Direitos Humanos
"Durante a ditadura havia ao menos uma preocupação em travestir as execuções"
Em conversa com o Sul21, Joffily, que é autora do livro “No Centro da Engrenagem: os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo” (2012), avalia as consequências para a sociedade brasileira da Lei da Anistia e dos crimes cometidos por agentes estatais da repressão política nunca terem sido punidos, no máximo o País ter conseguido com que parte deles tenha sido reconhecido.
Não é à-toa que todas situações de massacre, como no Carandiru, na Candelária, todos esses acontecimentos vão passando em branco na sociedade brasileira
Em 28 de agosto de 1979, o governo brasileiro, ainda sob regime ditatorial, promulgou a Lei da Anistia, abrindo o caminho para o retorno ao País de exilados e para o perdão de presos políticos, mas também para que fosse passada uma borracha nos crimes cometidos pelos militares brasileiros. A legislação foi o tema de uma palestra dada pela professora Mariana Joffily, do Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), na semana que passou, durante a abertura da exposição “Anistia: um passado presente?”, que estará aberta ao público durante todo o mês de setembro no Memorial do RS.
“O que acho espantoso é que não se use a palavra justiça. Por que se coloca como revanchismo e retaliação, e não se coloca como justiça? Penso que seria pedagógico ver essas pessoas no banco dos réus. De novo, repito, não se trata de revanchismo, porque não é nem a questão de vê-los presos, mas respondendo, sim, no banco dos réus pelo que eles fizeram. Com certeza faz uma diferença brutal. Não é à-toa que todas as nossas situações de massacre, como aconteceu no Carandiru, na Candelária, todos esses acontecimentos vão passando em branco na sociedade brasileira. Vai passando o tempo e essas coisas nunca são, de fato, julgadas”, diz Joffily.
Além disso, ela avalia que o fato de o Brasil não ter feito um encontro sério com o seu passado resulta no cenário em que as políticas de segurança pública ainda permanecem sendo voltadas para a guerra contra os setores mais pobres da população. E, pior, são o tipo de política saudada por parte do eleitorado que elegeu o presidente Jair Bolsonaro (PSL), o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC) e outras figuras.
“O que acontece é que, como não houve esse reconhecimento e, ao contrário, de alguma forma há uma valorização do papel das forças armadas, o que vemos hoje das propostas em pauta para a segurança pública é cada vez mais a permissão para a Polícia Militar lidar com a suposta criminalidade, porque muitas das pessoas que são vítimas dessa violência não são criminosos, mas mesmo com a criminalidade, de uma forma que me parece incompatível com a democracia. Uma visão de guerra interna e não de cuidado com a cidadania”, diz a historiadora.
Foto: Giulia Cassol/Sul21
Mariana Joffily, professora de História na Udesc, em entrevista sobre os 40 anos da Lei da Anista
A seguir, confira a íntegra da entrevista com a professora Mariana Joffily
Sul21 – Quarenta nos da Lei da Anistia. Qual é o saldo para a sociedade, positivo e negativo?
Mariana Joffily: Bom, a Lei da Anistia é uma lei que traz, em si, uma certa ambiguidade. Por um lado, ela é fruto de uma mobilização social muito grande de alguns setores da sociedade brasileira, que, na época da transição política, tiveram papel fundamental no sentido de ajudar a pautar essa agenda política e de ajudar a fazer com que essa transição, que se queria tão moderada, tão lenta, tão gradual, tivesse outra característica. Uma mobilização muito significativa, muito pujante, no sentido de como tratar esse momento da ditadura militar e pensar o que seria uma agenda futura para a construção de uma democracia pós-autoritarismo. Então, temos aí elementos que ficam na Constituição de 88, temos uma série de políticas de memória a partir dos anos 1990 e que vão ter um desenvolvimento muito grande principalmente nos governos do Partido dos Trabalhadores. A própria Comissão Nacional da Verdade que, de alguma forma, é fruto dessa mobilização que começa na segunda metade dos anos 1970. Esse é um aspecto de mobilização social, no sentido de ampliação da cidadania e de discutir o que é o legado da ditadura militar.
O outro aspecto é o da política do governo ditatorial, apoiado também por uma série de instituições brasileiras, de tentar impor uma transição que fosse totalmente controlada, na qual não houvesse uma discussão sobre o papel que tiveram as forças armadas na repressão política e todo o controle que houve nesse período em relação às demandas de reforma sociais mais democratizantes. Então, foram feitas reformas, mas as reformas foram feitas de forma autoritária e de cima para baixo. Houve um aspecto de fazer com que essa transição construísse uma democracia que não fosse uma ruptura total com tudo o que significou a ditadura militar. Nesse aspecto, um elemento muito importante é o veto das forças armadas a rever o papel que elas tiveram na repressão política e a proteção de todos os agentes repressivos e toda a cadeia de comando responsável pela repressão política. Aí, o que vejo desse aspecto, é a impunidade. Como não houve uma discussão aberta, ampla, social, com participação das instituições que tiveram um papel fundamental na repressão, como a justiça militar e como as próprias forças armadas, sobre o que significou essa violência, ela perdura nas concepções que temos hoje na segurança pública. Esse é o aspecto mais grave que vejo em relação à Lei da Anistia, porque não é nem uma questão de punir os agentes do Estado, de necessariamente prendê-los, como aconteceu na Argentina, mas de haver, primeiro, um reconhecimento das forças armadas em relação ao fato de que matar, torturar, desaparecer com oponentes políticos não é uma forma aceitável de lidar com a dissidência política. O que acontece é que, como não houve esse reconhecimento e, ao contrário, de alguma forma há uma valorização do papel das forças armadas, o que vemos hoje das propostas em pauta para a segurança pública é cada vez mais a permissão para a Polícia Militar lidar com a suposta criminalidade, porque muitas das pessoas que são vítimas dessa violência não são criminosos, mas mesmo com a criminalidade, de uma forma que me parece incompatível com a democracia. Uma visão de guerra interna e não de cuidado com a cidadania.
É preciso também dizer que a anistia acabou funcionando como uma auto-anistia, à brasileira, dos agentes do Estado. É importante usar esse termo porque nomeia com precisão esse aspecto de impunidade.
O jornalista Caco Barcelos, no que é um dos melhores livros (reportagens) brasileiros, o Rota 66, fez um levantamento das mortes pela Polícia Militar de São Paulo no final da ditadura e no período de transição. Ele descobriu que o “modus” operandi era de execuções de pessoas que não tinham passagens anteriores pela polícia, pessoas mortas pelas costas. Muitas vezes com tiros na nuca, o que é uma marca de execução. Esse tipo de ação da PM nunca mudou, nunca foi debatida. Essas mortes eram registradas como “autos de resistência” e ficavam por isso mesmo. E o Bolsonaro quer ir, além disso, hoje em dia.
Exato, o que é assustador nessa situação que estamos vivendo hoje e que me impressiona muito é que, durante a ditadura militar, embora tenha havido toda a montagem de um aparato repressivo bastante poderoso, com estrutura, sistematicidade, com influência externa, com organização, apesar disso tudo, essas operações todas eram clandestinas. Ou seja, não eram propagadas publicamente. Havia toda uma preocupação, por exemplo, em travestir mortes que eram execuções em mortes em tiroteios, em confrontos com as polícias, suicídios ou atropelamentos, enfim. Então, não havia uma defesa pública dessa forma de lidar como uma posição política. O que estamos vendo hoje é o contrário, isso está sendo legalizado. Isso está sendo propagado como a melhor maneira de lidar com a questão da segurança pública, sem considerar o nível de insegurança pública que isso cria, principalmente nas populações mais desfavorecidas. É um pouco o que eu dizia na palestra de abertura de evento: que segurança tem os moradores de comunidade que todos os dias saem com medo de uma bala perdida no seu cotidiano? Que são todos os dias revistados, que têm os filhos em idade escolar tendo a mochila que vão para a escola revistada por policiais, que são humilhados cotidianamente? Quer, dizer, que nível de segurança pública tem essa população que vai visitar a vó e pode morrer de bala perdida a qualquer momento? Então, é uma concepção tão elitista e tão excludente do que é segurança pública, e tão brutal também, que é uma coisa espantosa. E não só há um esforço de legalizar isso, de tornar isso algo absolutamente naturalizado, mas isso é instigado. Nossas autoridades estão defendendo isso publicamente e indo numa linha de frente desse tipo de atuação. Então, isso é muito assustador, porque embora os agentes repressivos, as forças armadas, nunca tenham reconhecido o papel que tiveram na repressão política, sempre há um reconhecimento muito velado, eles nunca defenderam a tortura e defenderam as mortes publicamente. Quer dizer, eles não fazem autocrítica, mas tampouco fazem apologia. E o que estamos vendo hoje é uma apologia ao crime contra a população brasileira.
Essa decisão de “passar uma borracha” em tudo que tinha acontecido antes e também esse “modus” operandi dos militares não ajudou a perpetuar certos mitos na sociedade? Por exemplo, na época da ditadura tudo era mais seguro, quando, na verdade, já tínhamos um crescimento bem acentuado da violência, de mortes por arma de fogo, especialmente nos anos de 1980. Esse fato de não termos olhado seriamente para o passado, só termos feito comissões de mortos e da verdade muitos anos depois, não ajudou a perpetuar esses mitos?
Me parece que sim. Inclusive, a discussão sobre a corrupção toda que ocorreu durante a ditadura militar ou o quanto eles tinham, por exemplo, um discurso e tentaram em algum momento combater a corrupção também e absolutamente não conseguiram, foram incapazes de fazer isso. Ou seja, a corrupção permaneceu na sociedade brasileira. Tudo isso tem a ver com o fato de que aí grassou a censura durante o período da ditadura. Essa tentativa de controlar as narrativas em relação à ditadura também ajudou, sim, a propagar uma série de mitos. Claro que também há fenômenos de outra natureza que acabaram contribuindo para essa percepção. Por exemplo, o desenvolvimento do narcotráfico no Brasil é mais recente, vem dos anos 1980. De fato, esse fator não existia, mas não é porque as forças armadas deixavam o País mais seguro, é porque é um fenômeno posterior.
Mas já começa no final da ditadura. O Comando Vermelho surge em 1979.
Exato. E não só algumas dessas coisas surgem no final do período ditatorial e não há um controle, não há uma forma de prevenção disso tudo, a ditadura deixa, e isso é uma coisa impressionante, uma marca para a sociedade brasileira de inflação altíssima. A economia numa situação muito complicada, do ponto de vista dos índices todos. Um salário extremamente arrochado. E o incrível é que todas essas características que são heranças da ditadura militar num período da transição são creditadas à própria transição, como se durante a própria ditadura a questão econômica tivesse sido o tempo todo, maravilhosa. Quer dizer, você pega os índices do milagre econômico no sentido do desenvolvimento econômico, mas com uma distribuição pífia, e você credita a parte boa do ‘milagre’ aos militares e tudo que é ruim, inclusive o enorme crescimento da dívida externa, ao governo da transição. Fica muito fácil criar esse mito de que na ditadura as coisas passavam bem.
Mariana Joffily acredita que repressão política até hoje é vista como um mal necessário por setores liberais | Foto: Giulia Cassol/Sul21
Recentemente, a Folha de S.Paulo revelou áudios de uma palesta em que o ministro Nelson Jobim fala que agiu em pelo menos três momentos, nos governos FHC e Lula, para que houvesse um reconhecimento dos crimes dos militares, mas sem punição. Como tu avalias essas decisões políticas de, não só em 1979, mas em outras oportunidades, mesmo no governo Lula, de não punir os militares?
Acho isso muito complicado. Vejo nessa questão da anistia uma série de paradoxos ao longo do tempo, esse é um deles. Aí temos dois elementos que acho importante nós considerarmos em separado. Um é a questão de como os liberais no Brasil lidaram e lidam com essa questão. É muito interessante porque em algum momento da fala do Nelson Jobim ele diz assim: ‘Olha, eu sempre trabalhei pela superação desse passado’, o que está implícito na fala dele que seria uma forma madura, uma política com P maiúsculo de administrar os dissensos. E, para ele, essa forma de administrar os dissensos é passar essa borracha em relação ao passado. Então, por um lado você tem uma tentativa de estabelecer uma conciliação administrando o dissenso e a outra forma, como ele diz, é a imposição de um estado absolutista totalitário. Veja só como ele está nomeando, caracterizando, o que são as demandas por justiça e por punir os responsáveis por graves violações de direitos humanos. Isso é extremamente grave. Porque, no final das contas, o que esses setores liberais de alguma forma estão anunciando: que a repressão política durante a ditadura militar foi um mal necessário. Porque se não é necessário revisar, e, mais uma vez, minha preocupação não é colocar essas pessoas na prisão, se trata de um reconhecimento público de que não se pode tratar o dissenso político com assassinatos, desaparecimento e tortura, que é o que se faz hoje na segurança pública. Então, isso é extremamente complicado. E o outro fator complicado também é a questão do próprio governo do Partido dos Trabalhadores. Então, é importante situar que na votação do STF que garantiu essa interpretação da anistia que gera impunidade dos agentes do Estado, eles solicitaram o parecer de seis instituições a esse respeito. Houve divisão, três delas, que foram a Advocacia-Geral da União, o Ministério da Defesa e o Itamaraty se colocaram contra a revisão de Lei da Anistia, e, por outro lado, tinha o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos e Casa Civil favoráveis à revisão. Mesmo dentro do governo do PT temos uma divisão sobre como lidar com isso. O que me parece é que hoje estamos pagando o equívoco de parte desses setores dentro do PT que julgaram que, naquela conjuntura, não valia a pena comprar essa briga com as forças armadas e fazer essa discussão, que, de fato, é muito conflitiva para a sociedade brasileira. Mas é um conflito que temos que encarar, porque, se não, permanecemos dentro desse registro de que é isso que precisamos fazer para manter uma sociedade segura, que é uma guerra contra os próprios cidadãos brasileiros.
E logo em seguida já começou a crescer esse sentimento saudosista. Os encontros, antes às escondidas, para comemorações em clubes militares passaram a ser cada vez maiores desde o início dessa década.
Cada vez mais naturalizado, mais aceito, mais considerado dentro de uma situação de naturalidade, de que é isso mesmo.
Tu falaste que não necessariamente seria importante individualizar a questão, mas não teria sido um elemento importante, catártico, inclusive, ver generais sendo julgados? O problema também é que muitos morreram logo em seguida. Mas não teria sido importante ver essas pessoas respondendo no banco dos réus. Por exemplo, o Ustra, não se tem a dimensão da violência e gravidade dos crimes que ele cometeu, não teria sido importante para a sociedade ter visto esses crimes relatados em um julgamento?
Inclusive eu queria fazer um comentário a mais em relação ao Nelson Jobim. É que o termo que ele para falar disso é ‘retaliação’. Que é interessante, porque quem usa revanchismo são os militares. Então, ele escolhe muito cuidadosamente não usar o mesmo termo que os militares para não se situar totalmente no campo de defesa da repressão política da ditadura militar, então ele escolhe um sinônimo que provavelmente ele considera um pouco mais leve. O que acho espantoso é que não se use a palavra justiça. Por que se coloca como revanchismo e retaliação, e não se coloca como justiça?
Penso que seria pedagógico ver essas pessoas no banco dos réus. De novo, repito, não se trata de revanchismo, porque não é nem a questão de vê-los presos, mas respondendo, sim, no banco dos réus pelo que eles fizeram. Com certeza, faz uma diferença brutal. Não é à-toa que todas as nossas situações de massacre, como aconteceu no Carandiru, na Candelária, todos esses acontecimentos vão passando em branco na sociedade brasileira. Vai passando o tempo e essas coisas nunca são, de fato, julgadas. Até acontece um início de processo judicial, mas as pessoas vão sendo liberadas, como se fosse completamente aceitável você massacrar pessoas pobres, dos setores populares.
A senhora julga que ainda há espaço para que isso possa ser revisto no futuro? Claro que, nesse momento, isso é muito improvável, mas ainda haveria um espaço para essa discussão ser retomada em algum momento?
Olha, o futuro é um campo aberto de possibilidades. Isso tudo é uma questão em disputa o tempo todo. Julgo que também é importante apontar que, mesmo a impunidade perdurando todas essas décadas, sempre houve luta para que isso fosse revisto. Sempre houve um esforço muito grande no sentido de mudar esse estado de coisas. Penso que precisamos seguir nesse esforço. A batalha não está ganha. Acho também que houve uma série de conquistas. A própria Comissão Nacional da Verdade não é uma conquista pequena nesse sentido. Tivemos esses agentes repressivos, de alguma forma, colocados no banco dos réus no campo simbólico, embora, evidentemente, seja completamente diferente colocá-los num tribunal e que isso tenha um significado, por exemplo, no sentido de retirar todas as condecorações que eles receberam. Ainda por cima, eles foram condecorados pelo que fizeram. Foram reconhecidos de forma bastante evidente pelas forças armadas do ponto de vista da carreira. Por exemplo, uma série de medidas que poderiam ser tomadas no campo simbólico como retirar as condecorações, rever a questão das aposentadorias. Ou seja, ainda que não se colocasse os indivíduos na prisão, mas que eles fossem repostos, do ponto de vista social, em outro lugar. E eles, de alguma forma, se sentiram colocados no banco dos réus quando foram obrigados a testemunhar. Eles se sentem muito desconfortáveis, muitos vão com seus advogados. Nas falas deles na Comissão Nacional da Verdade, em diversos momentos eles se colocam nesse lugar de ter que responder pelo que eles fizeram. Muito constrangidos, muito incomodados.
Professora aponta, na entrevista, problemas deixados pela Lei da Anistia | Foto: Giulia Cassol/Sul21
Sim, muitas informações vieram à tona. Por exemplo, o caso do Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, veio à tona pelo trabalho das comissões de mortos e da verdade, e essas informações puderam ser usadas para rapidamente contrapor o argumento do Bolsonaro de que ele teria sido morto por aliados. Se sabia que não era verdade por causa desse trabalho de reconstituição da memória.
É importante também dizer que esse trabalho que a Comissão Nacional da Verdade fez de sistematização do que já havia de acumulado sobre a ditadura militar é um trabalho que vem em cima de um acúmulo muito importante da sociedade brasileira, que já começa com os dossiês dos próprios presos políticos e dos advogados que vão tentando acumular material sobre as atividades repressivas. Depois tem o projeto Brasil Nunca Mais, que é um marco muito importante com a documentação do Superior Tribunal Militar e, de lá para cá, um esforço enorme, principalmente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, dos familiares de presos políticos desaparecidos e das entidades de ex-presos políticos, que fizeram um esforço enorme de acumular esse material, de fazer as investigações e, em muitos momentos, com pouco incentivo do Estado. Foi na garra mesmo. Então, quando a Comissão Nacional da Verdade faz essa sistematização já em outras condições, já tem um acúmulo muito grande de investigações, inclusive de muitos trabalhos acadêmicos, de pesquisas acadêmicas. Mas, sem dúvida, é um salto de qualidade no sentido de juntar essa massa toda de informações. E o peso simbólico que tem isso como política de Estado. Isso é fundamental. É justamente isso que está fazendo falta, uma política de Estado no sentido de dentro disso tudo pensar o que é aceitável, o que não é, o que podemos fazer para lidar com o dissenso numa democracia. Que democracia é essa que queremos construir?
Temos hoje uma discussão se já dá para considerar o governo Bolsonaro autoritário ou não, se é fascista ou não. É importante nomear as coisas do jeito certo. A senhora percebe se existem elementos do período militar que se repetem, é algo diferente, como a senhora vê?
Sob alguns aspectos, a sensação que tenho é como se tivesse aberto uma espécie de túnel do tempo e tivéssemos vendo aí vários elementos do período da ditadura militar, recolocados. Por outro lado, eu até estou ministrando um curso para os alunos do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, e vários estudam o período da ditadura e estavam relatando como eles olham para esses documentos de época e veem várias coisas sendo reatualizadas. Tem esse aspecto. Por outro lado, penso que tem diferenças bastante significativas e acho importante também sabermos apontá-las para não criar uma amálgama que às vezes mais nos confunde do que contribui para entender o que está acontecendo. De fato, temos aí um fenômeno que é novo em alguns aspectos. Primeiro, é esse aspecto da apologia pública a determinados procedimentos de lidar com a oposição política, que é de um autoritarismo explícito que nunca, que eu saiba, aconteceu antes, ou pelo menos, na época da ditadura, não havia essa apologia, como nós já mencionamos. E essa irresponsabilidade de, por exemplo, de você entrar em um helicóptero e sair atirando para baixo. Quer dizer, é de um despreparo, é de uma irresponsabilidade, mesmo para os objetivos que essas autoridades se colocam, que é uma coisa espantosa. Há também uma mobilização, me parece, raivosa das bases de apoio desse pensamento autoritário de ultra-direita, com esse forte conteúdo moral que tem a ver com esse apoio da igreja evangélica, que são elementos que podemos comparar com a Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, que tinham um componente católico muito forte e de conservadorismo do ponto de vista dos costumes. A própria Doutrina de Segurança Nacional transborda um pouco para a concepção do que seria uma família, de quais são os papeis sociais familiares, os papeis de gênero, tudo isso vem sendo pesquisado por vários colegas. Mas tem um aspecto hoje, que tem a ver provavelmente com as redes sociais e com a forma como o nosso presidente insufla as bases de apoio, que não tinha na época da ditadura militar. Havia políticas de Estado, tentativas de convencimento da população no sentido de apoiar o regime, havia uma série de documentários, aqueles resumos das atualidades que passavam no cinema, tudo isso ajudava a passar uma imagem do que estava sendo feito.
As próprias emissoras de televisão.
Exatamente. Tinha toda uma questão de divulgação desse projeto de governo de modernização, tudo isso para angariar apoio. Mas não era, me parece, um tipo de apoio que a gente possa comparar com isso que é você ter algumas falas extremamente radicais jogadas pelo Twitter, compartilhadas em grupos de WhatsApp, no sentido de manter uma base de apoio extremamente indignada, raivosa e que instiga muito esse tipo de atitude de um neofascismo, que se fala, que insufla as pessoas a denunciarem professores, como o movimento Escola Sem Partido. Não que não houvesse, havia isso também. Havia uma certa capilaridade do regime nesse sentido de como os cidadãos comuns que apoiavam o regime acabavam querendo contribuir com ele. Por exemplo, denunciando quem eles julgavam que era comunista, ou às vezes até quando eles tinham uma desavença com alguém, denunciando como subversivos para se ver livre da pessoa. Então, há similaridades, mas me parece que hoje tem algum elemento novo de como essa base de apoio está sendo constantemente reativada e mantida nesse estado de ebulição.
A senhora julga que há um risco real de suspensão da democracia em algum momento? No sentido eleitoral, do mínimo que se tem de direito a julgamentos teoricamente justos. A senhora julga que as garantias mínimas democráticas podem ser suspensas?
É difícil de dizer, tudo pode acontecer. O que vem acontecendo e que acho extremamente preocupante é todo esse processo de lawfare [perseguição judicial], de criminalização de movimentos sociais, que sempre existiu, mas nesse momento está muito mais acirrada. Da maneira como os agentes do direito vão interpretando as leis e vão considerando politicamente a maneira como eles têm que lidar com as pessoas que são alvo de processo. Esse processo me parece extremamente perigoso, porque são coisas que vão acontecendo paulatinamente e, ao longo do tempo, vão se naturalizando e vão sendo consideradas normais, aceitáveis, ou ao menos as pessoas vão se acostumando que essa é a nova ordem dos acontecimentos e dos fatos, que é assim que funciona. Isso acho extremamente perigoso. Porque vamos perdendo a noção do que deveria ser uma justiça de fato, do que é o movimento social, do que é o direito de reivindicação social, do que é o direito ao dissenso. Quer dizer, essa administração do dissenso de que falou o Nelson Jobim, que, na verdade, é excluir uma parte do dissenso. Essa conciliação que ele está propondo é a conciliação de um lado. Ainda que eu veja que é uma conciliação que implica em determinadas concessões por parte das forças armadas. Quando eles não queriam, por exemplo, indenizar a família do Lamarca, entendo que eles tenham feito algumas concessões. Mas elas são mínimas, pensando nas concessões que se exige do outro lado. Não estão no mesmo patamar. E aí uma mistura da teoria dos dois demônios, mas, ainda assim, com um desequilíbrio muito grande, porque o que se exige dos militares é muito menos do que se exige das vítimas. E o outro problema é esse de que se individualiza a questão da vitimização, quando, na verdade, esse é um problema social. Não é um problema dos mortos e desaparecidos e dos familiares individualmente, esse é um problema de que concepção de sociedade que temos, o que julgamos que é aceitável e o que não é? O que me preocupa é isso, que, de repente, estamos em uma situação política em que você tem medo de sair com uma camiseta vermelha, porque você pode ser espancado na rua, você pode até ser preso por isso e o agente da justiça vai pensar que é absolutamente legítimo te acusar de sabe deus o quê numa sociedade que supostamente é democrática. Então, esse processo que estamos vivendo de uma ressignificação do que é permitido e do que não é em termos de dissenso e de conflito social, de disputa política, acho extremamente assustador
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