Descolonizar a Consciência
Descolonizar a Consciência
por Isabel Oliveira - 29 de junho 2025
Torna-se vergonhoso que tenham de ser os civis a levar a humanidade nos braços, a correr riscos com gestos simbólicos desesperados, enquanto os seus governos se mantêm em silêncio.
É com surpresa e muita tristeza que me apercebo de que muitos, em Portugal, ainda normalizam a narrativa de que a guerra é necessária para alcançar a paz. Essa ideia profundamente perversa tem servido para justificar, vezes sem conta, a atuação violenta, desumana e destrutiva dos Estados Unidos e Israel no Médio Oriente. Assistimos à repetição de um discurso que apresenta opressores como vítimas, bombardeamentos como legítima defesa e ocupações como medidas de segurança. Essa inversão da realidade, difundida e aceite com inquietante passividade, exige que recusemos a indiferença e voltemos a pensar com lucidez.
O sionismo, enquanto projeto ideológico e político, é fundamentalmente um projeto colonial, de ocupação e exclusão. Sustenta-se, historicamente, na violência, na segregação e no apartheid. O que está em curso na Palestina não é um “conflito” entre duas partes iguais, mas uma ocupação colonial mantida por uma ideologia supremacista, que implementou um sistema de apartheid. E, como outros sistemas de opressão ao longo da história, deve ser enfrentado sem hesitações.
Muitas vozes proclamam solidariedade com a Palestina, mas evitam nomear o problema central: o sionismo. Assim como o apartheid na África do Sul foi uma construção ideológica que precisou ser desmantelada, o sionismo, enquanto forma de colonialismo e de racismo institucionalizado, exige uma crítica frontal e corajosa. Não é aceitável continuar a relativizar.
A chamada “solução de dois Estados” tem servido, na prática, como instrumento de adiamento e normalização da ocupação. A realidade mostra que essa solução está morta, se é que alguma vez esteve viva. A única proposta verdadeiramente justa e viável é a criação de um Estado único, democrático, laico e inclusivo, do rio até ao mar, onde todos: judeus, muçulmanos, cristãos e ateus possam viver em igualdade, liberdade e justiça. Um Estado sem apartheid, sem racismo, sem muros, sem checkpoints. Como explica Ilan Pappé em “The Ethnic Cleansing of Palestine”, a limpeza étnica levada a cabo em 1948 não foi um erro, mas parte integral do projecto sionista.
Importa afirmar com clareza: o sionismo não se resume a Netanyahu nem apenas ao atual governo israelita. Trata-se de uma ideologia global, que fomenta o medo, a polarização e a censura. Infiltra-se em democracias liberais com o objectivo de silenciar a crítica e associar qualquer solidariedade com a Palestina ao antissemitismo. Esta manipulação deliberada tem de ser desmascarada com coragem e lucidez.
Em Portugal, como em muitos outros países europeus, a política tem falhado em articular uma resposta firme e unificada. Falha também em representar a vontade popular de forma leal e consequente. O silêncio ou ambiguidade dos representantes políticos contrasta com a indignação crescente da sociedade civil. O receio de confrontar o sionismo de forma directa, a insistência em discursos ambíguos e a fragmentação partidária impedem a construção de uma posição sólida, popular e consequente.
Perante esta inércia política, tem sido a sociedade civil: colectivos, associações, académicos, estudantes, cidadãos comuns a assumir a responsabilidade de pressionar para que Israel páre o genocídio. A ausência de uma ação institucional séria torna ainda mais urgente o papel ativo da população.
A falta de representação da vontade popular nos governos e parlamentos é gritante. É inexplicável a inação política do Ocidente perante crimes tão evidentes. Torna-se vergonhoso que tenham de ser os civis a levar a humanidade nos braços, a correr riscos com gestos simbólicos desesperados, enquanto os seus governos se mantêm em silêncio. E, quando agem, enfrentam a repressão policial, o silêncio institucional e a hostilidade pública. Esta desumanização impune transmite uma mensagem perigosa à sociedade: a de que certas vidas não valem nada. E isso reflete-se na violência nas ruas, nas redes sociais, e no crescimento de partidos e grupos de extrema-direita, neofascistas, que se aproveitam da distorção do conceito de liberdade de expressão e da erosão da própria democracia.
É também imperativo que as empresas portuguesas deixem de fazer negócios com companhias israelitas ou com entidades cúmplices da ocupação. Ao continuar a lucrar com um Estado que pratica o apartheid e promove a violência, estão a enriquecer uma máquina de guerra e a legitimar décadas de opressão. Os grandes grupos económicos têm uma responsabilidade ética e social que não pode ser dissociada do respeito pelo direito internacional e pelos direitos humanos.
É precisamente nesse vazio institucional que floresce a necessidade de uma união real das forças progressistas, que assuma um compromisso de escuta ativa às comunidades, aos coletivos locais e aos movimentos de resistência. Não se trata de disputar hegemonias partidárias, mas de fundar uma ação conjunta guiada pela humildade e pelo propósito comum de emancipação.
É nas ruas, nos bairros, nas associações, nos colectivos antirracistas e anticoloniais, nos movimentos feministas e quer, que se constrói a solidariedade real com a Palestina.
Há muito a aprender com quem vive sob ocupação. Com quem resiste com dignidade. Com quem sonha liberdade mesmo diante de tanques e drones. O povo palestiniano resiste há mais de 75 anos e essa resistência é, em si, uma lição de humanidade.
E que fique bem claro: denunciar o genocídio na Palestina não é extremismo.
É humanidade.
É decência.
É o mínimo.
Do rio até ao mar, a Palestina será livre. Mas só o será quando formos capazes de nomear o inimigo: o colonialismo sionista. Quando se perder o medo de desmontar a narrativa dominante, enfrentar os interesses económicos e geopolíticos por detrás do apoio incondicional a Israel e recusar qualquer conivência com o apartheid. Quando o consumo e a consciência estiverem conectados, e exigirmos às empresas, governos e instituições que não compactuem com o genocídio.
Essa resposta não pode mais ser adiada. É urgente. É uma exigência ética, política e humana que nos interpela a todos pelo presente e pelo futuro das próximas gerações.
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