‘Dia D’ das vítimas do Holocausto
Para as vítimas do Holocausto, ‘Dia D’ chegou tarde demais
Há 76 anos, quando a invasão da Normandia aconteceu, mais de cinco milhões de judeus já haviam sido mortos pelo regime nazista e seus colaboradores
Neste sábado, 6 de junho de 2020, o mundo lembrará os 76 anos da Operação Overlord, reconhecida como a maior invasão anfíbia da história, mobilizando mais de 160 mil tropas aliadas no ar, terra e mar.
A ação na Normandia, costa do Canal da Mancha a leste de Cherbourg e a oeste de Le Havre, na França, foi fundamental para o sucesso das forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. A data entrou para a história como o ‘Dia D’.
Ali, vencendo a ‘Muralha do Atlântico’, erguida pelo III Reich, se abriu, finalmente, uma robusta frente na Europa Ocidental, marcando o início do fim do domínio alemão na França (dois meses e meio depois, Paris seria liberada), além de colaborar para que, cerca de onze meses mais tarde, Adolf Hitler, com os russos à porta de seu bunker, em Berlim, se suicidasse (30 de abril de 1945) e, em 8 de maio, a Alemanha nazista se rendesse incondicionalmente, pondo fim ao sangrento conflito na Europa.
Por mais que o ‘Dia D’ tenha sido importante à vitória aliada, ele chegou tarde para alterar o destino de cerca de 2/3 dos judeus europeus. Até aquele momento, conforme o Memorial e Museu do Holocausto dos EUA, mais de cinco milhões já haviam sido mortos pelos nazistas e seus colaboradores. Até o fim da Guerra, cerca de um milhão se somaria à trágica conta.
Caminhos cruzados
Ironicamente, quando americanos, ingleses e canadenses estavam desembarcando na Normandia, a última grande comunidade de judeus na Europa ocupada, na Hungria, era deportada e assassinada. A maioria dos cerca de 440 mil judeus húngaros teve como destino o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polônia ocupada, onde, após a ‘seleção’, foram assassinados em câmaras de gás.
Aliados poderiam ter feito mais pelos judeus
Embora a política antissemita do partido nazista da Alemanha tenha sido implantada desde a chegada de Adolf Hitler ao poder, em janeiro de 1933, o assassinato em massa de judeus, de forma sistemática e cada vez mais organizada, começou a ocorrer em junho de 1941 (três anos antes do ‘Dia D’), a partir da invasão da União Soviética.
Desde então, conforme o Museu do Holocausto de Israel (Yad Vashem), o tamanho da barbárie (e seu registro por diversas fontes) só foi crescendo; não a ponto, porém, de promover ações efetivas das nações aliadas em defesa das comunidades judaicas.
Se é razoável supor que Estados Unidos ou Inglaterra dificilmente salvariam os seis milhões de judeus mortos pelo III Reich no Holocausto (entre 1933 e 1945), é igualmente imperioso reconhecer que as nações aliadas, incluindo a União Soviética, e outros atores, como a igreja católica, poderiam e deveriam ter feito mais para salvar o maior número possível de vítimas. Entre as medias possíveis, e não tomadas, estavam alterar exigências diplomáticas, facilitando a concessão de vistos aos refugiados judeus, especialmente antes, mas também durante a Guerra; além de ações de resgate em guetos e nos campos de concentração e extermínio, que, em regra, não saíram do papel sob a justificativa de que a dificuldade ‘logística’ seria descomunal, além de minar o ‘esforço de guerra’.
Os judeus ficaram dependentes, então, de ações de movimentos judaicos internacionais, da boa vontade de alguns governos exilados e de ações da resistência, que, sem uma articulação central, tinha alcance e resultados limitados.
Escalada de horror
Quando os americanos entraram na Guerra, em dezembro de 1941 - após o ataque japonês a Pearl Harbor, o regime nazista e seus colaboradores, a partir da ação das unidades móveis de extermínio (Einsatzgruppen) haviam, até então, assassinado 1,2 milhão de judeus na União Soviética.
Entre o fim de 1941 e ao longo de 1942, os nazistas abriram seis campos de extermínio na Polônia ocupada. Nem americanos ou ingleses chegaram a botar os pés em qualquer um deles enquanto a carnificina acontecia. Em vez disso, em novembro de 1942, as tropas aliadas optaram por centrar esforços na invasão da África, buscando enfraquecer e dividir o exército alemão - que penava contra os soviéticos no Leste europeu.
Fim dos campos, prioridade menor
Os campos de extermínio, ao final, ‘caíram’ ou foram destruídos. Nenhum, porém, devido a ações diretas de EUA ou Inglaterra.
Em junho de 1943, o campo de Belzec foi desativado pelos nazistas, deixando um saldo de 434 mil judeus mortos. Quatro meses depois, Treblinka, após revolta dos prisioneiros, seria encerrado e destruído, não sem antes computar 900 mil mortes. No mês seguinte, Sobibor, igualmente abalado por revolta dos prisioneiros, fecharia as portas deixando um rastro de 167 mil assassinatos.
Em julho de 1944, Chelmno foi encerrado: mais 172 mil judeus mortos. No mesmo mês, Majdanek (60 mil mortes), foi liberado pelas tropa russas, revelando intactas suas câmaras de gás. Em 27 de janeiro de 1945, o exército russo liberaria o complexo de Auschwitz, onde 1 milhão de judeus foram mortos (90% do total de vítimas do local).
Apesar de discussões dos aliados a respeito da viabilidade/interesse em explodir Auschwitz-Birkenau, ou as linhas férreas que conduziam os prisioneiros até lá, o local permaneceu de pé até seu ‘fim’. A justificativa era de que bombardeá-lo desviaria os militares de seu objetivo principal: vencer a guerra o mais rápido possível.
Detalhe: desde dezembro de 1942, a maioria das operações de extermínio, em Auschwitz e nos demais campos, já era de conhecimento dos líderes ocidentais. O Museu e Memorial do Holocausto dos EUA revela que o governo Roosevelt soube da morte sistemática de judeus quase tão logo a matança começou na União Soviética, em 1941. Em artigo na Revista Time, em 2018, a jornalista Lily Rothman afirmou que Roosevelt tomou suas decisões de modo consciente, optando por se “concentrar na derrota militar do regime nazista”, deixando o resgate das vítimas do Holocausto como uma “prioridade menor”.
Além deste aspecto, entende-se que muitas autoridades optaram por não agir com mais ênfase em defesa dos judeus temendo eventual retaliação dos alemães, que mantinham em campos de prisioneiros de guerra milhares de soldados aliados.
Departamento de Defesa dos EUA escondeu relatos
Também de acordo com o Museu e Memorial do Holocausto dos EUA, além da ação deliberada de Roosevelt, funcionários do Departamento de Estado norte-americano bloquearam, no início de 1943, novos relatos sobre o assassinato em massa de judeus, impedindo-os de chegar ao conhecimento público. Motivo: evitar o aumento da pressão para ajudar os judeus.
Em abril daquele ano, americanos e britânicos se reuniram nas Bermudas para discutir a possibilidade de resgate dos judeus europeus. Nenhum deles, no entanto, afrouxou as políticas restritivas de imigração ou tomou ação decisiva.
Apenas em 22 de janeiro de 1944, o presidente Roosevelt assinou ordem executiva estabelecendo o Conselho de Refugiados de Guerra (WRB), numa tentativa (tardia) de salvar vítimas da perseguição nazista.
Classificação
"Estamos na presença de um crime sem nome", informou o primeiro-ministro
britânico Winston Churchill aos ouvintes de rádio em 24 de agosto de 1941 - indicando saber o que acontecia, àquela altura, no Leste. Seu anúncio veio dois meses depois que a inteligência britânica teria recebido informações secretas sobre tiroteios em massa de judeus soviéticos.
O nome para o ‘crime’ referido por Churchill veio, no entanto, antes mesmo da guerra acabar. Um editorial de 3 de dezembro de 1944, no Washington Post, apresentou aos leitores uma nova palavra: genocídio, cunhada pelo imigrante judeu polonês, Raphael Lemkin. Ele definiu o termo como a destruição deliberada de uma nação ou grupo étnico.
2020
Independente da alcunha ‘genocídio’ e da bem-vinda (embora tardia) ação militar realizada no ‘Dia D’, a verdade é que os judeus jamais foram prioridade das nações aliadas, nem de outras grandes forças mundiais à época.
A omissão - tenha sido calculada ou furtiva - não deve ser apagada ou esquecida; especialmente neste confuso e atribulado 2020, quando o preconceito e o racismo continuam segregando (e matando), e líderes populistas, em meio à pandemia de coronavírus, aumentam o tom e voltam a ameaçar minorias. Calar, agora, pode levar a destinos trágicos, como nos anos 30 e 40 do século passado.
Descaso com judeus já era percebido antes da Guerra
Maio de 1939: Governo britânico restringe imigração na Palestina
No ‘White Paper’, 1939, os britânicos anunciaram suas políticas sobre o futuro status da Palestina, rejeitando o estabelecimento de um Estado judeu independente e restringindo a futura imigração judaica à Palestina. Em resposta, a imigração ilegal de refugiados à Palestina aumentou. As restrições não foram afrouxadas nem durante o Holocausto. Elas permaneceram em vigor, aliás, até a criação de Israel, em 1948.
Julho de 1938: Conferência de Evian
Delegados de 32 países e representantes de organizações se reuniram em Evian-les-Bains, cidade de spa na França, para discutir a questão dos refugiados judeus alemães. A exceção da República Dominicana, nenhum país se mostrou disposto a aliviar suas restrições à imigração. A maioria disse temer que um aumento de refugiados causaria mais dificuldades às suas economias. Hitler, a partir do infrutífero resultado da Conferência, ‘pintou e bordou’, sustentando que, a exemplo da Alemanha, os judeus também não eram bem-vindos nas demais nações.
Mais sobre o ‘Dia D’
# Sob o comando geral do General Dwight D. Eisenhower, as tropas tropas aliadas envolvidas na Operação Overlord, depois de deixarem vazar algumas ‘fake news’ quanto ao destino da ação, desembarcaram em cinco praias da Normandia: codinomes Omaha (onde as perdas chegaram a 3 mil vidas), Gold, Juno, Sword e Utah.
O ‘Dia D’, que foi pensado/discutido por cerca de dois anos antes de ser levada a cabo, registrou mais de 10 mil baixas para os aliados (3,7 mil entre as forças britânicas e canadenses e 6,6 mil entre as americanas), além de expressivo número de mortes de civis franceses. Os alemães perderam entre 4 mil e 9 mil homens.