Diário de uma professora
Diário de uma professora: como o afeto é a única forma de não enlouquecer
Um dia qualquer depois da hecatombe de 17 de março de 2020
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Por Fernanda Ferreira dos Santos* e ilustrações de Hermes Ursini
05h30 da manhã.
Acordo antes do despertador. Normal para o corpo que sempre esteve acostumado a acordar nesta hora. Professora há alguns bons anos, abrir os olhos antes de saírem os raios de sol é uma constante.
05h35.
Minhas abluções para aquele despertar ocorrer. O corpo levanta, mas a mente é um pouco menos automática que o corpo.
05h40.
Café preto, forte e amargo como a vida, tal qual um amigo meu sempre diz. Café para não esmorecer. Café para se lembrar da sala dos professores. Café para responder aquele WhatsApp que acabou de chegar vindo da orientadora. Ou da coordenadora. Ou da diretora. Ou de um colega.
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06h00.
Deixo na minha máquina de waffles minhas waffles super saudáveis veganas sem glúten plant-based. Computador aberto já. Sempre há um e-mail a responder, uma planilha a abrir, um Forms a se encontrar.
06h20.
Waffles prontas. Como com bananas, pasta de amendoim, nuts. Energia para enfrentar o dia. Como na frente do computador. Aqui estou eu mais um dia, sob o olhar sanguinário das plataformas. Teams, Hangouts, e-mail Gmail, Outlook. tudo aberto (é, dou aula em duas escolas….). “Sora, onde está minha redação corrigida mesmo?” “Está no seu e-mail do colégio, como todas que você recebeu até agora, gatinha.”
07h00.
Tenho a 1ª live da manhã, depois mais uma, depois mais uma. Três transmissões com a mesma aula. Será? É tudo virtual, igual. “Prof, no Forms está faltando uma das resoluções de um dos exercícios.” Sobe uma mensagem no Hangouts no computador, onde está aberto o Zoom em que eu estou dando a live. Sobe também uma mensagem do Teams. “Fê, não consegui conexão para entrar na live.” E é pipipi para lá, pipipi para cá, um monte de pipipi e janela que sobe enquanto falo para 40 câmeras em sua maioria fechadas. Enquanto minha voz ecoa no abismo solitário dos 31 m2 em que moro, hiperlinks sobem, abrem. “Caracas, cadê a página que eu ia espelhar agora?” é o pensamento desesperador que meu rosto transparece na gravação. No celular, ao lado, “bom dia” de grupos de colegas de área, “bom dia” do esquadrão, mensagem sobre o projeto de agricultura da série x, sobre o projeto de jornal da série y, os mesmos pipis do Hangouts e do Teams (é, vai ser gauche na vida, não bastava ter os aplicativos e as ferramentas no computador, tinha de baixar no celular também?). “Obrigada, gatinha, já vou colocar!”.
09h25.
“Ufa, vou ao banheiro.” Minha mente pensa, meus dedos levam o celular comigo. Vamos começar a responder esses pipipis. “Obrigada, gatinha, já vou colocar!”. “Tudo bem que não conseguiu conexão, é a vida, há dias de luta, há dias de glória, de acordo com os filósofos contemporâneos.” De luta. De luta. Ressoa em minha cabeça. “Fê, você pode me dar uma opinião sua sobre esta situação?” “Claro, gatona, ouvindo, já ligo, deixa eu responder a orientadora aqui.”
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10h00.
Vamos lá. Aula de gramática para gravar. Meia hora depois, pronto gravei. Opa, chegou a gravação no e-mail. NÃO!!!! Não creio. Gravei sem som. Respira, inspira. Café. responde a mais mensagem. “Fê, não tem nada a ver com a matéria, mas o que você acha da questão dos pronomes neutros?”. Gravar de novo a aula, fazer o quê? Mamãe sempre diz, “quando a cabeça não pensa, o corpo…..”. Padeço, de cansaço, a cabeça às vezes não pensa mais mesmo, e o corpo, bom o corpo, resiste.
11h30.
Bom, de repente fez-se o som! Luz, câmera, ação e pronto! Gravado com sucesso, upload com sucesso, postagem programada com sucesso no Classroom. Só sucesso. Vou treinar rapidinho antes da 1ª live da tarde. É, é isso. “Oi, a academia está vazia ou tem gente lá? Perfeito, descendo para pegar a chave!”. Toco a maçaneta, vou liberar endorfina. “Ah, não, tenho até meio-dia para postar os roteiros para os 8º anos.” Abre Teams. Equipe A. Cria pasta “Semana xxxxx”, cria pasta “Produção Textual”, upload de arquivo. Equipe B. Idem. Pipipi, pipipi. “Não, querido, não pode entregar pelo chat.” Equipe C. Idem. Equipe D. Idem. Pipipi pipipi. “Ok, colegas, achei bem relevante essa contribuição para o projeto.” Equipe E. Idem. Equipe F. Idem. Pipipi pipipi. “Prof, não consigo subir o vídeo no Flipgrid.” “Que mensagem deu? Manda print da tela!” (por que peço isso?? Eu lá sou do TI, como vou entender o erro indicado?). Equipe XXZZZZZZZZZZZZZZ…………. Idem.
11h50.
Agora vai. Vamos começar de cardio. Isso, bicicleta, assim dá para responder mensagem. Ler um livro? Quem sabe. “Por que fui dizer que ajudava com as aulas especiais de obras do vestibular?”. “Ler quando????”. Vamos que vamos. Reabro O Estrangeiro. “Há quantos anos não nos encontramos, Meursault?”. A perna pedala no automático. Pipipi pipipi. “Sim, pode ligar.” “Ok, sim, sim, dividamos os alunos em grupos para o projeto”. “Ótima a divisão, mas acho que beltrano fica melhor aqui, ciclano ali.” “Ótimo, perfeito, posto logo mais.” E assim já acabou meu breve encontro com Meursault, quem sabe mais tarde, também não tão tarde, a aula será daqui a cinco dias. Isso, puxar ferro agora. Dia de inferior. “Pesado.” Vamos sem pensar muito.
12h10 já.
Corre, corre, 13h10 na frente do computador de novo! Cadeira extensora, isso, 1ª série de 20. Corre para o agachamento, 1ª série de 20. Senta na extensora de novo. Pipipi pipipi. “Professora, o que mais posso fazer para me lembrar das regências sem decorar?”. “Ótima pergunta. Manda um oi no Whats para eu enviar um áudio sobre isso?”. 2ª série de 12, aumenta a carga. Manda o áudio. Agachamento. Ouve a resposta. Senta na extensora. Manda outro áudio. Agachamento. Extensora. agachamento. Olha o relógio.
Já nem faz mais pausa de 40 segundos entre uma série e outra. Corre, Fê. Corre. Pipipi pipipi. Avanço. Ponte com elevação de quadril. Stiff. Flexão de joelhos com caneleiras. Pipipi pipipi. “Muito bom esse sticker, kkkkk, salvo”. Glúteos. Glúteos. Suor. Suor. Pipipi pipipi. Manda áudio de novo. Respira. relógio. 12h40. Corre. Corre. “Fê, preencheu o semanário?”. “ Gatona, desculpa, esqueci pela 3ª semana seguida, abrindo as planilhas aqui, minutinho.” Adutor. Abdutor. Corre. Corre. Gêmeos. Pipipi pipipi. Trinta e três. Trinta e três. Trinta e três. “Então, doutor, não é possível desligar esse celular?” “Não, a única coisa a fazer é subir correndo e dar a próxima aula.”
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13h05.
Ligo o Zoom. Aceito os alunos. “Boa tarde, saudades.” Boa tarde para dezenas de quadradrinhos pretos. Espelho tela. Pipipi pipipi. Espelho outra tela. Ouço vozes que vêm da caixa sem rosto algum. Às vezes um. Às vezes mais de um. Muitas vezes nenhum. “Dúvidas? Não? Beijos então. Saudades.” Almoço chegou.
13h55.
Banho. 10 minutinhos só. Para de pipipi pipipi.
14h10 Chomp chomp.
Nhoc nhoc. Pipipi pipipi. Mensagem do Marketing. “Fê, tudo bem? Pode olhar este texto? Para postar no Insta. Ah, tem também uma carta para você liberar no seu e-mail.” Chomp chomp. Nhoc nhoc. Chamada de vídeo do WhatsApp. “É, eu sei, gatinho, saudades também.” Chomp chomp. Nhoc nhoc. “Não, mas hoje não vai dar, sorry.” Putz, reunião com o TI. Chomp chomp. Nhoc nhoc. Google Meet. “Vou fazer a reunião almoçando gente, sabe como é…” “Sim, sim, entendi. Legal. Sim, vou estudar isso. Acho que em três semanas consigo três horas seguidas num sábado ou domingo, sem perturbações, para fazer a prova para o certificado do nível 1 do Google for Education.” A boca solta isso, mas o cérebro se pergunta: “como?” e pipipi pipipi. “Não, mãe, não posso falar agora, em reunião. Sei sei, mas antes eu estava em aula, desculpa.” “Minutinho, deixa eu responder aos fofinhos aqui.”
15h00.
Opa, montar a proposta de redação modelo FGV das 3ªs séries da semana que vem. “Gente, o que está acontecendo no mundo? Ele ainda existe aí fora? qual foi a asneira do dia? Discurso na ONU. Índio botando fogo na floresta. Auxílio de mil dólares durante a pandemia. Espera aí? Mil dólares? Acho que perdi a capacidade de ler depois de tudo isso. Por que eu não pedi auxílio, então?”. Talvez seja até melhor estar sem tempo para acompanhar os jornais. Opa, já pensei algo. Esses dois textos aqui se encaixam nesta coletânea. Perfeito. Pronto. Pipipi pipipi. Esse texto aqui também é bom para pedir artigo de opinião. Isso. Proposta das 2ªs séries feita.
15h30.
Plantão de redação. “Oi, lindinha, o que manda? Pode abrir essa câmera aí, somos somente nós duas. Ah, que saudades de você”. “Cadê o plano de texto?” Blá, blá, blá. blá. “Oi, gatinho. O que manda?”. Pipipi pipipi.
16h30.
“Nos reunimos mais do que presos, né?” “Sim, verdade.” Vamos lá. Novo Ensino Médio. Competências. Habilidades. Sim, isso o aluno tem de sair sabendo da 1ª série. Sim, e sabendo isso da 2ª. Como alcançar isso? Acho que assim, assim, isso, assim, assado. “Porque ele quer um terno assado…Ai, como amo Secos e Molhados. Nossa, faz tempo que não paro para ouvir música.” Foco. Isso, sim, competência. Habilidade. Pipipi pipipi.
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17h30.
“Sim, sim, está bom por hoje, semana que vem continuamos a mexer no documento.” Isso. Bom, vamos agora às 150 redações da semana. Google Classroom. Entregues. Abre o primeiro arquivo. Corrige, corrige. “Putz, preciso baixar o Excel do Forms para enviar as redações dos 8ºs para a corretora.” Excel. Outlook. Word. E-mail. Feito. Classroom. Pipipi pipipi.
18h30.
“Fê, precisamos redigir um comunicado com isso e isso.” “Ok, vamos lá!”. Blá, blá, blá, blá, blá. E é tanto, blá, blá, blá. É muito, blá, blá, blá, blá blá. Ah, Elza.
19h30.
Sopinha, amo sopinha. Chomp chomp. Nhoc nhoc. Mais uma redação corrigida. Chomp chomp. Nhoc nhoc. Mais uma redação corrigida. Mais duas, mais três…..Ah, mas essa kombucha. Mas essa tela. Botam a gente comovido como o Diabo.
22h30.
“Chega, não consigo mais ler redação.” Pipipi pipipi. kkkkk “Sticker engraçado.” Favoritado. “Meursault, cadê você? Vamos para a cama comigo, espero conseguir ler mais algumas páginas.”
23h00.
“Que sono.” Pipipi pipipi. Mensagem de aluno no Insta? “Não creio”. Meu cérebro pensa, minha boca não consegue dizer mais nada. “Sora, sei que está tarde, mas só queria agradecer à videoaula de hoje, ri muito com os memes e verdadeiramente consegui entender o tópico. Saudades!”. Sorriso esboçado. Coração acalentado. Quedo-me deitada. Dormindo. Profundamente.
Um dia qualquer depois da hecatombe de 17 de março de 2020.
05h30.
Olhos abertos. Pipipi pipipi.
*Fernanda Ferreira dos Santos é professora na educação básica e doutora pelo programa de Estudos Linguísticos, Tradutológicos e Literários em Francês – FFLCH-DLM-USP.