Do que eu me lembro?

Do que eu me lembro?

Do que eu me lembro?

De que falar em golpe era passado

 

Do que eu me lembro?    


Da luz do sol declinando enquanto se formava num canto do céu, sobre as águas, uma barra entre alaranjado e vermelho. Da voz de Mercedes Sosa cantando “todo cambia” numa noite em que o vento zumbia por entre as palmeiras. Dos meus passos ecoando na calçada no amanhecer em que me despedi dos meus amigos para colocar o pé na estrada sem ter a menor ideia das bifurcações dos caminhos. De uma sonata de Beethoven iluminando as teclas de um piano num bar de Berlim. Das aves migrando enquanto meu coração se partia de saudades do sul. Do dia em que te conheci e soube que jamais nos separaríamos.

    De uma voz me chamando para ficar quando eu já me retirava para dormir. De um banho de chuva na infância. Do dia em que entendi o que significa amar. Da força de uma paisagem com sua profusão de cores, de nuanças e de esquecimento em meio à expressão da lembrança. Dessa vontade insuportável de não ser para ser muito mais. Da várzea coberta de água das chuvas formando lagos momentâneos numa tarde de verão. Da alegria que senti ao me livrar das mágoas que me oprimiam e faziam chorar baixinho em madrugadas de solidão. Das cerejeiras em flor nas ruas de Paris em ensolaradas manhãs de junho. De tudo aquilo que não disse, mas deveria ter tido e nunca mais o farei por medo de ferir.

    Desse desejo permanente de aprisionar a palavra, de capturar o sentimento, de escrever o que minha alma sente, de marcar a página com a expressão mais funda dos meus devaneios e da mão que sangrava de poesia. De quando eu não sabia que as ilusões são perdidas e acreditava em portas se abrindo como asas para a liberdade. Das horas que passei diante de obras de arte, desse jeito, desse teu jeito, dessa suavidade do vento, certo vento de certa primavera marcada no calendário dos afetos, de um gol visto na eternidade do segundo em que aconteceu quando tudo era leveza, esperança e musicalidade. De todas essas coisas que se tornaram eternas no momento mesmo em que surgiram e desapareceram como risos em noites coalhadas de estrelas.

    Do primeiro beijo, do primeiro voo, da primeira lua cheia de mãos dadas, do primeiro protesto contra a ditadura e da primeira luz da aurora quando esta palavra ainda era apenas o nome de uma mulher. De tudo o que quis, planejei, apostei, perdi, tentei novamente. De ti cuidando das plantas agora mesmo, das flores na janela, do abraço do meu pai, amigos cantando juntos “já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver”. Do romance que tentei escrever e ainda floresce em mim como uma rosa de Malherbe. Dessa tristeza que me chega toda vez que penso no vivido, no imaginado, no pressentido e nas moças de minissaia que dançavam em minha adolescência de longos cabelos e belos livros.

    Dessa cidade que ficou para trás brilhando lá na frente como um farol da solidão. Da poesia que recitei certa vez e esqueci. Dessa luz que me envolvia quando eu caminhava a passos firmes na direção da utopia. De tudo que fui sem nunca ter sido e que serei a cada vez que me coração opinar. Dessa música suave parada no ar da minha vida. Lembro que se prometeu nunca mais falar em golpe, muito menos ameaçar.

 

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