito por organizações da sociedade civil sem fins lucrativos. Então o projeto de lei do Senado inclui travas e prazos de transição para que essas conveniadas parem de receber recursos públicos, já prevendo a possibilidade de retrocessos, uma vez que uma das agendas do governo federal é o fortalecimento das escolas religiosas, já que o governo tem uma base muito forte de grupos religiosos cristãos, especialmente evangélicos, mas também católicos.


No debate sobre a regulamentação do Fundeb o governo federal tem defendido a ampliação dos recursos do fundo destinados a essas instituições. Em que medida isso seria um retrocesso?

Hoje o recurso do Fundeb já pode ser destinado para essas escolas. Mas temos políticas como o próprio Plano Nacional de Educação, temos legislações que pressionam para que esse processo de privatização e conveniamento seja paralisado, porque existem vários estudos que mostram que existe uma ameaça à qualidade da oferta quando esse processo é feito sem nenhuma regulamentação, que é o que acontece hoje. Não temos uma regulamentação e um monitoramento muito estrito da oferta de educação de qualidade por redes conveniadas, e isso não só no Brasil. Existem vários debates em nível internacional, dos quais a gente participa inclusive, sobre a necessidade de regulamentação da atuação do setor privado na educação. No mundo inteiro existem conveniamentos e processos de privatização da educação que têm feito um movimento de precarização da oferta e de violação do direito à educação por conta de falta de qualidade. No Brasil, boa parte das nossas conveniadas não tem qualidade suficiente e sequer são monitoradas. Há muito tempo a gente vem tendo esse debate e a própria legislação reflete isso, como o PNE, assim como a Lei de Diretrizes e Bases, que pressionam para que não haja esse processo de privatização, até porque é de responsabilidade do Estado a oferta de educação. Então nesse novo Fundeb, a perspectiva era que a gente pudesse fazer essa trava de uma vez por todas. A gente precisa parar de fazer esse desvio de recurso público para o sistema privado e com o novo Fundeb a gente tem a perspectiva de fazer isso. Só que o movimento do governo é contrário: aumentar esse financiamento, fortalecer esses processos de privatização e de parcerias com entidades conveniadas. Por isso é uma agenda de retrocessos: não por passar a permitir, mas porque já passou da hora de termos prazos para que a gente possa destinar recurso público para a educação pública. Isso não só garante que haja um monitoramento, uma regulação, um controle social desses recursos, como também garante mais eficiência. A educação de qualidade custa muito menos quando você destina recurso público para a escola pública do que quando você faz conveniamento. Esse é um processo que hoje se concentra principalmente na educação infantil, principalmente porque o município é responsável pela educação infantil e fundamental, e é o que menos arrecada recursos, então ele tem pouco recurso para investir em muita matricula. Tem um desequilíbrio no sistema de cooperação federativa em termos de financiamento, porque o governo federal complementava até 10% do Fundeb até hoje. Por isso também é que há um esforço no novo Fundeb de aumento da complementação mínima da União para 23%. Então ele garante um esforço para reduzir o conveniamento na educação infantil, porque com mais financiamento da União para os municípios eles têm mais capacidade de ofertar vagas na rede pública. Então não faz sentido que os recursos públicos trazidos por uma Emenda Constitucional nova do Fundeb, que garante essa correção da distorção do financiamento do federalismo brasileiro, que pesa muito para os municípios, sejam destinados para fortalecer a rede privada.


Outra questão que apareceu como proposta do governo no âmbito das discussões sobre a regulamentação do Fundeb foi a vinculação do reajuste do piso salarial do magistério à inflação...

Essa é uma agenda muito forte de precarização da educação, que também vem no contrassenso da aprovação da Emenda Constitucional 108, que garante que 70% dos recursos do Fundeb sejam destinados para os profissionais da educação. O professor [José] Marcelino, da USP, que é um dos nossos grandes pensadores do financiamento da educação, fala muito sobre isso: o custo da educação é com pessoal. Para que haja qualidade, o financiamento da educação precisa valorizar os profissionais da educação. Quando a gente está discutindo financiamento da educação, claro, a gente está discutindo a necessidade de investir em infraestrutura de qualidade, em questões materiais, mas estamos discutindo especialmente a valorização, condições de trabalho e carreira dos profissionais da educação. O governo federal perdeu o debate da Emenda Constitucional do Fundeb. Durante todo o processo de tramitação houve muitas tentativas de retrocesso, e ele perdeu todas. E agora ele se vê diante de um novo fundo que vai destinar obrigatoriamente, constitucionalmente, mais recursos do governo federal para a educação. E qual é a tentativa agora? Reduzir os parâmetros. E um dos principais deles é justamente ligado aos profissionais da educação. Essa tentativa de vincular o pagamento dos profissionais da educação com o reajuste da inflação representa uma precarização, porque o piso nacional do magistério é muito mais do que isso. A proposta de planos de carreira que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação [CNTE], assim como a Contee [Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino] sempre defenderam e que precisa ser regulamentada é muito maior do que isso, porque a gente tem uma disparidade salarial imensa em termos de quanto ganha um professor da rede pública na educação básica em relação à média de quanto ganham outros profissionais com a mesma formação. A gente nunca vai conseguir melhorar a qualidade da educação se não valorizarmos os profissionais, porque para termos bons profissionais a gente precisa tornar a carreira atrativa. Então essa ideia de vincular à inflação vai na contramão do debate de valorização dos profissionais da educação presente no novo Fundeb.


Qual é o risco de que não haja tempo hábil para a aprovação da lei do Fundeb pelo Congresso e que ele seja regulamentado por medida provisória?

A gente não sabe o que vai acontecer. Vamos ter um novo fundo em 2021 e ele precisa estar em funcionamento. Diante da urgência o governo federal faz uma pressão por medida provisória, mas não só por isso. A pressão também é para poder passar essas agendas de retrocesso no Fundeb. Ao mesmo tempo, a perspectiva de que o PL seja votado à toque de caixa é muito arriscada também e não necessariamente é factível, porque além do Fundeb tem uma série de outros projetos aguardando votação, inclusive a lei orçamentária. O cenário é muito difícil, porque ao mesmo tempo em que a gente precisa aprovar logo o Fundeb porque ele passa a vigir a partir do ano que vem, precisamos também de um debate com qualidade, senão corremos o risco de retroceder nessa grande vitória que tivemos com o Fundeb. E a lei de regulamentação é quase tão importante quanto a Emenda Constitucional porque ela que vai fazer o Fundeb se materializar.

 

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