Dez anos difíceis no RS
Dez anos muito difíceis no RS
ÁLVARO MAGALHÃES*
ANDRÉ SCHERER**
ADALMIR MARQUETTI***
A enchente de maio de 2024 atingiu o Rio Grande do Sul em um período no qual a economia gaúcha passa por elevadas dificuldades. Entre 2002 e 2023, o PIB brasileiro cresceu 20,3% acima do PIB gaúcho, como mostra a figura abaixo. A diferença aumentou, principalmente nos anos em que tiveram secas seguidas, como em 2004-05 e 2022-23.
A década atrás escrevemos que nosso estado estava em um momento delicado, de transição. Mas nem os piores cenários que só imaginávamos eram tão difíceis quanto a realidade que vivemos desde então. Crises simultâneas caíram sobre nossas cabeças.
Em 2014 coordenamos uma publicação conjunta da Secretaria do Planejamento do RS (Seplag) e da Fundação de Economia e Estatística (FEE) intitulada “RS 2030 – Agenda de Desenvolvimento Territorial”. A cada quatro anos a Seplag, por meio de seu Departamento de Planejamento (Deplan), promovia estudos prospectivos com vistas a embasar outras peças de planejamento, como os planos plurianuais. Desta vez a secretaria fez uma parceria com a FEE e o estudo foi produzido por nossas equipes técnicas e por nós diretamente.
No estudo indicávamos que algumas tendências punham em xeque a vitalidade do desenvolvimento de nossa região, de nosso estado. A queda da natalidade associada a um histórico saldo migratório negativo (mais saídas do que entradas de pessoas) levavam claramente ao envelhecimento da população de uma das regiões brasileiras de ocupação tardia. O Rio Grande do Sul é o estado do Brasil em que a população começará a declinar mais de maneira mais precoce. Isso, que houve uma migração em direção ao Polo Naval de Rio Grande, oportunidade que foi dizimada nos anos seguintes.
Figura: Quanto o crescimento da economia brasileira foi superior ao da economia gaúcha desde 2002, %
Apontávamos que o futuro de nossa indústria de transformação dependeria do desempenho da economia brasileira em geral e particularmente da demanda de bens de capital aqui produzidos. Já tínhamos sido celeiro da nação e nos consolidamos como ofertantes de bens intermediários e de capital com grau de tecnologia embarcada razoavelmente alto. Isso garantia uma renda média relativamente alta, inclusive nas cidades “de serviços”, como a capital. Mas havia já o perigo da especialização em monoculturas como a da soja, com as consequências conhecidas.
Porém, as tragédias foram se sucedendo e a atual enchente de 2024 coloca o Rio Grande amado à nu no cenário nacional, mas como um lugar despreparado para cuidar de si. (E pensar que entre nós, há ainda defendem a ideia de um que um passado supostamente glorioso em cima de um cavalo daria condições de nos separarmos do Brasil. Hoje, o símbolo é o salvamento do cavalo Caramelo.)
Primeiro veio uma longa crise econômica da qual ainda não saímos. Essa crise começou em 2008, mas até 2014 o país conseguiu resistir relativamente bem. Em 2015, nossa Pink Tyde, iniciada na década anterior começou a ruir. Com a queda da Presidenta Dilma Roussef, a crise aprofundou-se muito por conta das diretivas de política econômica. A reforma trabalhista conjugada com uma nova reforma previdenciária rebaixou as condições do mercado de trabalho e a renda média da população. Tivemos um retorno tardio do neoliberalismo. As condições atuais de trabalho são tão ruins que muitos preferem a precarização e serem escravos dos sistemas, das plataformas digitais.
Desde a redemocratização do País até o ano da publicação do RS2030 a grande questão a dividir posições era sobre que Estado deveríamos ter, em especial a polêmica em torno das privatizações de serviços públicos. No sistema partidário a polarização política deu-se em torno da alternância entre PSDB e PT, que exerceram a Presidência da República entre 1994 a 2016.
A partir de meados da década passada houve a ascensão de movimentos e políticos da extrema direita, em uma nova aliança entre os autoritários (a propor o enfraquecimento das instituições democráticas e a instalação de regimes autoritários) com uma visão neoliberal extrema na condução das políticas econômicas. O período entre 2018 e 2022 apresentou essa extrema direita assumindo o poder político no Brasil.
Para aumentar a dramaticidade do que foi vivido neste período, abateu-se sobre o mundo a epidemia da Covid-19. Paradoxalmente, a pandemia mostrou a capacidade do Sistema Único de Saúde e da comunidade envolvida com a política de saúde pública e, também, a capacidade de resistência da estrutura política em três poderes e três níveis federados. Ainda estamos no período de recuperação deste período que culminou com a tentativa de golpe de Estado do final de 2022 e início de 2023.
O período iniciado com a queda do governo Dilma foi marcado também por um desmonte institucional/administrativo, em que se fragilizaram as capacidades de formulação e implementação de políticas públicas, em especial nos executivos dos três níveis federados. O governo Ivo Satori (2015-2018) enviou um pacote de leis de extinção de fundações, entre elas a própria FEE – que fazia pesquisas socioeconômicas, além de apoiar o sistema de contas públicas; e as fundações especializadas em Pesquisa Agropecuária; de Ciência e Tecnologia – Cientec; a Fundação Cultural Piratini (radiodifusão), a Fundação Zoobotânica e a Fundação de Planejamento Metropolitano e Regional. Em período mais recente, houve mais privatizações de serviços públicos e um desmonte na legislação ambiental gaúcha.
No plano federal, instituições de ensino, pesquisa e extensão foram severamente atacadas pelo próprio governo, além de instituições culturais e de planejamento governamental. Com isso, nossas capacidades de análise de situações e de planejamento territorial e setorial foram em muito diminuídas, quando não simplesmente extintas.
O atual desastre climático coloca à nu uma outra fragilidade que foi construída ao longo dos anos: a da repartição de responsabilidades entre os entes federados. Estudo publicado em 2019[i] examina particularmente casos de projetos de infraestrutura viária urbana e metropolitana que foram descentralizados em relação a outros executados diretamente. As conclusões apontaram que quanto maior o número de contratos e atores a serem gerenciados e coordenados, maiores são as chances de fracasso dos projetos.
Com a ampla cobertura jornalística da grande enchente, o Jornal Nacional noticiou que pelo menos cinco projetos de contenção de cheias na região metropolitana que contavam com recursos federais no PAC II simplesmente não foram executados. Isso sem contar com os recursos a disposição da Prefeitura de Porto Alegre que não foram captados e utilizados para modernização do sistema de contenção de cheias. Associado ao desmonte institucional do período, temos uma vasta região do país que não tem boas capacidades de planejamento territorial e implementação de projetos, especialmente quando demandam obras hidráulicas.
As primeiras publicações dos dados do Censo Demográfico de 2022 apontam que as regiões do Rio Grande do Sul em que houve decréscimo de população aumentaram de tamanho. Pelo menos quatro concentrações urbanas gaúchas assistiram a uma queda populacional após 2010: Uruguaiana, Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre. Esta simples constatação associada às tendências apontadas em 2014 é suficiente para acionar um alarme sobre as condições de nosso futuro. Com os recorrentes desastres climáticos assolando o estado (secas, ventos e chuvas expressivos) como será o comportamento migratório nas diversas regiões do estado e no estado como um todo?
Teremos condições de reconstruir o Rio Grande do Sul em bases mais adequadas ao quadro de mudanças climáticas? Reconstruir nas diversas dimensões, que vão desde o monitoramento dos fenômenos, a emissão de alarmes, a orientação da população sobre o que fazer nesses casos. Reconstruir infraestruturas adequadas, desde habilitação popular às infraestruturas de transporte ou de proteção? Teremos condições de planejamento para termos disposições espaciais de uso do solo mais razoáveis do que temos hoje? Será que poderemos reverter a força predatória com que avançaram os capitais imobiliários e agrícolas no passado recente, fazendo com que a decisão de utilização dos terrenos seja feita em padrões mais racionais? Haverá condições de atrairmos investimentos e pessoas necessárias a um padrão de desenvolvimento razoável? Todas são questões que teremos de começar a responder no curto prazo, mesmo as aquelas que só trarão resultados em prazos mais largos.
[i] Ver em MAGALHÃES, A.P. Descentralização e arranjos institucionais no investimento em infraestrutura viária urbana e metropolitana: casos em Porto Alegre e sua região metropolitana. 2019, Porto Alegre, repositório Lume da Ufrgs.
* Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental aposentado e ex-Diretor do Departamento de Planejamento da Secretaria de Planejamento do RS (Deplan/Seplag).
** Ex-Diretor Técnico da Fundação de Economia e Estatística – FEE
*** Professor Titular do Departamento de Economia da PUCRS. Ex-Presidente da Fundação de Economia e Estatística – FEE
Foto: Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
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