EAD aumenta o fosso

EAD aumenta o fosso

Aulas a distância aumentam fosso entre escolas públicas e particulares

Se 97,4% dos estudantes da rede privada gaúcha aprendem conteúdos novos diariamente, alunos da rede estadual apenas revisam atividades – quando têm acesso à internet.

17/05/2020

Félix Zucco / Agencia RBS

 

Pyetro estuda por meio de grupos de WhatsApp e Facebook organizados pela escola

Félix Zucco / Agencia RBS

Desde que escolas estaduais gaúchas suspenderam aulas presenciais em 19 de março por causa da pandemia de coronavírus, Pedro Reis de Medeiros, 13 anos, passou a auxiliar a irmã, Maria Luíza Pereira Carvalho, de sete, a estudar pelo celular. O professor divulga o conteúdo em uma rede social e, dias depois, as respostas, mas ninguém recebe nota. Os irmãos se viram com os aparelhos móveis: assim como mais da metade dos 11,3 milhões de gaúchos, eles não têm à disposição computador em casa, como mostra a pesquisa TIC Domicílios 2018 – outros 31% não têm internet.

— Não tô entendendo muito bem as matérias. A foto do conteúdo é postada no Facebook e não tem explicação. Algumas coisas tenho que pesquisar no Google pra entender – afirma Pedro, que estuda com a irmã na escola estadual Pacheco Prates, bairro Belém Velho, na zona sul de Porto Alegre. 

Enquanto 97,4% das escolas privadas gaúchas ensinam conteúdo novo por plataformas online e aplicativos, segundo o Sinepe, os 812 mil alunos das escolas estaduais do Rio Grande do Sul apenas revisaram os conteúdos já ensinados antes da paralisação das classes. Maio será um mês morto: os primeiros 15 dias foram de férias antecipadas e a segunda quinzena teve atividades suspensas, a serem repostas no futuro.

O Ministério da Educação (MEC) permitiu que a carga horária do ensino remoto seja contabilizada no ano letivo. Contudo, após visitar cinco bairros de Porto Alegre e conversar com famílias também de outras regiões do Estado, GaúchaZH apurou que, para professores, pais e estudantes de escolas públicas, a sensação é de que dois meses de estudo foram jogados fora. 

— Não é aula, é tema de casa. Os arquivos chegam em uma agenda do Google e é isso. Pra mim, tinha que suspender esse ano e recomeçar tudo no próximo, ou ele vai deixar de aprender — diz o técnico em informática Adriano Coelho, 48 anos, sobre o aprendizado do filho de dez anos que estuda na escola estadual Gonçalves Dias, bairro Passo D’Areia. 

Especialistas apontam que, em virtude da forte desigualdade social do país, o cenário de aulas a distância deve aumentar ainda mais o fosso entre escolas públicas e privadas e contribuir para a evasão escolar. No Brasil, 85% dos usuários das classes D e E só acessam a internet pelo celular, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2018  – entre os mais pobres, é comum o plano pré-pago com baixo limite de dados, o que inviabiliza baixar vídeos. 

— A pandemia exacerba as diferenças existentes. O aluno mais pobre que está na rede pública tem, em geral, uma situação domiciliar muito mais desafiadora, desde alimentação até menor acesso a livros, bens culturais e, claro, menor acesso à internet — observa Priscila Cruz, presidente-executiva do Movimento Todos pela Educação, uma das maiores ONGs do Brasil focada na educação. 

Ela destaca que escolas com tempo integral terão mais facilidade para recuperar as aulas perdidas, mas que o Rio Grande do Sul será prejudicado. Apenas 3,4% de todos os estudantes do Ensino Médio do Estado têm aulas o dia inteiro, a segunda pior taxa de todo o Brasil, atrás apenas do Pará. Em Pernambuco, quase metade dos alunos tem turno integral. Os dados são do Censo Escolar de 2018. 

Segundo a especialista, o MEC não recomendou modelos a serem seguidos por escolas do país nem conversou com Estados e municípios para discutir soluções, o que exigiu que cada região pense soluções do zero. O governo federal ainda manteve a data do Enem por decisão do presidente Jair Bolsonaro, apesar do adiamento pedido por secretários estaduais da educação e Tribunal de Contas da União (TCU). 

A rede municipal de Porto Alegre não começou aulas remotas – a escola que o faz é de forma independente. As atividades, diferentemente da rede estadual, não contarão como dias letivos, segundo a Secretaria Municipal de Educação (Smed). A pasta cita que “não havia parâmetros de aproveitamento e dos níveis que teriam este aproveitamento”, mas que deve lançar um serviço por onde professores poderão enviar e receber tarefas. 

Na rede estadual gaúcha, a retomada de atividades deve ser anunciada na semana que vem pelo governador Eduardo Leite, mas ainda depende do aval das prefeituras. GaúchaZH solicitou entrevista com o porta-voz, mas a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) preferiu manifestar, em nota, os esforços para mitigar os prejuízos e que os alunos sem internet não foram deixados de lado.

Cada um dos 42 mil professores da rede estadual pode dar aulas como achar melhor. O governo criou uma metodologia chamada Aulas Programadas, que são atividades de revisão, online ou distribuídas em apostilas impressas, cujas respostas serão entregues na volta das aulas presenciais. Em muitos casos, o material é deixado na escola para os pais – em regiões rurais, segundo a Seduc, a família recebe em casa. 

Na prática, professores ensinam em live do Instagram, por mensagens em grupo de Facebook, WhatsApp, e-mail, em plataforma chamada Google Classroom, que simula uma sala de aula, ou nos polígrafos enviados aos estudantes. 

O governo estadual também ofereceu aos professores um curso de treinamento online, mas o Cpers/Sindicato afirma que o site não suporta acessos simultâneos e apresenta instabilidades.

— A estrutura existe, mas muitos professores não têm nem ideia disso. Por que isso não chega em todo mundo, onde está o gap? Isso faz com que as escolas variem muito com site, atividades impressas, entre outras. Tem estrutura, mas não foi estruturada — avalia a coach Tamara Bitencourt, que trabalha com formação de professores para EaD e diz que a adaptação ocorreu “a fórceps”. 

Levantamento oficial do governo do Estado mostra que a maioria das 2,4 mil escolas estaduais usou a internet para interagir com alunos. Na estatística, está o professor Everton Stefanello, que ministrou parte do trimestre em lives do Instagram. A transmissão foi bem aceita pelos alunos do 7º e 8º anos da escola estadual Estado de Goiás, de Santa Cruz do Sul, Vale do Rio Pardo, mas ele afirma que “nem todos têm o mesmo acesso”. 

— Usei o meu aplicativo pessoal, o meu celular, tô pagando a minha internet. O Estado não ofereceu nada para eu trabalhar com os alunos, nem ofereceu nada a eles — diz Stefanello. 

Para assegurar o acesso digital, a ONG Intervozes chegou a pedir para o governo federal proibir por 90 dias a suspensão de internet por empresas de telecomunicação, mas o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações afirmou que não vai interferir. 




Atrasos nos salários fazem com que alguns professores não possam pagar internet

No Rio Grande do Sul, partiu de deputados estaduais gaúchos a iniciativa de destinar R$ 5,4 milhões do orçamento da Assembleia Legislativa para financiar a oferta de banda larga no celular de professores e de estudantes. Para que as crianças e adolescentes não gastem o pacote de internet com jogos ou conteúdos inadequados, as operadoras têm condições técnicas de colocar travas que limitem o uso do às atividades escolares. 

A situação é difícil também para professores, segundo Helenir Aguiar Schürer, presidente do Cpers/Sindicato: ela diz que há quem deixou de pagar a própria internet em meio a atrasos nos salários de servidores e descontos por greve e que docentes são procurados 24 horas por dia pelos pais. Ela reconhece, no entanto, que a categoria tem idade mais avançada e dificuldades em lidar com o digital.

— O que nos preocupa não são os alunos com acesso à internet, mas os que estão à parte desse processo há 60 dias. Muitas vezes, os alunos vão para as escolas para ter a merenda. Com esse distanciamento, não estamos no dia a dia para incentivá-los a seguir estudando. Nossa preocupação é recuperar os que ficarão para trás: na retomada, encontraremos turmas heterogêneas, com algumas que conseguiram acompanhar e outras que não tiveram acesso a absolutamente nada — diz a presidente do Cpers.

Para ajudar esse público, o governo do Estado começa, na próxima segunda-feira (18), a transmitir aulas focadas na preparação para o Enem pela TVE, de segunda a sexta-feira, das 19h às 23h. 

Mas as ações não suficientes na opinião de Juca Gil, professor de políticas educacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele cita que o cenário pré-pandemia, com escolas públicas sem computador ou internet, não permitia que professores e alunos convivessem com tecnologias. 

— Não há as mínimas condições. O professor não está acostumado, fará em arremedo de educação e tentará transpor em outra linguagem a mesma coisa que ele fez presencialmente, o que é bobagem do ponto de vista metodológico. O governo tem que oferecer as alternativas, criar plataforma, distribuir câmera para professor, ensinar a gravar, oferecer material e formação aos docentes, distribuir livros aos estudantes. Não é só dar internet para as pessoas — afirma. 

Gil também pontua que a desigualdade de condições interfere, inclusive, no esforço de estudar. Em um contexto no qual muitos alunos vão à escola para comer, ter um silencioso cômodo da casa com computador para se concentrar é para poucos. 

É o caso da estudante Sabrina dos Santos, 18 anos, que tem dificuldades para usar o Google Classroom, ferramenta divulgada pelo governo que simula uma sala de aula. Ela se prepara para o Enem, mas diz que o método impede que ela absorva todo o conteúdo. 

— A educação demanda paz e um local adequado. Não consigo me concentrar, é muito fácil se distrair ao telefone ou no computador. E como é cada um por si, deixamos de aprender em conjunto – afirma a aluna da Escola Estadual Olindo Flores da Silva, em São Leopoldo.  

Há ainda reclamações sobre a intenção do governador Eduardo Leite de retomar aulas na escola privada antes da rede pública – o Ministério Público já pediu que todas as aulas voltem ao mesmo tempo para não prejudicar os mais pobres. O documento tem apoio de entidades que representam secretários municipais da educação do Rio Grande do Sul. 

O Cpers/Sindicato defende que as aulas não voltem neste momento, sob o argumento de que escolas não conseguem garantir a segurança dos alunos e que o Estado não testa o bastante para controlar a população. 

— A escola particular pode vender-se como capaz de controlar mais o vírus, de oferecer máscaras, mas imagina uma criança de sete anos ficar quatro horas de máscara dentro de sala de aula. Quais escolas têm sala de aula com distanciamento de 1,5 m? Como fazer recreio com 1,5 metro de distância? É humanamente impossível um professor para 30 alunos mantê-los em distanciamento seguro para não haver contaminação — afirma. 

O presidente do Sinepe, Bruno Eizerik, diz que escolas privadas são mais rápidas em implantar medidas sanitárias, o que permite a retomada antes. Ele cita a inclusão de salões de beleza na lista de atividades essenciais pelo presidente Jair Bolsonaro, argumenta que a educação deveria fazer parte e que escolas precisam voltar, uma vez que, com a retomada de comércios, pais retomam o trabalho.

— Entendo que o Estado não tenha condições em implementar um protocolo em curto espaço de tempo. Mas se a rede privada consegue implementar, seria injusto que esses alunos não voltem à escola. Se eu acho correto que não se troque a data do Enem? Acho incorreto, os alunos da rede privada vão levar alguma vantagem. Mas eu diria que não podemos privar os pais que optaram por escola privada, se ela tem condições de oferecer as aulas, que ela deixe de oferecer porque outras escolas não têm condições — avalia.

Unidos, venceremos

Lauro Alves / Agencia RBS Professora Rose, criadora dos grupos de WhatsApp na escola Antão de FariaLauro Alves / Agencia RBS

Comunidades escolares se organizaram para lidar com os obstáculos. Além das apostilas, cada uma das 12 turmas da Escola Antão de Faria, no Bairro Bom Jesus, zona leste da Capital, tem um grupo de WhatsApp – há outro exclusivo para pais e professores. 

Os docentes estão disponíveis para responder nos três turnos do dia, segundo a faxineira desempregada Caroline dos Santos, 31 anos:

— O professor tá sempre online, tira todas as dúvidas. Dia e noite, eles nos ajudam sempre. 

O laço entre a comunidade escolar já era forte antes da pandemia, segundo a professora de história Rosilene dos Santos Coitinho, 43 anos, que destaca o retorno positivo dos pais. 

– Já temos, há muito tempo, esses grupos, pois na comunidade somos todos muito próximos. Mas me emociona o retorno positivo dos pais agora – conta.

Um exemplo é o de Suelen Neves, 27 anos, que mostra na tela do smartphone as centenas de mensagens enviadas por ela e outros pais, enquanto aguarda na fila para receber alimentos doados pela escola.

— Eu tô sempre do lado da minha filha. E ela adora - conta, ao se referir a Kauany, sete anos, que acompanha de máscara a mãe busca por comida.

A menina confirma o relato, mas fica encabulada quando questionada se acerta todos os exercícios enviados pela escola:  

— Acerto mais ou menos.

Evitar a perda de vínculos na escola estadual Matias de Albuquerque, no bairro Aberta dos Morros, extremo-sul da capital, motivou Rita de Cássia Assunção Lima, 48 anos, a criar uma página privada no Facebook para crianças de anos iniciais compartilharem fotos enquanto realizam estudam. O difícil momento uniu pais, alunos e docentes. No recesso, a pedagoga criou o “Clubinho da Prô Rita de Cássia”, um grupo onde não há obrigatoriedade de tarefas.

— São pais, muita vezes separados, que não víamos na escola e, agora, conhecemos a rotina deles. Tenho um aluno que passa um período com o pai em Porto Alegre e outro com a mãe, em Tramandaí. E os dois me enviam as atividades - salienta.

Félix Zucco / Agencia RBS

Caroline dos Santos, 31 anos, com o filho, Pyetro        Félix Zucco / Agencia RBS

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