Declínio das ideologias e da política
Declínio das ideologias e da política
A palavra “política” vem do grego pólis e, desde sempre, debate o princípio de organização da cidade e as visões dos atores sociais. A política não se resume à questão do poder, mas se exprime na predominância de um grupo social sobre os demais. Em São Paulo ou Porto Alegre, um divisor sobrepõe os interesses das mega-construtoras que veem nas metrópoles a oportunidade de especular e lucrar às genuínas demandas da população, que batalha por espaços de convivialidade ambiental, pluralismo de ideias e diferentes estilos de vida. Tal polarização é o nó górdio urbano. A novidade é a tendência sócio-intelectual que reatualiza Pierre Birnbaum, em La fin du politique, livro publicado há cinquenta primaveras acerca do desejo de zerar o amanhã, para perpetuar as antigas hierarquias.
Entre os séculos XVII e XVIII, acreditou-se que cabia à razão tomar a direção dos movimentos de renovação política e social, conforme os especialistas destacam ao esmerilhar o período na Europa. No século XIX, o racionalismo esmorece com o advento em cascata de revoluções nos anos 1820, 1830, 1848 e 1871. Entra em cena a narrativa das ideologias: as progressistas que dão significado à história e, as conservadoras, que pregam o funcionamento natural e ininterrupto do corpo social.
No século XX, o fascismo galvaniza o reacionarismo lampedusiano em face da possibilidade de mudanças. Por abdicar do preceito normativo próprio da filosofia e da teoria política, a razão perde de vez a autonomia e o potencial para alterar o jogo; assume um caráter instrumental. O prestígio do pragmatismo deriva do que Max Horkheimer alerta em Eclipse da razão – “o reflexo da sociedade que não tem mais tempo para se lembrar e meditar”. A realpolitik preenche brechas para melhorar o presente em conjunturas de correlação de forças desfavorável, sem acirrar aqueles enfrentamentos que provêm da divisão em classes sociais. Em tese, alianças e concessões na adversidade obedecem a uma estratégia de acúmulo de musculatura para a reinvenção do futuro; quando não tropeçam.
No século XXI, a ascensão da extrema direita conduz ao esvaziamento da reflexão crítica, em troca da subjetivação antipolítica. A meta de solidariedade nas relações sociais se desmancha no ar. O útil torna-se a categoria para representar a realidade e atender a urgência do concreto. O americanismo enaltece o utilitário, o tecnológico, o self-made man. Influenciadores digitais monetizam a fantasia do empreendedor que se faz sozinho, sem depender das ações estatais. Viralizam os finalismos pós-modernos: o fim da luta de classes, o fim das ideologias, o fim da política. O fim do horizonte.
Uma mensagem clara
Nos Estados Unidos, métodos quantitativos são o critério da revelação da verdade. A Universidade de Chicago estimula os economistas a usarem o termo “behaviorismo”, de preferência à “ciência social”, para esconjurar a conotação socialista e obter financiamentos da administração federal. O não mensurável ou controlável fica na estante da metafísica. A sociologia do (des)conhecimento impacta as disputas políticas ao abstrair a vocação mudancista, na expectativa de atrair a simpatia da maioria. A inteligência artificial das Big Techs auxilia na coleta de dados para uma acomodação ao programa dos partidos. A trajetória diacrônica da teoria e da prática converge no silenciamento dos protestos, diminuindo o ardor por justiça social e dignidade transversal contra a necropolítica.
A mídia corporativa desconstitui os vetores que distinguem os rumos da sociedade, ao fiscalizar as “promessas” em cada eleição para readequá-las ao sistema. “A prefeitura deve usar dinheiro público para eventos de teor ideológico como o Fórum Social Mundial?”, pergunta um diretor-executivo da RBS, sem incluir o Fórum da Liberdade promovido pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE). A mensagem é clara; o mensageiro é ardiloso. O estratagema de quinta série determina a resposta. O projeto da esquerda é interditado, e o da direita é incensado. A “ética da responsabilidade” (fiscal) basta às autoridades. A “ética da convicção” (em ideais) é inútil, ultrapassada. Não há alternativa.
A hegemonia do dinheiro descaracteriza a atividade política; aparta-a do humanismo. O Le Monde Diplomatique denuncia o “pensamento único” propagado pelo neoliberalismo. A guinada da social-democracia ao Norte navega no Consenso de Washington, amplia a crescente frustração e exporta o ressentimento para o Sul, com a queda de renda da classe média e dos trabalhadores. Com o que o amor se recolhe à coxia e o ódio sobe ao palco da globalização, apresentada qual uma panaceia.
A aparência técnica e a-ideológica das deliberações demonstra o elã sebastianista para purificar o laissez-faire e expulsar o igualitarismo. A saga pragmática fornece oxigênio à miséria da política para espalhar o vírus que reproduz os retrocessos civilizacionais, aos quatro ventos. Os demagogos escondem o retorno à acumulação primitiva. Se Napoleão Bonaparte pôde rebatizar a “Praça da Revolução” como “Praça da Concórdia”, local da guilhotina em Paris; então o capital pode fraudar os valores fundadores da modernidade para salientar as antinomias contemporâneas. A saber, o progresso pessoal às expensas da coletividade, e a liberdade individual à revelia do bem comum.
O princípio-esperança
O positivismo não capta a especificidade metodológica da ciência social frente as ciências naturais:
(a) O caráter histórico dos fenômenos sociais, suscetíveis de alteração pela intervenção humana;
(b) A identidade parcial entre o sujeito e o objeto do conhecimento, que não pode ser ignorada;
(c) o fato de que os problemas sociais suscitam concepções antagônicas nas classes sociais e;
(d) As implicações da teoria para esclarecer a verdade e suas consequências transformadoras sobre o establishment. Nada disso é analisável no microscópio de um laboratório da biologia, ou detectável pela lente ortodoxa do monetarismo que ilude a forma da economia, com um conteúdo classista.
Como sublinha Michael Löwy, em Método dialético e teoria política: “As percepções de mundo das classes sociais condicionam a última etapa da pesquisa científica social, a interpretação dos fatos, a formulação das teorias, mas também a escolha do objeto de estudo, a definição do que é essencial e do que é acessório, as questões que colocamos à realidade e a própria problemática da pesquisa”. A barbárie tenta apagar os vestígios de classe na irracionalidade da “guerra cultural”, da “escola sem partido” e da “ideologia de gênero”. Já a desobediência civil olha para cima, e interpela os iguais.
A desideologização das ideologias e a despolitização da política permite o pacto das recherches com os mecanismos da dominação e, ainda, a pregação da fé no socialismo. A derrisão da imaginação profética para indicar caminhos desemboca em um desencantamento. Ao revés de questionar a teia sistêmica, muitos preferem descrever sua funcionalidade. A dialética da totalidade é estilhaçada em pedaços desconectados. A racionalização da ordem consagra o conformismo. A rebeldia se refugia nos bares. “No espelho / de relance / a cor do sonho / de ontem”, destila um haikai de Leminski.
As baixas taxas de sindicalização e militância anticapitalista são os sinais da época de declínio das ideologias e da política, perante a desindustrialização e o avanço do setor terciário (o comércio e a prestação de serviços). Sintomatizam o colapso da democracia e a alvorada dos regimes de exceção; o aumento da desigualdade e a era da depressão; a precarização do trabalho e a superexploração. O solo está fértil para a semeadura do horror. Donald Trump, Jair Bolsonaro, Javier Milei e o coach da cadeirada são criaturas sombrias do esgoto do individualismo neoliberal. A institucionalização dos conflitos fracassou. As luzes se apagaram. Faz escuro e ninguém canta. A festa acabou. E agora?
A via de transformação, hoje, se desloca do foco na propriedade dos meios de produção à gestão pública do Estado, em todos os níveis federativos. Para recuperar a noção de luta de classes, urge despertar a ideologia latente no campo popular, a participação cidadã. O apelo à ideologia manifesta dos clássicos não substitui as vivências. A participação social é o símbolo de uma experiência bem-sucedida de governança, sendo o elo organizativo para a emancipação do povo. O desafio está em superar a epistemologia empirista para transpor a consciência real e desenvolver uma consciência possível. O “princípio-esperança” carrega a energia necessária para vencermos a paralisia. Só assim o sentimento das manhãs poderá derrotar o apoliticismo que paira – soturno – sobre o nosso tempo.
(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul
FONTE:
https://sul21.com.br/opiniao/2024/09/declinio-das-ideologias-e-da-politica-por-luiz-marques/