Ditadura do Judiciário

Ditadura do Judiciário

O que é isto, a 'ditadura do Judiciário'?

  • Henrique Abel  -   23 de agosto de 2025

 

As efemeridades das modas e tendências sempre nos surpreendem. Ora são as imitações das artes do Studio Ghibli feitas por inteligência artificial, ora é a febre do “Morango do Amor”. Os debates político-jurídicos também têm a sua moda do momento: a teoria de que a nossa democracia estaria sendo corroída por algo muito diferente de todos os golpes armados, insurreições e botinadas do passado. O novo e insidioso regime de opressão atenderia pelo nome de “Ditadura do Judiciário” – e a extrema perversidade desta ameaça-fantasma seria atestada pelo grande Rui Barbosa nesta pérola de sabedoria: “A pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.

Que frase! Bonita, curta, eloquente. Uma mistura perfeita de espírito de cautionary tale com poesia distópica. Pena que a citação é falsa. Pois é, não existe nenhum registro minimamente confiável de que Rui Barbosa alguma vez tenha dito tal coisa. No entanto, isso não impede que milhares de adeptos da TDJ (Teoria da Ditadura do Judiciário, para abreviar) compartilhem a frase reiteradamente. Como se vê, alucinações não são exclusividade das plataformas de inteligência artificial: alucina, também, a desinteligência natural. Alucina quando espalha citações falsas, espúrias ou apócrifas. Alucina quando finge que a destruição de Brasília em janeiro de 2023 nunca aconteceu [1]. Alucina, ainda, quando chama de “ditadura” as iniciativas de apuração criminal das condutas daqueles que tentaram se perpetuar no poder subvertendo o veredito popular das urnas eleitorais.

De início, no entanto, devemos fazer uma concessão aos proponentes da TDJ: ideias análogas a esta já existem há mais tempo. Por décadas, expressões como “governo dos juízes” ou “ditadura de toga” foram utilizadas como alertas retóricos para reforçar a importância do respeito aos limites razoáveis de atuação entre os diferentes poderes da República. Como alguém que está há mais de vinte anos criticando o ativismo e a discricionariedade judicial em trabalhos acadêmicos, me sinto bastante familiarizado com esse tipo de figura de linguagem. Além disso, os “nem tão jovens” como eu irão lembrar que terminologias semelhantes foram bastante utilizadas, sobretudo entre os anos 1990 e a primeira década deste século, para alertar sobre os riscos do uso exacerbado das medidas provisórias por parte do Executivo. Importantes doutrinadores, à época, denunciavam que o instituto transformava o presidencialismo em algo como uma “ditadura a termo” [2].

É aqui, no entanto, que a retórica deve prestar contas a uma depuração hermenêutica. No contexto brasileiro contemporâneo, do que estamos falando quando fazemos menção à tal “Ditadura do Judiciário”? Estamos usando a expressão em sentido literal ou figurado? Se estamos falando de “ditadura” metaforicamente, precisamos levar em consideração a eventual (in)adequação e as limitações desta figura de linguagem — sobretudo em um contexto no qual ela é contraposta a uma tentativa real de instauração de uma ditadura stricto sensu.

Vou ilustrar com uma situação hipotética: como consumidor, não é errado que você, depois de ser mal atendido e maltratado pelos péssimos serviços de uma companhia aérea, saia desta experiência desagradável dizendo para alguém que “se sentiu violentado” — mas é absolutamente inadequado que você faça esse mesmo comentário para alguém que acabou de ser vítima de um estupro. Não são situações comparáveis nem equiparáveis, e você será visto (com razão) como algum tipo de monstro se não for capaz de entender a diferença entre a sua viagem desconfortável e a violência sexual sofrida pela outra pessoa.

Figuras de linguagem têm hora e lugar, e se espera que partícipes adultos (e intelectualmente maduros) de uma determinada comunidade linguística sejam capazes de entender razoavelmente bem esses parâmetros de adequação. É por este mesmo motivo que você não diz que “teve um dia infernal no escritório” para uma pessoa esfarrapada que acabou de ser salva de um incêndio em casa. É o mesmo senso de proporções e razoabilidade que desautoriza qualquer pessoa de boa-fé a estabelecer falsas equivalências entre um magistrado, cujas decisões ela desaprova, e os réus levados a julgamento por planejarem o assassinato de autoridades, incluindo a morte do próprio magistrado em questão [3].

Por outro lado, se os apóstolos da TDJ estão falando de uma ditadura em sentido literal, então o ônus argumentativo que se impõe a eles é muito mais complexo. Explico: ocorre que simplesmente não existe, na história conhecida do mundo, qualquer registro de regime ditatorial que tenha sido instaurado por iniciativa e protagonismo do Judiciário, de modo que este Poder tenha fagocitado o Executivo e o Legislativo. Permita-me repetir: nenhum precedente em toda a longa trajetória da humanidade.

Não é difícil compreender as razões disso. O Judiciário carece em absoluto dos meios e instrumentos logísticos e operacionais para “instaurar uma ditadura”. No caso do Brasil contemporâneo, isso não seria possível nem por meio da atuação unificada da totalidade dos órgãos do Judiciário – muito menos por meio de um único tribunal, e menos ainda por ação de um único magistrado. Como essa “ditadura” iria se impor sem a força das armas e sem o poder do grande capital? Além disso, o Judiciário também não dispõe da capacidade de arregimentação popular própria das estruturas político-partidárias. Por esses e outros motivos, não surpreende o fato de que, até hoje, jamais existiu na história do mundo uma ditadura judiciária em sentido literal.

É claro que, não raras vezes, o Judiciário teve relevante atuação como força auxiliar de governos autoritários. Em diferentes épocas e lugares, o Direito em si muitas vezes não passava de mero instrumento de legitimação do poder instituído e das arbitrárias e injustas estruturas do status quo. Mas, ao longo do século 20, projetos autoritários deram especial atenção à busca de legitimidade por meio do Direito e dos tribunais. Em 1965, a ditadura militar aumentou o número de ministros do STF de 11 para 16.

Em 1969, após o Ato Institucional nº5, três ministros foram aposentados compulsoriamente e outros dois, em solidariedade, renunciaram ao cargo. [4] Os próprios “Atos Institucionais” em si eram um artificio formalista que buscava dar verniz de legalidade para o que era puro e simples exercício arbitrário do poder. A apropriação do Judiciário pelos tentáculos de um governante autoritário também é uma característica marcante dos neopopulistas iliberais contemporâneos, podendo ser claramente identificada nas ações de (proto)ditadores como Maduro (Venezuela), Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia) e Kaczynski (Polônia). [5]

De novo: fora do reino da ficção, não há registro atual ou pretérito de movimento no sentido oposto (ou seja, de um Executivo democrático que tenha sido capturado, dominado e posteriormente aparelhado por um líder autoritário atuando desde dentro do Poder Judiciário).

Por isso, aqueles que abraçam a TDJ precisam ter a responsabilidade de arcar com os ônus argumentativos de sua tese. Pergunta-se: como eventuais erros e desacertos em decisões judiciais poderiam ser mais perigosas do que um projeto literal e concreto de abolição do Estado democrático de Direito, liderado pelo ex-presidente que hoje é réu? Por que o necessário combate teórico à discricionariedade judicial deveria se abraçar com as inclinações autoritárias do populismo iliberal contemporâneo? [6] Por que a discricionariedade e o ativismo judicial seriam um problema apenas no âmbito do STF? Por que apenas um único tema da competência do STF faz ferver o sangue de tantos adeptos da TDJ – que, de resto, assoviam com a mais tranquila indiferença diante de milhares de decisões judiciais problemáticas que emanam de juízes de primeira instância e tribunais diversos por todo o país, semana após semana?

Em termos de narrativa, a TDJ se mostra não apenas como mera ficção, mas como exemplo privilegiado de má-ficção. Seus vilões (alvos) são difusos e, como numa péssima trama de filme trash, mudam o tempo todo na medida da conveniência do narrador. Em suas versões mais básicas, a TDJ introduz como vilão Alexandre de Moraes, ministro do STF. Aleatoriamente, este vilão singular é substituído por pelos menos 8 dos 11 ministros da Corte [7]. De acordo com as intenções do momento, o coletivo de vilões da trama passa a incluir também o Tribunal Superior Eleitoral [8], a Polícia Federal [9] e a Procuradoria-Geral da República [10]. Salta aos olhos a falta de coerência e de integridade (tanto em seu sentido lógico-sistêmico quanto ético) de tal roteiro.

Não falar é um dizer

Vale lembrar que, em semiologia, o “não falar” também é um dizer. A questão crucial a respeito da TDJ não diz respeito apenas ao que ela ostensivamente ataca, mas principalmente ao que ela silenciosamente defende, endossa ou, no mínimo, minimiza/normaliza (o que abrange desde o uso de forças policiais para impedir eleitores de votar nas eleições presidenciais de 2022, a recusa em reconhecer o resultado das urnas, o fomento de “acampamentos” de golpistas em frente a quarteis para pressionar militares, o projeto de manutenção do poder à força, o planejamento de assassinato de autoridades e, last but not least, o ataque orquestrado à capital federal em janeiro de 2023).

Tudo isso evidencia que o apelo retórico a uma “ditadura” metafórica pode servir a bons propósitos argumentativos. Porém, quando arguida num contexto de ameaça real de ditadura literal e concreta (você sabe: aquele tipo de ditadura de verdade — que tortura, mata, oculta cadáveres, fecha o Congresso etc.), a metáfora se presta mais para o ocultamento da realidade do que para o desvelamento crítico dela.

É preocupante, sobretudo, a constatação de que parte significativa da própria comunidade jurídica brasileira aderiu à TDJ — o que, sob o aspecto da cultura e da técnica, torna nebulosa a própria distinção entre o leigo e o “operador” do Direito. Aqui, cabe fazer referência à provocação crítica formulada pelo professor Lenio Streck: e se a comunidade médica iniciasse uma campanha contra o uso de antibióticos, sob o argumento de que estes seriam “perniciosos” à saúde? O que pensaríamos a respeito dos médicos, em uma situação dessas?

A crítica a erros e desacertos do Judiciário não pode ser negacionista em relação ao contexto fático, nem anti-intelectual. De uma década para cá, estudiosos dedicados produziram estantes inteiras de livros e estudos fundamentais para a compreensão do fenômeno político da erosão da democracia ocidental. [11] Nenhum deles se mostra particularmente preocupado com coisas que não existem, como elfos, dragões, gnomos e ditaduras judiciárias. Já no YouTube e nas redes sociais, é fácil encontrar “experts” muito preocupados com todas essas coisas. O problema é que depois, invariavelmente, vem o choque de realidade.

Como o genial Philip K. Dick observou com muita acuidade, “realidade é aquela coisa que não vai embora quando você para de acreditar nela”. Em tempo: K. Dick realmente escreveu isso [12] — o que é mais do que se pode dizer sobre aquela tola cantilena grosseiramente atribuída ao imortal Rui Barbosa. Se voltasse à vida nos dias que correm, K. Dick talvez questionasse: Sonharão os androides com citações inventadas? Sonharão os sonâmbulos com ditaduras judiciárias? [13]

______________________

[1]  Sobre o tema, ver: STRECK, Lenio Luiz; CAMPIS, Francisco Kliemann a; ABEL, Henrique; BORTOLIN, Amanda Bombardi. O 8 de janeiro de 2023 e a tentativa de ruptura constitucional. Revista de Políticas Públicas, v. 29, n. 1, p. 217–236, 12 Jun 2025 Disponível aqui.

[2] Veja-se, a título de exemplo, o comentário de Paulo Bonavides no prefácio da 7ª edição (1997) de seu tradicional Curso de Direito Constitucional, no qual ele criticava a “ditadura dissimulada” das medidas provisórias. Ver: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 31.

[3] Aqui, nunca é demais lembrar que o réu não tem a prerrogativa de “escolher juiz” por meio do expediente de ameaçá-lo de morte – para depois sustentar que o magistrado, como vítima potencial, precisaria “dar-se por impedido”. A questão já foi didaticamente explicada por Lenio Streck. Ver aqui

[4] Aqui

[5] A cruzada global do neopopulismo de extrema-direita contra os Judiciários dos mais diferentes países foi muito bem sintetizada em recente artigo de Wilson Gomes, publicado na Folha de São Paulo. O texto pode ser acessado aqui

[6] Ver: ABEL, Henrique. Iliberalismo político: novo desafio para o pós-positivismo jurídico. Disponível aqui

[7] Aqui

[8] Aqui

[9] Aqui

[10] Aqui

[11] Para ficar apenas entre alguns autores de trabalhos referenciais que li nos últimos anos: Kim Lane Scheppele, Yascha Mounk, Andrew Arato, Jean L. Cohen, Christian Lynch, Paulo Henrique Cassimiro, Max Fisher, Madeleine Albright, Giuliano Da Empoli, Jason Stanley, Simon Tormey, Matthew D’Ancona, Felipe Nunes, Anne Applebaum, Felipe Recondo, Luiz Weber, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O saudoso Tzvetan Todorov, por sua vez, merece o reconhecimento de ter identificado os elementos da atual onda neopopulista com mais de meia década de antecedência, por meio de sua presciente obra “Os Inimigos Íntimos da Democracia”, de 2012.

[12] A citação do autor encontra-se no breve ensaio How to Build a Universe That Doesn’t Fall Apart Two Days Later (“Como Construir um Universo que Não Desmorone Dois Dias Depois”), que abre a sua coletânea de contos I Hope I Shall Arrive Soon, lançada em 1985.

[13] Em referência a um dos livros mais famosos de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? (“Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”) – obra cuja trama serviu de base para o meu filme favorito de todos os tempos, o insuperável Blade Runner (1982), de Ridley Scott.

 

é doutor em Direito pela Unisinos-RS, com período de estágio doutoral como visiting student da School of Law of BirkbeckUniversity of London, e mestre e bacharel em Direito pela Unisinos, com pós-graduação lato sensu pela Escola Superior da Magistratura da Ajuris-RS.

 

FONTE:

https://www.conjur.com.br/2025-ago-23/o-que-e-isto-a-ditadura-do-judiciario/ 




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