Covid-19 e o neoliberalismo

Covid-19 e o neoliberalismo

A Covid-19 e o neoliberalismo

EPITÁCIO MACÁRIO*

Para Raylka Fránklin, que me fez as perguntas

O coronavírus é um fato capaz de causar irremediáveis estragos nas vigas mestras do neoliberalismo e dos modos de vida a que são submetidas as imensas massas do povo. É um episódio (espero que mereça o nome!) potencialmente destrutivo de circuitos de produção e circulação de riquezas (de valor) e atinge em cheio algumas crenças professadas pelo ultraliberalismo.

Uma dessas crenças, que obteve grande êxito no plano político e ideocultural, diz da liberdade plena para as corporações como imperiosa necessidade no mundo globalizado. Nessa ideologia, o Estado é o outro que comparece apenas como mediação imprescindível para a garantia das condições da referida liberdade corporativa.

Na tríade mercado-corporações-estado, a política estatal pode ser mais ou menos ortodoxa, mais ou menos heterodoxa, cabendo até iniciativas desenvolvimentistas com tintura social mais forte. Não importa! Desde que os interesses corporativos, ou a tão propalada liberdade de mercado, sejam resguardados.

Ora, a calamidade provocada pelo novo corona vírus põe em xeque essa pilastra da “doutrina do choque” (KLEIN, 2008) ao evidenciar que somente um sistema público de saúde, robusto e bem estruturado, pode oferecer combate ao surto avassalador da Covid-19. Expõe à luz do dia a inoperância e a incapacidade das corporações, especializadas em espoliar as pessoas com o comércio da saúde (ou deveria dizer da morte?), de darem respostas à altura do problema.

A pandemia reclama energias e sinergias em escala social que jamais poderiam ser providas pelo tipo de vida que nos foi imposta ou por quaisquer empresas privadas. Pois, a razão de existir destas são os lucros e não a fantasiosa responsabilidade social. Somente instituições públicas, voltadas para serviços de interesse público, podem ter responsabilidade social. Somente a ação organizada de sujeitos sociais interessados no bem comum pode ter alguma eficácia contra a pandemia.

Nem uma nem outra mediação social fora construída pelo capitalismo. Ao contrário, os experimentos que apontaram na direção do “controle social” (MÉSZÁROS, 2002) foram sufocados pela força da jiboia que é a combinação de corporações e Estado. Estes experimentos teimam em ressurgir nas fissuras abertas ou nas fraturas expostas pelo sociometabolismo do capital. Mas, a doutrina do choque elegeu as iniciativas populares, as autênticas organizações do povo, como inimigas. E tudo fez para dissuadi-las e destruí-las, combinando o uso da força bruta e de não menos poderoso arsenal no campo simbólico.

O fanatismo individualista que empodera o eu narcísico, a mônada ensimesmada, deu o sabor e odor das narrativas. (JAMESON, 1996). E quando a pandemia se instaura, esse ideário tacanho se refaz com fervor nos intimismos dos que podem se isolar com seus cachorrinhos. E tudo ocorre por cima da maioria que não tem sabão e álcool em gel, mora em arranjos familiares com pouco ou com nenhum espaço, desloca-se em transportes superlotados onde se comunga o ar (mesmo sem ser camaradas) e a intimidade não protege sequer das densas gotas de saliva em época de gripe endêmica.

Na contramão do “controle social”, o neoliberalismo ensinou de outro jeito. Disse que bens sociais como educação, saúde, segurança são mercadorias que devem ser produzidas e ofertadas por empresas privadas. Ou, quando assumidas pelo Estado, devem atender aos mesmos princípios que regem as corporações. O neoliberalismo realinhou antigas e criou novas correias de transmissão que religam os interesses corporativos ao poder de estado. Por meio delas, os impulsos privados dragam os fundos que poderiam ser destinados aos serviços públicos.

Ocorre que os princípios corporativos são exclusivistas: dirigem-se às parcelas da população que podem pagar. Os inviáveis, do ponto de vista da lucratividade, estão fora do raio de suas preocupações. A ação estatal deveria ser diferente: deveria ter como centro de atenção a sociedade e, no interior dela, os imensos segmentos populacionais pobres que necessitam do serviço público. Mas a estatalidade é, ela mesma, constituída pelo conflito social, com evidente hegemonia das forças que dominam economicamente.

A ideologia neoliberal potencializa os tentáculos por meio dos quais os capitalistas e a elite controlam a estatalidade. Mas esse controle nunca é direto, mecânico e unívoco. A esfera estatal é sempre permeada de conflitos que se desenrolam entre frações das classes dominantes e entre estas e os legítimos representantes dos interesses do povo e dos trabalhadores. Por isto, as forças populares organizadas ainda se dirigem ao Estado com suas reivindicações, ainda mais na presente situação de pandemia.

Sim! O Estado tem de assumir a responsabilidade!

É impensável que uma corporação invista seu capital na prospecção de conhecimentos e na criação de produtos tecnológicos com interesse social. Elas até o fazem, inclusive aproveitando a oportunidade aberta pelo sofrimento causado por pandemias como a Covid-19, desde que seja um negócio lucrativo. No Brasil, são as universidades públicas e institutos públicos que estão investindo todos os esforços possíveis na produção de kits de testagem e na experimentação de fármacos para combater a doença. Há empresas privadas envolvidas nas pesquisas e no desenvolvimento de produtos, mas todas sustentadas pelo fundo estatal. A razão de seu envolvimento se encerra neste fato: a venda e obtenção dos lucros seguros e garantidos pelo Estado.

A angustiada crítica de Karl Polanyi (2000) à mercantilização dos bens sociais e da própria vida ganha contornos dramáticos com a pandemia causada pelo SARS-Cov-2. Nos estertores da Segunda Guerra Mundial, o estudioso vienense alertava para os riscos do mercado autorregulado e sonhava com a expansão do raio de intervenção social e estatal sobre o que considerava bens imprescindíveis à sociedade.

Na esteira das políticas keynesianas do pós-segunda guerra, parecia que o mundo capitalista tinha dado razão a Polanyi. Pois, enquanto a intervenção estatal mostrou-se funcional para a expansão dos conglomerados e monopólios da era fordista, ela foi tolerada e fomentada. Um leque de políticas de bem-estar social foi instaurado em bem poucos países centrais, porque mostravam-se funcionais à reprodução ampliada do capital. (BEHRIG, 2002).

Depois, com a crise dos anos 1970, o mundo capitalista assumiu a perspectiva ultraliberal do contemporâneo e conterrâneo de Polanyi, o também vienense Friedrich August von Hayek (2010). Este, por seu turno, seguia com admiração as prédicas de Ludwig Heinrich Edler von Mises (2010), ucraniano de nacionalidade austríaca, formado na mesma universidade de Viena. Suas ideias foram assumidas em várias partes do mundo.

A falsa serenidade do ultraliberalismo de Mises e Hayek ganhou estatuto de ciência aplicada nos Estados Unidos. Gravitando em torno de Milton Friedman (2014), um grupo de economistas destrinchou a doutrina em duras lições econômicas a serem aplicadas pelos governos. O objetivo anunciado era salvar o mundo do centralismo estatal, de cariz social-democrata ou socialista, e instaurar o reino da liberdade econômica.

Em nome desse desígnio sagrado, Milton Friedman e seus seguidores elaboraram e assessoraram o projeto econômico implementado a ferro e fogo pelo ditador chileno Augusto José Ramón Pinochet Ugarte, entre 1973 e 1990. Uma ditadura sangrenta que assassinou mais de três mil pessoas, é certo, mas que “fez o que devia ter feito” (BBC, 2019) como afirmou Jair Bolsonaro. Pela nobreza dos fins perseguidos, “devia ter matado mais gente”, disse ainda o traste quando era parlamentar. Depois, foi corroborado por um dos seus cupinchas, Onyx Lorenzoni: “Triste, o sangue lavou as ruas do Chile, mas já passaram oito governos de esquerda e nenhum mexeu nas bases macroeconômicas colocadas no Chile no governo Pinochet”.

Eis o legado deixado pela doutrina neoliberal no país que serviu de ensaio para o resto do mundo capitalista. (ANDERSON, 1995).

Não se olvide o fato de o hoje ministro Paulo Guedes ter integrado o círculo dos adoradores de Milton Friedman, os “Chicago boys”, que atuaram no projeto econômico da ditadura chilena. Para o superministro de Jair Bolsonaro pouco importou o fato de ter sido convidado para a Universidade do Chile, dirigida por um general, e ter dado suporte intelectual ao projeto econômico do ditador. Pois, como ele mesmo afirmou à repórter da revista Piauí, Malu Gaspar, “Eu sabia zero do regime político. Eu sabia que tinha uma ditadura, mas para mim isso era irrelevante do ponto de vista intelectual.” (MALU GASPAR, 2018).

Para os sábios “chicaganos” e os da “escola austríaca” a democracia, mesmo a formal, é relativa e sempre pode ser manipulada e até descartada. Como efeito, se a análise demonstra a necessidade do “choque” da ditadura em face de algum risco à hegemonia das corporações e às crenças econômicas que a sustentam, os neoliberais não hesitam. Seu freio não está em nenhuma propensão ética para o bem comum, mas apenas e somente na correlação de forças estabelecida no conflito social.

Não por acaso, a crise de hegemonia instaurada na América do Sul na entrada do milênio representou um freio, um “alto lá” às taras neoliberais. E o que se viu foi a emergência de governos de origem popular com projetos que tentavam mesclar os fundamentos e os valores neoliberais com políticas sociais voltadas aos segmentos mais fragilizados. O Estado foi invocado no continente como força importante na indução do crescimento econômico. Com honrosas diferenças dos casos da Venezuela e da Bolívia, tais governos foram incapazes de alterar as bases macroeconômicas neoliberais, como disse o adjunto decaído, Onyx Lorenzoni. Mesmo assim, uma guerra travou-se em toda a Sul-América para desestabilizar tais governos e restabelecer em sua pureza o projeto ultraliberal. (SANTOS, 2018).

O golpe contra Dilma Rousseff foi preciso quanto ao que estamos argumentando. Foi um choque preventivo, pois percebiam que ela, seu partido e sua base social apresentariam obstáculos à agenda colocada à mesa presidencial pelas forças ultraliberais que, inclusive, compunham o governo. O obstáculo não seria, a bem da verdade, à agenda em sua totalidade, mas pelo menos quanto à forma política e ao tempo de implementação. Foram precisos quanto ao momento em que a correlação de forças lhe era bastante favorável, seja pelo clima regressivo continental, seja pelo crescimento avassalador das igrejas neopentecostais, seja ainda pela crise do ideário socialista e pelo prejuízo do apassivamento das forças do trabalho promovido pelos governos progressistas.

A doutrina econômica neoliberal não tem qualquer veleidade moral ou ética em considerar a desigualdade, a pobreza, o desemprego, a violência, a morte, afinal, como bom negócio. No cálculo econômico neoliberal, todos esses elementos de crise social profunda podem ser funcionais e… lucrativos!

Ora, teria exemplo mais escandalosamente cristalino quanto a isto do que a conduta de Paulo Guedes e Jair Bolsonaro em face da potencial desgraça que a Covid-19 representa para amplos setores pobres da população brasileira? Diante das previsões elaboradas com rigor científico de milhares de mortos e centenas de milhares de acometimentos da doença, estes homens desdenham! O frio cálculo econômico desses trastes prefere as mortes a possíveis mudanças no mecanismo econômico que possam onerar as corporações, os rentistas, as elites.

O que representa a Medida Provisória 927, reeditada com o número 928, senão um desdém para com o humano? Senão um acréscimo de dor e sofrimento a milhares de pessoas que serão infectadas e a milhões de trabalhadores assalariados do setor privado? A pandemia criou a oportunidade para o aprofundamento da reforma trabalhista, açodando a espoliação de renda dos trabalhadores em benefício do capital. Tudo que faz esse governo é voltado para a salvaguarda das corporações, do capital, em detrimento da saúde pública e da vida no meio de uma crise humanitária!…

Tudo isso é possível para as subjetividades formatadas pelo neoliberalismo. A compaixão é desdenhada; cospe-se no rosto de enfermos; condenam-se velhos à extrema pobreza; retiram-se-lhes a aposentadoria; aproveitam-se de uma crise humanitária para espoliar direitos e garantias sociais… Tudo isso é possível sob a justificativa de “salvar a economia”.

O SARS-Cov-2 é, todavia, um episódio (espero que mereça o nome!) potencialmente destrutivo das bases do neoliberalismo e do próprio capitalismo. Pois, o neoliberalismo é a forma de ser e ir sendo do capitalismo contemporâneo. (CARCANHOLO, 2017). Se assim for, os sonhos de um estado de bem-estar social esfumam-se na aridez do real e revela-se que a superação do neoliberalismo é a superação do próprio capitalismo.

Qual a direção e o sentido econômico, político e social tomará a profunda crise aberta pela Covid-19?

Esta questão não poderá ser respondida pela própria pandemia. O SARS-Cov-2 é o agente biológico que, por isso mesmo, não pode oferecer resposta ao problema – que é de ordem histórica. Porquanto, somente as forças sociais em luta podem dar a resposta.

Quem definirá essa questão é a luta de classes. Definitivamente!

No conflito entre as classes, as forças sociais que encarnam a perspectiva do trabalho estão com a responsabilidade de empurrar o sistema noutra direção. Pois, as forças que personificam o capital caminham unitariamente para a única solução que corresponde ao seu lugar e ao seu interesse na estrutura social: mais neoliberalismo… mais capitalismo!

Referências

ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: Emir Sader e Pablo Gentili (Orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

BBC. As homenagens de Bolsonaro a Pinochet e por que o general ainda divide o Chile (22/03/2019)

BEHRING, E. R. Política social no capitalismo tardio. São Paulo: Cortez, 2002.

CARCANHOLO, M. D. Dependencia, super-explotación Del Trabajo y Crisis: una interpretación desde Marx. Madrid: Ediciones Maia, 2017.

FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. Rio de Janeiro: LTC, 2014.

GASPAR, M. O fiador – a trajetória e as polêmicas do economista Paulo Guedes, o ultraliberal que se casou por conveniência com Jair Bolsonaro. Revista Piauí, ed. 144, set./2018. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-fiador/

HAYEK, F. A. von. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

JAMESON, F. Pós-modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.

KLEIN, N. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

MÉSZÁROS, I. A necessidade do controle social. In: Para além do capital – rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.

MISES, L. von. Liberalismo: segundo a tradição clássica. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

POLANYI, K. A grande transformação – as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Compus, 2000.

SANTOS, F. L. B. dos. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). São Paulo: Elefante, 2018


* EPITÁCIO MACÁRIO é professor de Economia Política na Universidade Estadual do Ceará; membro fundador do Centro de Estudos do Trabalho e Ontologia do Ser Social – CETROS.

 

https://espacoacademico.wordpress.com/2020/04/06/a-covid-19-e-o-neoliberalismo/




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