Crise do Estado de direito
A crise do Estado de direito: Pachukanis e a retirada da máscara
A teoria de Pachukanis revela que, em tempos de crise, o Estado de direito não passa de uma máscara do capitalismo
Publicado originalmente no Blog da Boitempo
Os abalos sofridos pelo Estado de direito, no Brasil e no mundo, têm mobilizado inúmeras reflexões. Tensões, disputas e conflitos internos e internacionais intensificam-se em um cenário de crise econômica, política, social e ambiental. O avanço da extrema direita global, com destaque para Donald Trump, o genocídio em Gaza e a propagação sem pudor de ideias reacionárias, dentre inúmeras outras mazelas, impõem uma realidade com tons apocalípticos.
Diante desse quadro, o discurso comumente encampado pelos chamados progressistas é o da necessidade de restauração dos cânones democráticos, considerados por muitos um freio para os desmandos fascistóides. Inegavelmente, antes a democracia burguesa, com todos os seus limites estruturais, do que o fascismo, que escancara a política capitalista em sua forma mais horrenda. Ocorre que, consoante o preciso diagnóstico do revolucionário soviético Evguiéni B. Pachukanis — incontornável pensador marxista das formas jurídica e política estatal —, a retirada da máscara do Estado de direito, por parte da burguesia, em momentos de crise, explica-se pela própria estrutura do capitalismo. Como placas tectônicas indelevelmente instáveis e fraturadas, as formas sociais do mundo burguês, em seus processos críticos de acomodação, causam terremotos que facilmente destroem o frágil castelo da democracia liberal.
Direito, Estado e capitalismo
O jurista russo Evguiéni Bronislávovitch Pachukanis (1891-1937) inaugura a mais avançada compreensão acerca do direito e do Estado, com lastro na obra de maturidade de Karl Marx. Assim como Marx identifica na mercadoria o átomo da sociedade capitalista, Pachukanis enxerga no sujeito de direito o átomo da teoria jurídica.
A obra Teoria geral do direito e marxismo é um marco incontornável para a compreensão científica do papel do direito e do Estado no capitalismo. Nela, Pachukanis destrincha a especificidade histórica da forma jurídica e da forma política estatal. Diferentemente das leituras juspositivistas, não juspositivistas e até mesmo daquelas que se intitulavam marxistas, Pachukanis rompe com visões normativistas ou que restringem o direito unicamente ao poder e à luta de classes, avançando em um entendimento científico da forma jurídica, mediante o método de Marx. Do mesmo modo, traça as balizas teóricas para que a forma política estatal possa ser percebida em sua materialidade.
Em O capital, Marx constata que a sociedade capitalista se apresenta como uma “enorme coleção de mercadorias”¹. Pachukanis, por sua vez, observa que ela se revela também, por conseguinte, “como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas”². O pensador soviético ressalta que “o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico”³.
Diferentemente do que ocorre nos modos de produção pré-capitalistas, tais como o escravagismo e o feudalismo, nos quais a relação entre senhores e escravos ou servos, respectivamente, se dava de maneira direta, com distintas modulações, o capitalismo não prescinde da mediação jurídica. O escravizado estava jungido ao senhor por meio da força, tal como o servo, embora este último estivesse em uma situação peculiar, preso à terra e devendo obrigações ao senhor feudal, em um contexto social marcado pela ideologia religiosa. No capitalismo, por sua vez, o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista, dono dos meios de produção, em troca de salário.
Para que o vínculo entre burguês e proletário possa se estabelecer plenamente, é fundamental que tal relação adquira caráter jurídico, com cada um dos contratantes tomando a forma social de sujeito de direito. Assim, consoante a descoberta de Pachukanis, apenas no capitalismo constitui-se a forma jurídica como uma decorrência direta das relações de produção capitalistas. Os portadores de mercadorias encontram-se no mercado e a troca mercantil ocorre justamente através da mediação jurídica.
Marx, em O capital, já trata do processo de constituição da subjetividade jurídica, demonstrando sua intrínseca imbricação ao modo de produção capitalista. Contudo, isso é feito de maneira esparsa, bem como sem a devida sistematização e aprofundamento teórico. É apenas Pachukanis que efetivamente estabelece as bases teóricas para a crítica marxista do direito, demonstrando que o processo de extração de mais-valor forja as relações jurídicas, já que delas não pode prescindir.
O contrato que se estabelece entre capitalista e trabalhador permite a reprodução das relações de produção capitalistas. Daí, as noções de liberdade e igualdade, em aparente paradoxo, passam a ser tão apregoadas por influência direta da filosofia burguesa e isso se dá como consequência de uma materialidade social específica que constitui a subjetividade jurídica como base do vínculo entre os contratantes, permitindo que a troca mercantil e a valorização do valor possam se perpetuar.
Assim, a pessoa do proletário é igualada à pessoa do capitalista, “o que encontra sua expressão no ‘livre’ contrato de emprego”. Todavia, conforme observa Pachukanis, “é a partir dessa mesma ‘liberdade materializada’ que surge para o proletário a possibilidade de tranquilamente morrer de fome”⁴.
Por sua vez, o Estado se estabelece como garantidor das relações jurídicas. Com a derrocada do mundo feudal e a ascensão do Absolutismo na Europa, o Estado inicialmente se apresenta enquanto forma política híbrida, em um período de transição, até se constituir como um ente terceiro, separado das classes, estabelecendo-se como forma política específica do capitalismo.
Nos modos de produção pré-capitalistas, poder político e poder econômico não se encontravam estruturalmente apartados. Essa separação se dá somente no capitalismo, como uma decorrência direta de suas relações de produção e, ao mesmo tempo, permitindo sua reprodução.
O vínculo jurídico contratual que permite a perpetuação da exploração do trabalho assalariado necessita de uma forma política que não se confunda com os contratantes, de maneira a lograr garantir as relações jurídicas. Por conseguinte, o Estado não se constitui em instrumento neutro, mas em forma específica do capitalismo, ou seja, o Estado é capitalista por sua forma, independentemente dos indivíduos que estejam ocupando o governo e as instituições estatais⁵.
Logo, “a dominação de classe não se apresenta como é, ou seja, a sujeição de uma parte da população à outra”, de modo que “o aparelho de coerção estatal não se constitui como aparelho privado da classe dominante, mas se destaca deste, assumindo a forma de um aparelho de poder público impessoal, separado da sociedade”⁶. Essa é a condição política necessária para que a exploração econômica no âmbito privado possa ocorrer livremente.
Democracia e formas sociais
A ideologia burguesa apregoa certo caráter de perenidade em seus institutos, como se direito, Estado e democracia sempre tivessem existido nas sociedades humanas. Contudo, o marxismo, enquanto ciência da história⁷, demonstra que as formas sociais capitalistas possuem caráter específico. Assim, ainda que, na Antiguidade, já se apresentasse o dikaion dos gregos ou o jus dos romanos, e que tais vocábulos imediatamente possam ser traduzidos por “direito”, na realidade há uma diferença estrutural e qualitativa entre aquilo que se denominava por direito nas sociedades pré-capitalistas em relação ao direito enquanto forma social específica do capitalismo⁸. Do mesmo modo se dá com o Estado, que só adquire o caráter de forma política específica e apartada das classes no modo de produção capitalista⁹.
Em relação à democracia, o pensamento burguês costuma seguir a mesma perspectiva de linearidade histórica. É comum que os tratados sobre democracia remontem à velha Atenas de Clístenes, como se dela emanasse uma continuidade com a atual democracia burguesa. Contudo, faz-se mister ressaltar que tal visão se mostra equivocada na perspectiva do materialismo histórico, na medida em que a democracia ateniense, não obstante o seu caráter inovador, apresentava-se como uma espécie de “clube de senhores”, da qual restavam excluídos mulheres e escravos, por exemplo. Ademais, naquele contexto histórico, direito e Estado, tais como hoje se apresentam, inexistiam, ainda que, em termos de vernáculo, se possa falar em um direito na antiga Grécia ou em cidades-Estado gregas.
Diferentemente do que se apresentava na Antiguidade grega e nas eventuais manifestações pré-capitalistas de modo geral, a democracia burguesa é fruto da conformação entre forma jurídica e forma política estatal, ou seja, se dá no bojo das relações de produção capitalistas, presididas pela lógica da mercadoria e da valorização do valor¹⁰. Assim, o talhe normativo estatal forja o sujeito de direito enquanto cidadão, ou seja, “os agentes econômicos são tornados sujeitos de direito e, como extensão dessa subjetividade para o plano político, cidadãos”¹¹.
Consoante observa Hirsch, “a exploração da força de trabalho para a produção da mais-valia está ligada à concorrência entre capitais e à existência dos assalariados como sujeitos livres no mercado e como cidadãos”¹². Logo, tal como aponta Mascaro, “o mesmo padrão que instaura a subjetividade jurídica também instaura a democracia eleitoral”, de maneira que “a livre disposição, no plano político, constrói-se de modo similar à autonomia da vontade do sujeito de direito”¹³.
Não obstante haja um estreito vínculo entre direito, Estado e capitalismo, tal não se manifesta sem conflitos e contradições. As próprias liberdades democráticas possuem limites bem estreitos, talhados pela forma política estatal. Assim, a capacidade de deliberação dos cidadãos jamais se alarga ao ponto de desmontar o coração da reprodução capitalista.
Além disso, diferentemente do que apregoam muitos pensadores burgueses, o capitalismo não é estruturalmente democrático, mas comporta igualmente ditaduras e fascismos. Com efeito, em um breve exame histórico, tal como constata Mascaro, “as situações de crise do capitalismo fazem explodir as lutas do capital contra a própria democracia”¹⁴.
A crise e a retirada da máscara
Pachukanis é categórico ao constatar os estreitos limites do Estado de direito, demonstrando que este se apresenta como máscara que rapidamente pode ser retirada pela burguesia nos momentos de crise e ameaça aos seus interesses. Nas palavras do pensador soviético:
“O Estado como fator de força tanto na política interna quanto na externa foi a correção que a burguesia se viu obrigada a fazer em sua teoria e prática do ‘Estado de direito’. Quanto mais a dominação burguesa for ameaçada, mais comprometedoras se mostrarão essas correções e mais rapidamente o ‘Estado de direito’ se converterá em sombra incorpórea, até que, por fim, o agravamento excepcional da luta de classes force a burguesia a deixar completamente de lado a máscara do Estado de direito e a revelar a essência do poder como a violência organizada de uma classe sobre as outras".¹⁵
Portanto, as tão apregoadas liberdades democráticas estão longe de possuir estabilidade plena, evidenciando a fragilidade do Estado de direito no capitalismo. Em momentos de crise, a retirada da máscara se dá de maneira evidente, demonstrando que a determinação, em última instância, é sempre econômica na sociedade capitalista.
O capitalismo estrutura-se na crise, dado que é atravessado por múltiplas contradições, considerando que sua reprodução se dá pela clivagem em classes que permite a extração do mais-valor e a acumulação. Ademais, a própria burguesia está longe de se constituir em um bloco homogêneo, mas se apresenta cindida em distintos setores e inserida em um processo no qual a circulação global de capitais é intrinsecamente concorrencial e conflitiva. Nesse contexto, as formas sociais que constituem esse modo de produção, embora sejam imprescindíveis para seu funcionamento, ao mesmo tempo podem se mostrar, em suas possíveis conformações, contrárias aos imediatos interesses dos distintos agentes da produção e da troca.
Conforme elucida Mascaro¹⁶, as crises no capitalismo podem se apresentar tanto na dinâmica econômica quanto na consecução institucional, sendo que, no primeiro caso, trata-se de crise de acumulação e, no segundo, de regulação. Além disso, podem surgir também crises estruturais, marcadas por profundas contradições entre os mecanismos de regulação e as dinâmicas de acumulação, ensejando desarranjos que chegam a prejudicar a própria reprodução capitalista de maneira ampla.
O capitalismo é constituído por formas sociais inerentes, de caráter geral e necessário para sua reprodução. No entanto, também possui formações sociais que representam dinâmicas e arranjos distintos no espaço e no tempo¹⁷. Assim, por exemplo, temos as peculiaridades da formação social brasileira em face da chinesa ou estadunidense, embora todas sejam presididas pelas formas sociais do capital. De igual modo, é possível observar que o capitalismo apresenta momentos distintos, tais como fordismo e pós-fordismo, por exemplo.
A ascensão da extrema direita em diversas partes do globo é um sintoma de crise estrutural do capitalismo, dado que o fascismo e movimentos a ele assemelhados não passam, em última instância, da tentativa desesperada de salvação da ordem burguesa em momentos de acirramento da luta de classes.
O caso brasileiro
No caso brasileiro, tivemos o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff¹⁸, com a fala tenebrosa do então deputado Jair Messias Bolsonaro, que exaltou Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais execráveis expoentes dos porões da ditadura militar. No mesmo contexto, deu-se a perseguição atroz contra o então ex-presidente Lula, por meio principalmente do lawfare, ou seja, o “uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”¹⁹, corporificado nos desmandos lavajatistas.
A resistência e a luta popular, bem como as próprias cisões existentes no seio da burguesia, lograram colocar freio parcial ao golpismo no Brasil, após o desastre da gestão Bolsonaro, com a reabilitação jurídica e política de Lula e seu retorno à Presidência da República²⁰. No entanto, o violento e coordenado ataque às sedes dos três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, revelou, mais uma vez, a fragilidade da democracia burguesa, especialmente nas condições específicas da formação social brasileira²¹.
A ação do Supremo Tribunal Federal, inegavelmente, teve papel decisivo tanto para conter os desmandos de Bolsonaro quanto o avanço do golpismo liderado pelo ex-capitão durante e após o período em que permaneceu na Presidência da República. Contudo, não obstante a fundamental relevância do papel do STF nesse caso, isso, por si só, não é suficiente para solucionar por completo a crise, considerando os limites estruturais das instituições no capitalismo.
O plano internacional
No plano internacional, o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos da América mostra a força e a capacidade de rearticulação da extrema direita na atualidade. Além disso, não se pode desconsiderar o fato de que as dinâmicas imperialistas são inerentes ao modo de produção capitalista, de maneira que Trump busca retomar o protagonismo estadunidense, fortemente abalado pela crescente ascensão econômica da China. Tal intento resta verbalizado em seu slogan “make America great again”, amplamente difundido em discursos e materiais de campanha, tais como bonés que, inclusive, fizeram literalmente a cabeça, de maneira vergonhosa, da extrema direita brasileira, demonstrando seu caráter subserviente.
A partir de uma análise materialista do fascismo, a chegada ao poder de pessoas como Mussolini, Hitler, Netanyahu, Trump e Bolsonaro, com o apoio do grande capital, confirma a constatação de Pachukanis de que “a burguesia, mesmo a mais liberal, está sempre pronta para fechar um acordo com qualquer um que lhe convenha, com qualquer condotiero […], bastando que seja capaz de salvar sua sagrada propriedade”²².
O avanço global da extrema direita está entrelaçado com as atuais dinâmicas imperialistas. Em linhas gerais, o imperialismo se apresenta enquanto “um movimento político e econômico, estabelecendo, entre Estados, territórios, sociedades e economias uma hierarquização com vetores de poder e submissão”²³. O imperialismo está necessariamente atrelado à forma política estatal, conquanto em arranjos diversos, em todas as fases do capitalismo.
No pós-fordismo, decorrente das transformações ocorridas na década de 1970, o capital internacional sobrepõe-se de maneira mais pronunciada aos Estados, com o predomínio do capital financeiro e especulativo, bem como com a internacionalização da cadeia produtiva e reprodutiva do capitalismo, em um contexto político neoliberal, marcado pelo aumento das desigualdades sociais e pela perda de conquistas históricas da classe trabalhadora.
As alterações sucessivas nas dinâmicas imperialistas ensejam toda sorte de conflitos. Ademais, o direito de guerra, no âmbito do direito internacional, decorre das próprias formas sociais do capital, conforme observa Pachukanis, de maneira que “o desenvolvimento do chamado direito de guerra não é outra coisa senão a consolidação progressiva do princípio da inviolabilidade da propriedade privada burguesa”²⁴.
Tal como constata Mascaro, “as formas políticas e jurídicas nacionais e internacionais, antes de serem forma de contenção da exploração, são justamente as formas que constituem e permitem a exploração capitalista no plano mundial”. Logo, “os atuais marcos jurídicos e institucionais espraiados são, antes de uma contenção do capital, a sua possibilidade de expansão ainda maior”²⁵. Nesse sentido, Pachukanis assevera que “a expansão e o desenvolvimento do direito internacional ocorreram com base na expansão e desenvolvimento do modo de produção capitalista”²⁶.
Na esteira de uma perspectiva pachukaniana, China Miéville aponta para a estrutural imbricação entre forma jurídica e violência²⁷, retomando, inclusive no título de sua obra Between Equal Rights²⁸, uma clássica passagem de Marx: “entre direitos iguais, quem decide é a força”²⁹.
Um caso paradigmático dos limites estruturais do direito internacional pode ser observado no genocídio do povo palestino perpetrado por Israel na Faixa de Gaza, conforme reconhecido pela Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU sobre o Território Palestino Ocupado. Consoante observa Ilan Pappe, desde o período das tratativas da criação do Estado de Israel, “os palestinos entenderam o recado: o princípio da autodeterminação dos povos não se aplicava a eles”³⁰. E, na atualidade, o governo de extrema direita capitaneado por Benjamin Netanyahu leva o projeto sionista às últimas consequências, perpetrando horrenda limpeza étnica no território palestino, que busca, por fim, encampar definitivamente, com o apoio do imperialismo estadunidense liderado por Donald Trump e com o beneplácito do grande capital.
Assim, seja no holocausto do povo judeu perpetrado pela Alemanha nazista, seja no genocídio do povo palestino por Israel em Gaza, seja ainda na macabra combinação entre fascismo, imperialismo e neoliberalismo que espalha a miséria e a morte pelo mundo em nosso tempo, revela-se o fato de que “nunca houve nem há nenhum limite moral, ético ou humanista ao capital: a sociedade capitalista é apenas a sociedade da marcha da acumulação”³¹.
Conclusão
A superação definitiva da crise e de todos os monstros que dela eclodem, tais como o fascismo, somente será possível com o fim do modo de produção capitalista. Assim, é imprescindível a ruptura com as formas sociais capitalistas para que as mazelas de nosso tempo sejam definitivamente deixadas para trás. Pensar de outro modo seria acreditar na célebre anedota narrada sobre o Barão de Münchhausen, que teria saído do afundamento em um pântano puxando pelos próprios cabelos.
A luta pelo Estado de direito, pelas liberdades democráticas, pelos direitos humanos e sociais, tem grande relevância no plano imediato. Com efeito, o mínimo respeito aos direitos humanos e às normas de direito internacional, por exemplo, pode fazer a diferença entre a vida e a morte da população de Gaza. Ou, ainda, quando recordamos toda a desgraça causada pela caótica gestão de Bolsonaro em face da pandemia, no Brasil, facilmente constatamos que a tragédia teria sido ainda maior se não fosse o direito constitucional à saúde, corporificado no SUS.
Nesse sentido, é fundamental a constatação de Pachukanis de que a luta contra o fascismo não pode esperar. Nas palavras dele:
“Propor a luta contra o fascismo até o momento em que estiverem evidentes todas as prerrogativas para a tomada do poder pelo proletariado significaria, em determinadas condições, condenar-se à passividade”³².
Contudo, o revolucionário soviético também aponta os limites estruturais das formas sociais capitalistas, dado que por elas se dão a exploração, as dominações e as opressões, advertindo, inclusive, que “o Estado fascista é o mesmo Estado do grande capital”³³.
Assim, não se pode apostar todas as fichas em um fortalecimento do Estado de direito, da democracia ou do direito internacional, por exemplo, como mecanismo suficiente para a resolução dos conflitos internos e internacionais. O verdadeiro e derradeiro combate deve se dar em face das formas sociais capitalistas.
O fim da miséria, do colapso ambiental e a obtenção da tão apregoada paz mundial, em um mundo constantemente sacudido por crises econômicas, políticas e sociais, apenas serão possíveis com a destruição do capitalismo, ensejando a construção de um novo arranjo social, no qual as máscaras do direito e do Estado não se farão mais necessárias, pois a era da mercadoria terá sido definitivamente ultrapassada. Nesse contexto, ter-se-á “a extinção do direito, e com ela a do Estado”, “quando finalmente estiver eliminada a forma da relação de equivalência”³⁴.
Com ciência e revolução, talvez logremos, após muita luta, vislumbrar a bela face de uma sociedade estruturalmente transformada, comunista.
Notas
1.MARX, Karl. O capital – Livro I. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 113.
2. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 97.
3. Ibid., p. 124.
4. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 158.
5. Ver MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
6. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 143.
7. Ver MAGALHÃES, Juliana Paula. Marxismo, humanismo e direito: Althusser e Garaudy. São Paulo: Ideias & Letras, 2018.
8. Ver MAGALHÃES, Juliana Paula. Crítica à subjetividade jurídica: reflexões a partir de Michel Villey. São Paulo: Contracorrente, 2022.
9. Ver MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
10. Ver Ibid.
11. Ibid., p. 85.
12. HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Tradução de Luciano Cavini Matorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 35.
13. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 86.
14. Ibid., p. 89.
15. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 151.
16. Ver MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
17. Ver Id. Sociologia do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2023.
18. Ver Id. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018.
19. MARTINS, Cristiano Zanin; MARTINS, Valeska Teixeira Zanin; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020, p. 21.
20. Ver MAGALHÃES, Juliana Paula; OSÓRIO, Luiz Felipe (Orgs.). Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país. São Paulo: Boitempo, 2023.
21. Ver MASCARO, Alysson Leandro. Sociologia do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2024.
22. PACHUKANIS, Evguiéni. Fascismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 36.
23. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 101.
23. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 123, nota de rodapé.
24. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 104.
25. PASHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. International Law. In: BEIRNE, Piers; SHARLET, Robert (Org.). Pashukanis: Selected Writings on Marxism and Law. London: Academic Press Inc., 1980, p. 171, tradução minha.
26. “Compreender, como Pachukanis claramente faz, que o roubo (posse não consensual da mercadoria de outrem) anda ‘de mãos dadas’ com o comércio (troca consensual de mercadorias), significa compreender que a violência está implícita na forma mercadoria, e consequentemente na forma jurídica.” (MIÉVILLE, China. Coerção e forma jurídica: política, direito (internacional) e o Estado. Tradução de Pedro Eduardo Zini Davoglio. Revista InSURgência, Brasília: ano 2, v.2, n.2, 2016, p. 366. Disponível em: [link]. Acesso em 12 set. 2023).
27. Id. Between Equal Rights: A Marxist Theory of International Law. Leiden; Boston: Brill, 2005.
29. MARX, Karl. Op. cit., p. 309.
30. PAPPE, Ilan. Brevíssima história do conflito Israel-Palestina. Tradução de Alexandre Barbosa. São Paulo: Elefante, edição do Kindle.
31. MASCARO, Alysson Leandro. Crise e pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020, edição do Kindle.
32. PACHUKANIS, Evguiéni. Fascismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 55.
33. Ibid., p. 26.
34. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 79.