Desigualdades educacionais no Brasil
As desigualdades educacionais no Brasil: enfrentando-as a partir da escola
POR DA REDAÇÃO
Por Pilar Lacerda*, publicado originalmente no Observatório das Desigualdades
No ano 2.000, eu lecionava História em uma escola de jovens e adultos da rede municipal de Belo Horizonte (MG). Nas turmas da manhã e tarde, havia um número considerável de alunos e alunas que eram adolescentes, tinham sido “expulsos” das escolas regulares e foram estudar ali. O projeto pedagógico da escola era inovador e o grupo de professores engajados no projeto.
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Os casos e as histórias eram exemplos vivos de como os mais pobres, os mais indefesos e desorganizados são “expulsos” das escolas regulares. Ou sofrem múltiplas reprovações, ou desistem, ou não se acham capazes de estudar. Quando começamos a ter um olhar pedagógico baseado na concepção de educação integral, colocando os alunos no centro do nosso trabalho, exercitando a escuta e o diálogo permanente, fomos aprendendo (porque estamos sempre em formação) que a desigualdade também pode ser combatida a partir da escola e do seu projeto político pedagógico.
Ao entender as dificuldades com os horários da escola, incompatíveis com o trabalho de porteiro de hospital de um dos nossos alunos, começamos a flexibilizar as regras de entrada e saída. Ao perceber a dificuldade de jovens trabalhadores em realizar tarefas escolares de um dia para o outro, fomos definindo uma agenda compatível com a agenda deles (e não com a dos educadores, como tradicionalmente fazíamos).
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Um aluno de 16 anos, morador de uma comunidade pobre e violenta, era arredio e agressivo. Um dia, uma professora perdeu a paciência com ele e o chamou de “feio” (ele tinha as orelhas muito deformadas). Ele se revoltou, ameaçou matar a professora, crise armada. Conselho Tutelar, mãe, reunião do conselho de classe. Eu fui a uma das sessões com a psicóloga do Ministério Público da Infância e Juventude. Enquanto este jovem era entrevistado, eu fiquei em um banco com a mãe, esperando nossas entrevistas. Ali, naqueles 30 minutos, eu aprendi tanto sobre este jovem, sobre as condições de vida duras e violentas em que ele cresceu, da pobreza de morar em uma casa onde ratos entravam a noite e mordiam as orelhas das crianças (!), da luta deste jovem para proteger sua irmã do assédio do pai, da falta de comida, de cama para dormir… Ali estava um estudante vítima de uma sociedade que “naturalizou” a pobreza, o racismo, a exclusão.
Naquele momento, pude entender que nós educadores, não vamos conseguir distribuir renda, garantir moradia digna, prender pais abusadores… mas podemos sim, através da nossa prática, guiada pelo projeto pedagógico da escola, garantir que, ao conhecer cada estudante, com sua história única, tenhamos projetos personalizados para cada um, para que cada estudante se sinta seguro, estimulado, reconhecido, acolhido. Que ele não se sinta um estrangeiro ali, mas uma parte daquela comunidade escolar.
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Segundo Gabriela Thomazinho**, ao pensarmos em desigualdade educacional, não podemos analisar a partir de um simples fator, pois existem diferentes desigualdades quando pensamos em educação escolar. E cada tipo de desigualdade impacta diferentemente na desigualdade escolar, e, em um país como o Brasil, marcado por uma arraigada e indecente desigualdade social e econômica, os impactos serão quase sempre sobre os mais pobres, negros e periféricos.
Existe a desigualdade de não ter acesso ao sistema escolar, existe a exclusão dentro do próprio sistema, existem acessos a padrões diferentes de qualidade educacional e existe a desigualdade de tratamento – quando estudantes têm acesso a condições muito desiguais da oferta educacional, que deveriam ser, no mínimo, igual para todos. E o pior, e consequência dos fatores acima: a desigualdade de conhecimentos adquiridos.
Algumas políticas, como o Fundeb e o Piso Nacional Salarial de Professores, foram importantes para tentar diminuir a desigualdade e a iniquidade. Mas estas persistem e voltam a piorar, porque a desigualdade econômica e social tem aumentado e estamos regredindo aos níveis do final do século XX.
O quadro é agravado quando nos damos conta de que, frequentemente, os recursos educacionais têm uma distribuição regressiva, ou seja, beneficiam mais quem já está em melhores condições. Por exemplo, ao analisar os indicadores de infraestrutura escolar, percebe-se que a maior parte das escolas com infraestrutura boa ou ótima atende as parcelas mais ricas da população.
Diante deste cenário, fica claro que a desigualdade educacional deve ser considerada quando se pensam e formulam as políticas públicas. É preciso intenção política e educativa de que é necessário reduzir as desigualdades para garantir mais qualidade. Em um país como o Brasil, a busca da eficiência e do desempenho educacional só faz sentido se incorpora e expressa também a busca por justiça social.
O Plano Nacional de Educação tem algumas metas e estratégias que pensam na redução das desigualdades, como a estratégia 7.9, que busca reduzir a diferença nas avaliações de larga escala, e a estratégia 7.18, que define uma série de itens de infraestrutura que devem estar presentes em todas as escolas até o final da vigência do plano.
A discussão sobre os meios de reduzir a desigualdade educacional deve orientar e ser central nos debates e elaborações de políticas. Se na dimensão do acesso ela é mais objetiva, via ampliação do sistema público escolar, no âmbito da desigualdade de conhecimento ela é mais complexa, pois passa pela definição de quais conhecimentos devem ser adquiridos por todos os alunos brasileiros.
A partir das considerações do texto da Gabriela Thomazinho, podemos pensar em ações efetivas, tanto a partir do governo, da sociedade civil ou das escolas, que sejam efetivas para diminuir a desigualdade educacional.
No nível macro, precisamos estar organizados para reivindicar uma escola que tenha uma boa biblioteca, uma quadra, salas ambientes, pátios acolhedores. Banheiros limpos, comida boa, aulas todos os dias; professores com formação adequada e remuneração compatível com a importância da função.
Por isto temos que rever o projeto da escola, identificar quais práticas são excludentes e/ou elitistas, ensinar reconhecendo as diferenças, evitar a reprovação sem uma análise da trajetória do aluno e fazermos da reflexão sobre a nossa prática o espaço onde problemas podem ser resolvidos, atitudes reconsideradas, sem colocarmos nosso trabalho em um piloto automático. Ou seja, sem nos desumanizarmos.
Quando formos avaliar as cotas e outras políticas afirmativas, temos que levar em conta o papel inclusivo e democrático dessas políticas na redução das desigualdades.
A escola é o espaço do aprender, do criar, do querer ir mais longe. E isso não depende apenas dos estudantes, mas de todo posicionamento profissional que teremos, de engajamento ou não, de naturalização ou não.
Nós, educadores, não fazemos milagres dentro da escola. Porém, somos profissionais de um equipamento público que garante direitos e, articulado com outros setores, com o território e a comunidade, tem um papel estratégico para enfrentar a injustiça e a desigualdade.
*Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva graduou-se em História, em 1979 (UFMG). Em 2001, especializou-se em Gestão de Sistemas Educacionais, na PUC-Minas, foi professora de história da educação básica, de 1976 a 2001. Foi diretora do Centro de Formação dos Profissionais da Educação da Prefeitura de Belo Horizonte, de 1993 a 1996. Foi secretária Municipal de Educação da Prefeitura de Belo Horizonte, de 2002 a 2007. Elegeu-se presidente nacional da União nacional dos dirigentes municipais de educação (Undime), de 2005 a 2007, onde liderou o movimento nacional em defesa de recursos do Fundeb para a Educação Infantil. Foi Secretária de Educação Básica do Ministério da Educação de 2007 a 2012. Atualmente é diretora da Fundação SM Brasil.
** “Desigualdade na educação: um ponto a ser considerado nas políticas públicas”, de Gabriela Thomazinho, publicado em 30 de janeiro de 2017