Desmantelando o Brasil de Paulo Freire
DESMANTELANDO O BRASIL DE PAULO FREIRE
Em crise, educação de jovens e adultos (EJA) tem o menor número de matrículas em dezesseis anos
Amanda Gorziza|28 ago 2023
Em dezembro de 2022, Ana Paula de Lima estava finalizando os últimos trabalhos da escola, já pensando nas festas de fim de ano, quando foi surpreendida por uma notícia: seu colégio extinguiria, no ano seguinte, todas as turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) – modalidade de ensino voltada para pessoas que não puderam estudar na idade adequada. É o caso de Lima, gaúcha de 38 anos que, na adolescência, largou os estudos para trabalhar. Foi merendeira, faxineira, comerciante. Nunca mais tinha pisado numa sala de aula, até que, no ano passado, constatou que precisaria do diploma de ensino médio para prestar um concurso público. Resolveu então se matricular numa escola estadual da cidade onde mora, São Gabriel (RS), e vinha estudando com afinco. Até receber a notícia.
“Hoje em dia, todos os empregos pedem ensino médio completo”, lamenta Lima, que está desempregada, procurando trabalho há quatro meses. Com a extinção das turmas de EJA, o plano de conseguir um diploma foi adiado indefinidamente. Ela tinha acabado de concluir o equivalente ao 1º ano do ensino médio. Como o ensino de jovens e adultos é acelerado em relação ao ensino básico, Lima só precisaria estudar por mais um ano para se formar.
Em São Gabriel, onde vivem 58 mil pessoas, agora há somente uma escola pública com turmas de EJA, mas ela fica no Centro, distante do bairro onde Lima mora. Como as aulas terminam às onze da noite, horário em que não há mais ônibus circulando, a estudante teria de voltar a pé para casa todos os dias. É um trajeto de 50 minutos. “Não tem como andar sozinha a pé nesse horário, ainda mais sendo mulher. Por isso não quis ir para a outra escola, fiquei com medo”, ela justifica. “E não sou só eu. Uns quantos colegas também desistiram.”
A Educação de Jovens e Adultos lida, historicamente, com altos índices de evasão. Grande parte dos alunos trabalha durante o dia e, por isso, não consegue conciliar a rotina com os estudos. É comum que, pela dificuldade de aprender ou por não ver propósito em estudar, muitos desanimem no meio do caminho. Por isso, as turmas de EJA costumam encolher ao longo do ano letivo. As barreiras são muitas. Mas mesmo aqueles que conseguem superar tudo isso, como Lima, têm sido surpreendidos com problemas estruturais da educação no Brasil.
O número de matrículas da Educação de Jovens e Adultos é, hoje, o menor desde 2007. Naquele ano, havia 5 milhões de brasileiros matriculados nessa modalidade. Em 2018, o número já tinha caído para 3,5 milhões e, no ano passado, eram 2,7 milhões. A queda se deve, em boa medida, ao fechamento de vagas, como aconteceu na cidade de São Gabriel. Nos últimos dez anos, 28 mil turmas de EJA foram fechadas e 7,8 mil colégios deixaram de oferecer ensino para jovens e adultos. Em 921 municípios (16% do total), não há turmas de EJA.
A pandemia influenciou na diminuição de matrículas. A evasão no ensino público aumentou de modo geral nos anos de isolamento, e não foi diferente com a EJA. Mas, no caso dos jovens e adultos, o que está por trás desse fenômeno é também um esvaziamento de políticas públicas e, principalmente, cortes orçamentários. Um dossiê elaborado por entidades civis, entre elas a Instituição Paulo Freire, mostra que o investimento do governo federal na modalidade EJA, no ano passado, equivale a 3% do que foi investido em 2012.
“Quando observamos a rubrica de gastos específica para o apoio à alfabetização e educação de jovens, verificamos que foram destinados 342 milhões de reais para esse fim em 2012 e apenas 5,5 milhões em 2021”, mostram os autores do documento, entre eles Maria Clara Di Pierro, professora da Faculdade de Educação da USP que estuda a EJA há mais de trinta anos. A educação de jovens e adultos recebe só 0,04% dos investimentos em educação no Brasil, embora concentre 7% das matrículas da rede pública.
O corte de investimentos, agravado pelo apagão do MEC nos anos de governo Bolsonaro, afetou todas as modalidades de educação. Mas a área de jovens e adultos sentiu a corda apertar não só por esse motivo. A EJA também é afetada por uma disparidade no “fator de ponderação” do Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. Esse fator determina, a partir de uma série de critérios estabelecidos em lei, o volume de dinheiro destinado a cada etapa, modalidade e tipo de estabelecimento de ensino. Decide, por exemplo, que o investimento na educação em tempo integral deve ser mais alto do que na de tempo parcial, já que é uma modalidade de ensino que envolve maiores gastos.
A Educação de Jovens e Adultos tem o pior fator de ponderação dentre todas as etapas de ensino, sendo a única com índice abaixo de 1 (a escala vai de 0,8 a 1,95). A matrícula de um aluno da EJA vale 20% menos que a de um aluno das séries iniciais. Isso significa que, se uma escola recebe do Estado 100 reais por aluno das séries iniciais, recebe só 80 reais por aluno da EJA. O problema é que ambos representam, para o colégio, o mesmo gasto (com merenda, professores etc). Por isso, muitas secretarias de educação concluem que, do ponto de vista financeiro, não vale a pena manter turmas para o público da EJA.
“Isso acaba sendo um desincentivo”, explica Maria Clara Di Pierro. “Para um secretário de educação manter uma classe de EJA, ele tem os mesmos gastos que para manter uma turma de ensino médio. Mas o valor atribuído pelo Fundeb é menor.” Roberto Catelli, da ONG Ação Educativa, corrobora esse diagnóstico. “Infelizmente o gestor público muitas vezes entende a educação de adultos muito mais como ônus do que como bônus.”
O descaso com a Educação de Jovens e Adultos tem um gosto amargo no Brasil, sobretudo pelo fato de que, ao menos no universo acadêmico, o país é referência mundial no assunto. Isso se deve ao trabalho de Paulo Freire, um dos autores mais citados na academia até hoje, criador de um método inovador para a alfabetização de adultos, replicado mundo afora nas últimas décadas. Defensor do saber popular, Freire primava por um ensino baseado na relação horizontal entre professor e aluno, no qual um aprende com o outro. O estudante se familiariza com o alfabeto usando palavras ligadas ao seu cotidiano, ao ambiente em que vive, à sua rotina de trabalho. Na década de 1960, Freire coordenou um projeto que alfabetizou, em apenas 45 dias, cerca de trezentos jovens e adultos que trabalhavam com o corte de cana-de-açúcar em Angicos, no Rio Grande do Norte.
Em 2022, segundo o IBGE, 5,6% dos brasileiros com 15 anos ou mais eram analfabetos, patamar que nos coloca atrás de todos os grandes países da América Latina (no Chile, a taxa é de 3%; na Argentina e no Uruguai, só 2%). Há 9,6 milhões de brasileiros que não sabem ler ou escrever. O corte de investimentos em EJA colabora para que a situação não mude. Entre os brasileiros com 40 anos ou mais, 10% são analfabetos. Nas séries iniciais da Educação de Jovens e Adultos, que correspondem aos primeiros anos do ensino fundamental – e, portanto, às etapas iniciais da alfabetização –, a mediana de idade dos alunos é 46 anos.
Estima-se que há uma demanda potencial de 65 milhões de estudantes para a EJA no Brasil, número muito maior que o de matriculados atualmente (2,7 milhões). São pessoas que não concluíram o ensino fundamental ou médio na idade adequada ou nunca tiveram acesso à escola. “Para motivar uma pessoa a participar de um programa educativo, ela tem que ter um horizonte de mudança pessoal ou coletiva que a motive”, explica a professora Di Pierro. “A cultura do direito à educação ao longo da vida ainda está por ser construída em nossa sociedade.”
Normalmente, ao fechar turmas de EJA, o poder público alega que não há demanda. Cria-se, com isso, uma dinâmica que se retroalimenta. “Quanto mais escolas são fechadas, mais possíveis estudantes deixam de se matricular”, diz Roberto Catelli, da Ação Educativa. “A própria lei brasileira prevê que é necessária uma busca ativa. Não é só a pessoa que tem que ir atrás da escola. A escola também tem que ir atrás das pessoas.”
A professora Di Pierro e outros pesquisadores enxergam no Novo Ensino Médio um problema extra. A normativa que entrou em vigor no ano passado permite que até 80% das aulas de EJA sejam feitas à distância, o que dificulta que os alunos mais pobres acompanhem o conteúdo. “É uma unanimidade que o educando típico da EJA, com baixo grau de letramento e escolaridade irregular, é pobre e não tem acesso nem familiaridade com as tecnologias, muito menos autonomia para aprendizagem. Então, os arranjos que a gente tem visto são no sentido de empobrecimento, de fazer uma educação pobre para os pobres”, argumenta a professora da USP. Ela defende que o governo deve oferecer mais bolsas de estudo para viabilizar a permanência de um número maior de alunos na escola.
Depois de anos de apagão, o Ministério da Educação agora vem tentando recuperar a política de incentivo à Educação de Jovens e Adultos. Sob a gestão de Camilo Santana, foi recriada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), extinta no governo Bolsonaro, assim como a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (Cnaeja). O professor Roberto Catelli, da ONG Ação Educativa, comemora o que considera ser uma “reordenação institucional”. No entanto, o orçamento ainda é diminuto, e há dificuldades em recompor as equipes de trabalho.
“Agora estão reabrindo os canais de diálogo com a sociedade civil e com os estados e os municípios. Há uma retomada lenta”, atesta Maria Clara Di Pierro, da USP. A professora aponta que, além da necessidade de ampliar as turmas e as matrículas de EJA, há problemas estruturais que precisam ser resolvidos. Um deles é a baixa especialização dos professores que lecionam nessa modalidade. “Os cursos para educação de jovens e adultos são inadequados, parametrados pela educação de crianças e adolescentes”, afirma Di Pierro. “A educação de adultos, embora tenha sido reconhecida como direito no Brasil, ainda não tem uma normativa obrigatória para os cursos de pedagogia e licenciaturas.
André Chagas, diretor da escola onde Ana Paula de Lima estudava, em São Gabriel (RS), diz que a decisão de fechar as turmas de jovens e adultos veio da Secretaria Estadual de Educação. A justificativa? O baixo número de matrículas. O diretor se opôs à decisão, junto com outros moradores da cidade. “Fomos até a secretaria, pedimos apoio à Câmara de Vereadores e entramos com recurso na Promotoria Regional da Educação de Santa Maria”, ele conta. Por sua iniciativa, a escola fez circular pelo município uma lista de interesse para provar que havia potenciais estudantes para a EJA. Em torno de 120 pessoas manifestaram interesse. “A demanda existe”, conclui Chagas. “O desafio é manter os alunos na escola com a matrícula ativa.”
No Rio Grande do Sul, a quantidade de estabelecimentos que oferecem EJA diminuiu 19% em dez anos. Eram 1 234, caíram para 997. A única escola pública de São Gabriel que ainda oferece EJA corre o risco de ser municipalizada – isto é, deixar de ser gerida pelo estado e passar para as mãos da prefeitura –, o que vem causando preocupação entre os educadores, que temem um corte no número de turmas voltadas para jovens e adultos.
Chagas deposita suas esperanças na possibilidade de que, depois dos protestos, a secretaria estadual de educação se solidarize e retome a EJA em sua escola. Não houve, por enquanto, uma sinalização nesse sentido. Ana Paula de Lima não estuda desde dezembro.
Amanda Gorziza - Repórter da Piaui
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