Educação brasileira e a pandemia
A educação brasileira e a pandemia: breve olhar conjuntura
por Rodrigo Coutinho Andrade
21 de Maio de 2020
Em 2019, apenas 55,1% dos estabelecimentos públicos de ensino fundamental possuíam bibliotecas, 33,1% apresentaram dependências adequadas para portadores de necessidades especiais, 44,3% contavam com laboratório de informática, 57,6% dispunham de internet em banda larga, 58,4% não tinham rede de esgoto, e 6,1% sem qualquer tratamento de resíduos. Acrescemos a isto o fato de que 34,2% das escolas, do mesmo nível de ensino, não possuem abastecimento regular de água
Qualquer aposta sobre o futuro, em qualquer flanco científico, é demasiadamente arriscada. Mesmo em mãos as evidências pretéritas, toda tentativa de descortinar o inexistente pode padecer ao fracasso, principalmente, no campo das ciências humanas. Neste sentido, tenho a pretensão de expor latentes questões, projetos, problemas e tendências da agenda neoliberal, materializada por meio das políticas públicas para a educação, antes, durante e os caminhos possíveis para o pós-isolamento social.
As previsões econômicas convergem para a retração do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano em diferentes ordens percentuais, com atualizações negativas e números divergentes. Enquanto o boletim Focus estipulou a retração de 3,76%, após mensurar negativamente em 3,34% na semana retrasada, e 1,18% no início do mês de abril, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) prevê, de acordo com o período de duração do isolamento social, a subtração do PIB entre 0,9% e 1,8%. Tais números são considerados otimistas pelos especialistas em economia no contexto de crises, que projetam o decréscimo de 5%, simétricos ao Banco Mundial em meados de abril no relatório The Economy in the Time of Covid-19.
Consecutivamente, os dados acerca do desemprego, e consecutivamente da reprodução material, anunciam tempos difíceis. Se no epicentro do capitalismo mundial os pedidos para a obtenção do seguro-desemprego alcançaram 33 milhões de estadunidenses semana passada, no Brasil 96,9 milhões solicitaram o auxílio emergencial, sendo aprovados 50,5 milhões. Em outras palavras, 53,3% da População Economicamente Ativa (PEA).
Sobre o desemprego, a previsão é de ascensão para 17,8%, indissociável da retração da renda média em 8,6%, de acordo com a pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV). Acrescemos a este cenário a elevada taxa de desocupação no início deste ano, contabilizado em 11,9% pelo Programa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD/IBGE), que mesmo indicando a ascensão da empregabilidade e tímido avanço da formalização das relações de trabalho, expôs que 40,6% da População Economicamente Ativa (PEA) se encontrava na informalidade antes da pandemia, e 27,6 milhões de brasileiros incluídos na força de trabalho subutilizada.
Tomando a última crise da economia na mesma escala como parâmetro, entre 2014 e 2017, os impactos percentuais negativos alçam proporções próximas até o presente momento. No biênio 2015-2016, a retração percentual do PIB alcançou 3,8 e 3,6, em 3,9 e 4,1 no consumo das famílias, e de 4,1 e 6,7 no consumo do governo. Soma-se a isto, a partir de dezembro de 2013, a elevação da dívida bruta, a retração do superávit primário, a escalada inflacionária alcançando 10,67% em 2015, a queda do rendimento em 14% dos 40% mais pobres do país, e o declínio do produto per capita em 9% entre 2014 e 2016. Contexto que impulsionou o discurso e as ações para a intensificação do ajuste fiscal, sacramentado por meio da Emenda Constitucional nº 5/2016.
Sistema público de educação
Pensando o objeto deste artigo, podemos indicar que o primeiro impacto da atual crise será a transferência de estudantes dos sistemas privados de ensino para a escola pública, inexorável do possível incremento da evasão. Isto ocorreu entre 2015-2016, de acordo com os dados do Censo Escolar do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), quando aproximadamente 300 mil estudantes migraram para as escolas públicas nas cidades brasileiras, após a expansão de aproximadamente 1,5 milhão de matrículas na rede privada entre 2010 e 2014, assim como o alargamento da taxa de evasão para 11,2% em 2015, após queda de 4,6% entre 2008 e 2014.
A provável transferência dos estudantes para os sistemas públicos de ensino acontecerá no contexto de retração das matrículas, de elevada distorção idade-série, contabilizada em 23,4% das matrículas nos anos finais do ensino fundamental e 26,2% no ensino médio, e de 7,6% das crianças e jovens fora dos espaços escolares. O maior impacto da evasão-abandono reside nas regiões norte e nordeste, na zona rural, entre as pessoas pretas e pardas e, obviamente, sobre os mais pobres – 11,8% destes abandonaram a escola em 2019 sem concluir o ensino médio, de acordo os dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE. Acrescemos a estes dados o contingenciamento do investimento para a educação em relação ao PIB, contabilizado em 0,7% entre 2015 e 2019, inexorável das investidas para a voucherização, que comprovadamente acentuou a desigualdade escolar nos Estados Unidos da América (Ver Rachitch, 2011).
Se tal tendência se confirmar, teremos outro problema. No ano de 2019, a média de alunos por turma no Brasil foi contabilizada em 27 estudantes nos anos finais do ensino fundamental na rede pública, enquanto na rede privada eram, aproximadamente, 24. No ensino médio, a média para o terceiro ano deste nível de ensino era de 30 estudantes nas escolas públicas, e 27 no sistema privado. Os dados disponíveis e sistematizados pelo INEP indicam a contramão das recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em estudo publicado em 2018, Education at a Glance: indicators, que reitera a média de alunos por turma, para a garantia mínima das premissas da qualidade da educação, em 21 para o ensino fundamental, e 23 para o ensino médio.
Soma-se a isto a precariedade estrutural das escolas no país. Em 2019, apenas 55,1% dos estabelecimentos públicos de ensino fundamental possuíam bibliotecas, 33,1% apresentaram dependências adequadas para portadores de necessidades especiais, 44,3% contavam com laboratório de informática, 57,6% dispunham de internet em banda larga, 58,4% não tinham rede de esgoto, e 6,1% sem qualquer tratamento de resíduos. Acrescemos a isto o fato de que 34,2% das escolas, do mesmo nível de ensino, não possuem abastecimento regular de água.
Pacotes educacionais
A segunda transformação em curso, mais evidente nos dias atuais pela mediação dos estudos à distância através de softwares, que não se trata de homeschooling, e muito menos Educação a Distância como modalidade de ensino, é a combinação entre a redução do custo das mensalidades na rede privada e a propagação de “pacotes” educacionais. Se por um lado os conglomerados da educação têm apostado nas escolas low cost, sincronizando a utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) com a liofilização do quadro de funcionários, nos mesmos moldes da empresa enxuta, por outro se expandem iniciativas pedagógicas em larga escala nos sistemas públicos de ensino, como por exemplo o contrato firmado pelo estado de São Paulo para a implementação da plataforma Escola Digital, desenvolvido pelos institutos Natura e Inspirare, e pelas fundações Lemann, Vivo e Vanzolini.
Sobre a redução do quadro pessoal, só basta recordarmos do trágico acontecimento na Escola Municipal Tasso da Silveira, ou o “massacre de Realengo” em abril de 2011, no qual a escola não dispunha de um porteiro. Acerca da introdução dos “pacotes” educacionais, os projetos e programas de aceleração dos estudos já fazem parte da rotina escolar no estado do Rio de Janeiro – Programa Autonomia, em parceria com a Fundação Roberto Marinho -, assim como as escolas estaduais geridas em parceria com a iniciativa privada, como o Núcleo Avançado de Educação (NAVE).
O terceiro impacto em andamento se refere à formação e ao trabalho docente. Sobre o primeiro, já está em andamento a reforma curricular dos cursos de licenciatura para a adequação das disciplinas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), denominado como BNC-Formação. Seguido da Resolução CNE/CP nº 2/2015, que promoveu a ampliação dos créditos práticos e a facilitação da segunda licenciatura, favorecendo a polivalência docente, a BNC-Formação tem como essência a reprodução das competências da BNCC nas disciplinas do Institutos de Ensino Superior para a formação de professores. Esta iniciativa, em tempos de acentuação do pragmatismo no magistério, se combina aos principais programas para os cursos de licenciatura – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e o Programa Residência Pedagógica –, e ao definhamento das bolsas e programas para a pesquisa científica, como o caso da retirada das ciências humanas no rol de prioridades para o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
Tais medidas vão de encontro às orientações dos organismos financeiros internacionais, como o caso do Banco Mundial. Esta instituição orienta, tomando como argumentação os indicadores do Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (PISA), para a ampliação do saber fazer no processo formativo e a otimização cronológica na relação ensino-aprendizagem, de acordo com o Método de Stallings. Isto sem considerar o elevado esforço docente, a parca remuneração, a baixa regularidade dos professores em uma escola, a formação ainda insuficiente, que nos arrisca a afirmar que o magistério no Brasil ainda não se constitui integralmente como ofício, e o quadro de absenteísmo e adoecimento dos profissionais da educação.
Trabalho docente
No ano de 2019, 42,9% dos professores do Brasil tinham entre 50 e 400 alunos, trabalhando em dois turnos e em mais de uma escola. 7% lecionaram para mais de 400 alunos, nos três turnos, e em duas ou mais escolas de acordo com os dados do INEP. No mesmo ano, a melhor média salarial dos professores no Brasil, que trabalharam na rede federal, alcançou a quantia mensal de R$ 7.767,94. Esta, ao mesmo tempo em que computa quase o dobro das demais redes de ensino, está aquém da média dos vencimentos docentes dos países centrais da OCDE, entre 36.900 e 45.900 dólares anuais nos países centrais, e inferior a alguns países da América Latina – o rendimento anual dos professores no Chile alcança em média 24 mil dólares, e na Costa Rica 24.900 da mesma espécie. Se colocarmos o rendimento anual dos professores da rede em questão, que detém os melhores vencimentos médios no país, na cotação do dólar em dezembro de 2019 – R$ 4,05 –, alcançaremos a quantia de aproximadamente 23 mil dólares anuais.
A regularidade docente é outro agravante. Enquanto a OCDE destaca que o mínimo para um professor se adequar a escola, para execução das atividades escolares com referida qualidade, seria o período de cinco anos por razões óbvias, apenas 9% dos docentes no país alcançam este prazo, principalmente por razões materiais. Por fim, destacamos que 88,5% dos professores do ensino médio no Brasil possuem a formação adequada. Ao examinarmos as variáveis do Resumo Técnico do Censo Escolar de 2019, podemos afirmar que somente 32,2% dos professores de sociologia do ensino médio possuem o diploma de licenciatura. O que nos permita afirmar que o magistério ainda não se constituiu como uma profissão de fato.
As informações acima se coadunam ao cenário de precarização do trabalho docente quando verificamos as mutações do regime de contratação e o absenteísmo. Os dados do Censo Escolar apontam para a ampliação do número de professores contratados temporariamente nos diferentes sistemas de ensino, como o caso do estado de São Paulo em relação ao professor eventual (Venco, 2019), que podemos categorizar como uberizado. Este, convocado pela escola quando houver a demanda, mesmo sem possuir a formação específica para tal – vide a admissão de estudantes de graduação –, não possui nenhum vínculo de trabalho, nenhuma quantidade de horas fixadas no contrato, ou qualquer regulamentação laboral, nos moldes do trabalho intermitente, ou sobre as bases do zero hour contract, sendo também avaliado. Diante do cenário de desprofissionalização, cientes de que a convocação do professor eventual ocorre minutos antes do início da aula, o que impede, obviamente, o planejamento necessário, resta-o a reprodução do “pacote” já pronto.
Professor delivery
Outras medidas neste intento se espalham no país, ou quase, como o caso da prefeitura de Ribeirão Preto (SP) que chegou a desenvolver um aplicativo – Professor Delivery – para a contratação de professores temporários. A iniciativa estabelecia um intervalo de 30 minutos entre a convocação e o tempo de resposta do professor, assim como uma hora para chegar à escola; mas não chegou a se concretizar. Porém, no Rio Grande Sul ocorreu a contratação de professores voluntários no contexto da greve dos professores no término do ano de 2017, ou o caso da contratação – pregão – por menor preço global executado pela prefeitura de Angelina (SC).
Ambos os casos ferem diretamente o Artigo nº 67 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que regulariza o ingresso docente por meio de concurso público de provas e títulos, e a Lei nº 11.738, de 16 de julho de 2008 que institui o Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN) para o magistério, sem contar que a contratação temporária – intermitente – anula o tempo de planejamento das aulas em dois terços do contratado, como rege o quarto inciso do Artigo nº 2 da lei do “piso”. Ao mesmo tempo, os professores eventuais, ou temporários, ficam excluídos de um dos principais fatores para a valorização salarial docente – o tempo de serviço.
Ademais, é nítida a ascensão do número de professores cadastrados em aplicativos para aulas particulares nos mesmos moldes da Uber – como o caso do Superprof –, de modo concomitante à ascensão dos softwares para a “mediação” da relação ensino-aprendizagem nas diferentes redes de ensino, promovendo o refino do apostilamento. Ao mesmo tempo em que isto indica a saturação do mercado de trabalho mesmo considerando a elevada demanda por docentes, esmera de modo profícuo novas formas de regulação da atividade dos professores, por meio do controle dos objetivos de aprendizagem e das habilidades e competências prescritas no currículo com fins avaliativos, baseados na performance.
Isto tem provocado um cenário gravíssimo de absenteísmo entre os professores. No caso do estado do Rio de Janeiro, no ano de 2017, verificamos que 3.271 servidores solicitaram exoneração, sendo 68% na Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). Sobre o estado de São Paulo, segundo reportagem da Folha de São Paulo com base nos dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE), o absenteísmo alcança a média de 36 dias na rede municipal, e aproximadamente 30 dias na rede estadual. Um quarto das razões para as ausências nas redes paulistas são por estresse, sendo os principais sintomas contabilizados em 16,5% por fadiga/cansaço, 15,9% motivados por dor de cabeça, e 15,1% por crise de ansiedade.
Neste tenebroso cenário verificamos nos dias atuais a demissão de professores pelas distintas redes de ensino, como a prefeitura de Rio das Ostras no estado do Rio de Janeiro, ou o caso do Grupo Alicerce, a ampliação da carga horária de trabalho, relatos de assédio e a retração dos rendimentos em decorrência da inadimplência, ou por medidas de ajuste fiscal nos diferentes municípios, precedidas de atrasos salariais em diferentes estados provocados pela crise fiscal. Ao mesmo tempo o MEC age para o incremento das atividades à distância, ou o ensino remoto, prescindindo de equipamentos tecnológicos nos domicílios. Isto tende a ampliar a dualidade educacional, cientes que aproximadamente 32% dos estudantes do estado do Rio de Janeiro que participaram do ENEM em 2018 não tinham computadores em casa, e que esse dado alcança 47% das casas no mesmo estado.
Em tempos de isolamento, vislumbrando um possível futuro com toda premissa do erro, como pensar o trabalho docente por meio da instabilidade do emprego, da perda salarial e do congelamento futuro dos rendimentos, assim como o assédio constante por resultados derivados do accountability educacional e da agenda neoliberal para a educação? E, principalmente, como projetar a elevação da qualidade da educação em bases estruturais tão iníquas, como reflexo da sociedade brasileira? Resta-nos o pessimismo da razão como certeza, e o aprofundamento da dualidade estrutural da educação brasileira em tempos de barbárie.
Rodrigo Coutinho Andrade é professor do Departamento de Geografia do IM-UFRRJ.
https://diplomatique.org.br/a-educacao-brasileira-e-a-pandemia-breve-olhar-conjuntural/