Educação acontece na hereditariedade
‘A educação acontece na hereditariedade’, diz Ailton Krenak
Líder indígena e imortal da ABL diz que escola foi utilizada para dominar como o canhão e pede novas lições: lembrar dos avós, cantar e dançar
A delegacia, a prefeitura e a escola. Esse é o formato, diz Ailton Krenak, das primeiras plantas de cidades implementadas pelos portugueses ao colonizar essa terra que viria a se tornar o Brasil. Nesse contexto, a escola tinha um papel, diz o líder indígena, da mesma maneira que o canhão também tinha: o de dominar.
— Por isso as aulas são chamadas de grade curricular — diz o imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), rindo da brincadeira que inventou, durante a conversa que teve com a jornalista Flávia Oliveira, colunista de O GLOBO e comentarista da Globo News, na abertura do segundo dia do Festival LED.
Animado, o autor de “Ideias para adiar o fim do mundo” circulou de um lado para o outro do palco, riu, brincou com a jornalista e ganhou uma tangerina da plateia, que tentava acompanhar o raciocínio do líder indígena. Para ele, a escola que a gente conhece hoje ainda cumpre o mesmo papel do canhão.
— Fala-se da escola como sinônimo de educação. Escola é um prédio. Se não for ninguém lá, é um prédio vazio. Mas é um caixote. A educação acontece em outro plano, na identidade, na hereditariedade, no parentesco, na herança ancestral — afirmou. — Não podemos reduzir a educação ao conceito ocidental de ensinar a ler e apertar botão. Como diria Paulo Freire, devemos nos afastar de uma educação bancária. O primeiro dia de aula sempre deveria ser lembrar até onde conseguem: avô, bisavô, tataravô. Se perdermos isso, deixamos de ser humanidade e viramos zumbis andando pelo mundo sem direção.
Lições básicas
Krenak também enumera as outras lições que as crianças também deveriam ter: cantar e dançar. O imortal chega a citar o filósofo austríaco Rudolf Steiner de que a criança até sete anos não deveria passar pela experiência da educação formal.
— Isso viola a ideia do ser que está se formando. A criança não é um humano ainda estragado. É um anjo que chegou no chão da Terra e fica observando, pensando no que vai ser. Ele está escolhendo o que quer aprender e vem o mundo adulto, atropela, soca ele no salão da escola, bota na grade curricular e depois quer que seja uma pessoa boa, tranquila, centrada — diz o escritor.
Atualmente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) determina que as crianças devem começar sua vida educacional na pré-escola, a partir dos 4 anos, e estar já plenamente alfabetizada até o 2º ano, por volta dos 7 anos. Estudos do economista James Heckman, da Universidade de Chicago, prêmio Nobel de Economia em 2000, mostram que crianças que tiveram acesso a boas escolas na educação infantil tiveram maior taxa de conclusão no ensino médio, menores taxas de gravidez precoce, de envolvimento em crimes, entre outros fatores analisados.
Humanidade ciborgue
Durante a participação de Krenak, a organização do Festival LED apresentou um vídeo dele ainda jovem dizendo que o “povo indígena tem um jeito de pensar, um jeito de viver”. E o jeito que Krenak pensa é particular: para ele, a comunidade em que a criança vive (família e vizinhança, na cidade, ou a aldeia, no contexto indígena) é mais importante para a sua formação do que o colégio. E ele vai além disso: esse endereço voltado à instrução que chamamos de escola pode inclusive afetar negativamente o vínculo da criança com a sua comunidade.
— Somos instados a entregar ao Estado tarefas exclusivas da família, dos pais. As pessoas não deveriam renunciar a um mínimo constitutivo da identidade da criança até os sete anos — disse Krenak, já prevendo as reações que esse posicionamento pode causar. — Vão achar que eu sou conservador, né?
Na avaliação dele, a humanidade decidiu “terceirizar a cria” para as mãos de instituições públicas e privadas transmitirem valores em vez da comunidade deixar consigo essa tarefa. Na avaliação dele, isso se aprofundou tanto que o homem se afastou completamente da Terra. Agora, ele diz, lembrando dos alimentos ultraprocessados, não sabe mais nem do que é feita a comida que está no prato. E, no seu entender, há novos perigos no caminho.
— Estamos caindo nessa armadilha de imaginar que aparatos tecnológicos mediando a experiência da nossa criança com a educação teria algo de bom. Isso é a pior droga — apontou.
De acordo com ele, já há muita matéria interpondo o corpo da criação com o da mãe — e, agora, é cada vez mais comum crianças com celulares no colo de seus pais. E isso cria um fenômeno que Krenak chama de abismo cognitivo.
— Vamos criar gente parecido com robô. Tem carne, osso, sua, mas é robô — diz o imortal, que alerta. — Cuidado para não transformar nossa humanidade em ciborgue.
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