Derrotados e vencedores
DERROTADOS E VENCEDORES
Como a eleição brasileira se conecta com as questões mundiais
Luiz Felipe de Alencastro | Edição 194, Novembro 2022
Este artigo encerra a série analítica sobre as eleições de 2022
Como ocorreu agora na campanha presidencial com o tema do meio ambiente, houve, na história contemporânea, acontecimentos políticos brasileiros que interagiram diretamente com pautas internacionais.
Com a proclamação da República em 1889 e a Constituição de 1891, o Brasil deixou de ser a única monarquia das Américas. Ao instaurar o regime federativo, ao revés de toda a tradição centralista republicana francesa e portuguesa, o Brasil se americanizou de vez. Considerado até então pelos pensadores latino-americanistas como quinta coluna das monarquias colonialistas europeias, o Brasil se aproximou de seus vizinhos. Campos Sales fez em 1900 a primeira visita oficial de um chefe de Estado brasileiro à Argentina, e o Rio de Janeiro sediou congressos latino-americanos. De início cultivada por juristas brasileiros e latino-americanos, a noção de latino americanismo impregnou em seguida economistas e sociólogos da Cepal, formando dirigentes e administradores que tiveram um papel instrumental na criação do Mercosul.
Outro acontecimento decisivo de interação do Brasil com a geopolítica continental e internacional ocorreu nos anos finais da Segunda Guerra. Apresentando-se como o único governo de país latino que tinha tropas combatendo ao lado dos Aliados na Europa, o Brasil ganhou destaque em Washington e Londres. Em julho de 1944, na Conferência de Bretton Woods, que instituiu o FMI e preparou a criação da ONU e do Banco Mundial, a delegação do Brasil se destacava entre os 44 países participantes. Assim, no começo do ano seguinte, na Conferência de Yalta, na Criméia, onde Winston Churchill, Franklin Roosevelt e Josef Stalin se reuniram para redesenhar a nova ordem internacional, o Brasil foi cogitado para ser o titular de uma sexta cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.[1] Visando facilitar a manobra diplomática junto a Moscou, Edward Stettinius, secretário de Estado norte-americano, se encontrou com Getúlio Vargas em Petrópolis para solicitar que o Brasil reconhecesse a União Soviética com quem cortara relações em 1917. Pouco depois, Brasil e urss estabeleceram relações diplomáticas. A morte de Roosevelt, próximo de Vargas, e a saída de Oswaldo Aranha do governo, assim como a irrupção da Guerra Fria, puseram um termo ao projeto, ressuscitado posteriormente nas duas presidências de Lula.
Um terceiro episódio, o golpe militar perpetrado em 1964, em plena Guerra Fria, foi saudado por órgãos influentes da imprensa ocidental como uma vitória contra a subversão comunista mundial, promovida pela URSS, mais ainda, pela Cuba castrista, considerada com a vanguarda soviética na América Latina. Lincoln Gordon, então embaixador norte-americano no Brasil, declarou: “Os historiadores do futuro poderão registrar a revolução brasileira [de 1964] como o fato mais decisivo da vitória pela liberdade em meados do século XX”.[2]
Enfim, no domingo, 30 de outubro, a eleição realizada no Brasil, que tem o quarto maior colégio eleitoral do mundo, também impactou a política internacional ao ser analisado sob o prisma da policrise. Popularizado mais recentemente pelo historiador britânico Adam Tooze, o conceito define a ocorrência simultânea de crises sistêmicas – instabilidade financeira, entraves ao comércio internacional, implicações da pandemia de Covid, degradação do meio ambiente, instabilidade climática, erosão de regimes democráticos, guerra na Europa sob ameaça nuclear –, que interagem e põem em perigo o equilíbrio social e natural terrestre.
Nesta ordem de ideias, temida por sua política de desmatamento na Amazônia, a reeleição de Bolsonaro se apresentava como um fator agravante da mutação climática planetária e, desde logo, como um componente imediato da policrise.[3] Tal foi o significado da veemente tomada de posição de importantes jornais ocidentais, do New York Times ao Le Monde, interpretando a eventual reeleição de Bolsonaro como uma ameaça planetária. Confirmando este ponto de vista, horas depois da vitória de Lula, afluíram mensagens de congratulações enviadas por dezenas de governantes de países dos cinco continentes, incluindo os dirigentes da União Europeia, que explicitaram a centralidade da questão climática. Do outro lado do mundo, o primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, saudou a “tremenda vitória” de Lula, acrescentando que deseja colaborar com o novo presidente brasileiro na preservação do meio ambiente planetário. Annalena Baerbock, ministra do exterior da Alemanha, foi mais enfática, declarando, sem menção aparente a Lula, que havia dois grandes vencedores no domingo à noite: a democracia brasileira e o “clima mundial”. “Clima mundial” aparece aqui como um princípio tão transcendente quanto o tema da “paz mundial”, nos documentos oficiais do pós-guerra. O histórico dos incidentes entre o governo Bolsonaro e o Fundo Amazônia, financiado pela Alemanha e, mais ainda, pela Noruega, constitui um bom exemplo dos custos que a política bolsonarista impôs ao país.
Criado em 2008 e gerido pelo BNDES, o Fundo Amazônia se destina ao manejo florestal, preservação ambiental e monitoramento de atividades na Amazônia legal. Contando com 3,1 bilhões de reais doados principalmente pela Noruega (93,3%) e, numa menor medida pela Alemanha e pela Petrobras, o Fundo teve sua gestão contestada pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O aumento do desmatamento na Amazônia, constatado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em 2019, suscitou um embate administrativo e um confronto diplomático. Negando que a degradação da Amazônia tivesse se acelerado, Bolsonaro declarou: “Estou convencido de que os dados de desmatamento são mentira”, dizendo ainda que o Inpe parecia agir “a serviço de uma ONG”. O incidente levou à demissão do diretor do Inpe, Ricardo Galvão, cujo nome está agora cotado para ser o ministro da Ciência e da Tecnologia do próximo governo Lula.
No plano diplomático, o desmatamento e o incidente com o Inpe levaram os governos da Noruega e da Alemanha a suspender o financiamento do Fundo Amazônia. Pouco depois da confirmação da eleição de Lula, houve uma inversão de expectativas. O ministro norueguês do Meio Ambiente confirmou que seu governo irá reativar o Fundo.
Caso tivesse sido reeleito, Bolsonaro prosseguiria na sua marcha bandeirantista, investindo contra os territórios indígenas e a preservação da Amazônia, visto que o agronegócio e as populações dos estados em que essa atividade é dominante constituem um dos pilares de sua base eleitoral. Resta que, como é sabido, o agronegócio está bem representado no Congresso e nos governos estaduais do Centro-Oeste, mas também no Sul e no Sudeste. Aqui há dois pontos a serem sublinhados. A ocupação grileira das terras públicas e dos territórios indígenas demarcados nunca foi exclusiva do latifúndio. Desde o século XIX, essa ofensiva sempre teve apoio popular, entre posseiros, sem terra e pequenos criadores e fazendeiros. Em segundo lugar, para além da mobilização do eleitorado urbano e periférico evangélico, Bolsonaro foi o primeiro líder oriundo de outras bases ultraconservadoras nacionais a se aproximar decididamente dos setores mais predatórios do agronegócio. Em seu livro revelador sobre a formação política do agronegócio, o antropólogo Caio Pompeia escreve que, em 2017, enquanto associações do setor discutiam se apoiavam Geraldo Alckmin ou João Doria nas presidenciais de 2018, Bolsonaro viajava por diversos estados para dialogar com lideranças de extrema direita da agricultura patronal, defendendo propostas “extremamente críticas à política ambiental, à demarcação de terras indígenas”, à reforma agrária e às restrições ao uso de armas.
Convém lembrar que a predação das florestas e de seus povos tradicionais foi erigida como doutrina dominante brasileira depois de ter sido formulada num relatório oficial do Ministério da Agricultura por ninguém menos que Oliveira Vianna. No texto Evolução do Povo Brasileiro, de 1923, que já analisei alhures, ele afirma: “Nessa obra de conquista civilizadora da terra, o bugreiro vence o obstáculo material, que é o índio nômade, povoador infecundo da floresta infecunda. Há porém um outro obstáculo jurídico, que é o direito de propriedade (…) É ao grileiro que cabe resolver esta dificuldade. É ele que vai dar ao colonizador progressivo, cheio de ambições e de capitais, o direito de explorar este tesouro infecundo. Para isso cria, pela chicana e pela falsidade, o indispensável título de propriedade. (…) O bandeirante antigo, preador de índios e preador de terras, rude, maciço, inteiriço, brutal, desdobra-se pela própria condição do meio civilizado em que reponta: e faz-se bugreiro insidioso, eliminador do íncola inútil, e grileiro solerte, salteador de latifúndios improdutivos. Exercem ambos, porém, duas funções essenciais à nossa obra de expansão colonizadora: e a ferocidade de um e a amoralidade de outro tem assim, para escusá-las, a magnitude incomparável dos seus objetivos ulteriores”. A “marcha para o Oeste” lançada por Getúlio Vargas em 1943, em pleno Estado Novo, e a abertura da rodovia Belém-Brasília, no governo de Juscelino Kubistchek, assim como o programa para sua malograda campanha presidencial em 1965, com o lema “A vez da agricultura”, não estavam longe de mentalidade desbravadora e predadora elogiada por Oliveira Vianna.
Mas há também outros impactos significantes da atual política brasileira. Na campanha, pela primeira vez, um presidente enfrentou no segundo turno um ex-presidente, acirrando o debate e as preferências de voto. Em 2018, pela primeira vez o eleitorado brasileiro elegeu um presidente de extrema-direita. Mesmo derrotado por uma pequena porcentagem Bolsonaro se consolida como uma grande liderança nacional, capaz de vencer eleições com candidatos a senador e a governador improvisados, como se viu em vários estados. Também pela primeira vez o eleitorado evangélico obteve uma posição de destaque nos setores ultraconservadores e no tabuleiro político brasileiro.
Há outros fatos mais prometedores. Primeiro, é preciso retornar ao momento de ruptura do regime ditatorial, nas eleições de 1974. No quadro do bipartidarismo imposto pelo regime, o MDB venceu nos principais estados e nas grandes cidades. Sobretudo, o partido emplacava 16 dos 22 senadores eleitos. A Arena, legenda que dava sustentação política ao regime, só elegia senadores em estados que, à exceção da Bahia, tinham pouco peso eleitoral, isto é, em Alagoas, Maranhão, Mato Grosso, Pará e Piauí. Daí a mudança introduzida pelo Pacote de Abril, imposto pela ditadura em 1977. O quociente eleitoral calculado para o número de deputados passou a ser baseado não mais na quantidade de eleitores estaduais, mas na de habitantes, com a finalidade de aumentar a bancada dos deputados do Nordeste e do Norte, onde havia mais analfabetos.
Transformado em base do partido do regime, o eleitorado nordestino foi ironizado por analistas, jornalistas e até por políticos republicanos, como Tancredo Neves. Pensou-se que o Brasil podia evoluir para um regime próximo do modelo da Turquia, no qual um governo conservador/autoritário disporia de uma base eleitoral sólida nas zonas rurais conservadoras e religiosas para enfrentar o eleitorado mais progressista e laico das cidades. Sabe-se que a partir de 2006, com o Bolsa Família e a política social dos governos petistas, o quadro se inverteu. O Nordeste se transformou em base eleitoral do lulismo, na caracterização de André Singer. Acentuaram-se então as críticas no Congresso e na mídia aos governos petistas em razão de sua implantação em zonas desfavorecidas do Nordeste e das regiões metropolitanas. Em outubro de 2016, algumas semanas depois do impeachment de Dilma Rousseff, o ministro Gilmar Mendes, quando presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), declarou: “Com o Bolsa Família generalizado, querem um modelo de fidelização que pode levar à eternização no poder. A compra de voto agora é institucionalizada”. Embora já houvesse sido denunciado no processo sobre a corrupção na Petrobras (março) e no caso do tríplex (maio), Lula ainda não sofrera nenhuma condenação judicial e tudo indicava que se recandidataria à presidência em 2018. Na circunstância, a existência do Bolsa Família configurava um dilema para o governo de Michel Temer e, em seguida, para o governo de Bolsonaro: Como desmontar as bases eleitorais de Lula sem cortar o auxílio oficial às famílias pobres?
Ao arrepio da legislação eleitoral, o Congresso instituiu, por iniciativa do governo, um “estado de emergência” que deu lugar ao Auxílio Brasil e aos seus sucessivos aumentos e prorrogações. Armado com tais subsídios, a campanha bolsonarista contava arrebatar boa parte do eleitorado popular. Ora, como mostrou o instituto Datafolha, o apoio a Lula entre os beneficiários do Auxílio Brasil não cessou de aumentar, atingindo 61% dois dias antes do segundo turno. Tais dados sugerem uma interpretação diferente. Os eleitores consideraram que o Estado deve auxiliar os que atravessam dificuldades e ponto final: o apoio ao governo segure outra ordem de constatações.
Porém, as arbitrariedades e abusos eleitorais gerados pelo instalação do “estado de emergência” e o Auxílio Brasil deixaram sequelas, cujos efeitos nefastos podem ressurgir nas eleições municipais de 2024. Quem impedirá um prefeito candidato à reeleição de obter na Câmara Municipal o voto de um “estado de emergência” local – por causa de uma enchente ou da queda de uma ponte – autorizando-o a criar um auxílio municipal? A generalização de tais práticas contrárias à legislação eleitoral levantará questionamentos sobre o próprio instituto da reeleição nas três esferas de poder.
No meio da grande perplexidade dos analistas, dos equívocos dos institutos de pesquisa, das notícias alarmantes a respeito de milhões de fake news inundando os celulares brasileiros na véspera da eleição de domingo, a maioria do eleitorado popular manteve autonomia política e consciência cidadã. Entretanto, uma evidência se impõe: a união dos conservadores e da extrema direita sofreu uma derrota, mas os eleitores progressistas e os republicanos não são vencedores.
[1] Le Brésil sera-t-il reconnu comme sixième grande puissance mondiale?, Le Monde, 24/02/1945
[2] Clarence W. Hall, The Country that Saved Itsef, Reader’s Digest, reportagem especial, novembro de 1964, publicada nos Estados Unidos, no Brasil e em mais de uma dezena de países de diferentes línguas.
[3] Formulado em 1999 pelo sociólogo francês Edgar Morin, o conceito de policrise ganhou nova atualidade com os acontecimentos indicados acima. Veja-se Michael Lawrence, Scott Janzwood e Thomas Homer-Dixon, What Is a Global Polycrisis? And How Is It Different from a Systemic Risk?, Cascade Institute, discussion paper, #2022-4, Setembro 2022 (acessível online); Adam Tooze, Polycrisis: Thinking on the Tightrope, Chartbook #165, 29/10/2022 (acessível online).