Educação brasileira na UTI
O negacionismo levou a educação brasileira para a UTI
Por enquanto, a defesa retrógrada e inconsistente dos discursos sobre meritocracia só nos remete ao discurso astuto do crescer para depois distribuir
Vladimir Safatle, professor titular do Departamento de Filosofia e do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, publicou, na Revista Cult, o artigo "Os dois tempos de uma análise", trazendo abordagem de Theodor Adorno sobre o adoecimento psíquico construído dentro das sociedades: "a consciência clínica de que adaptar sujeitos a uma sociedade doente seria apenas uma forma mais cruel de adoecê-los".
Safatle explica que a sociedade doente se revela pelo funcionamento dito normal daquilo que ela mesma considera "patológico". A sociedade, nas palavras do filósofo, "fortalece seus vínculos sociais, suas relações de poder, fazendo o que é "patológico" funcionar, fazendo-lhe produzir trabalho, valor, instituição social, afetos, vínculos".
Nesse sentido, não é tão simples compreender que a normalidade é ingressar em dinâmica social que busca automatizar as formas de se relacionar, seja afetiva ou profissionalmente, naquilo que Freud definiria como amar e trabalhar a partir de uma sociedade capitalista que empurra sujeitos para formas de mutilação. E se o adoecimento social nas sociedades capitalistas já vinha se intensificando, com a pandemia ele foi desmascarado.
Na comemoração do Dia Internacional da Educação, em 24/1, promulgado há quatro anos pela Organização da Nações Unidas (ONU), o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) divulgou que 258 milhões de crianças e jovens ainda não frequentam escola; 617 milhões não sabem nem ler nem fazer contas básicas; e aproximadamente 4 milhões de crianças e jovens refugiados estão fora da escola. Especificamente em relação ao Brasil, em vários estados, 75% das crianças da segunda série do ensino fundamental estão atrasadas com a leitura, enquanto 10% dos jovens, entre 10 e 15 anos, não pretendem voltar às aulas presenciais.
Em 1991, Ricardo Paes de Barros (PB, como é chamado) e eu produzimos, para o Unicef-Brasil, estudo sobre as consequências de longo prazo do trabalho precoce que, em última instância, evidenciava a reprodução intergeracional da pobreza. Em três décadas, as políticas públicas sociais não foram capazes de manter os jovens na escola - a evasão escolar no ensino médio manteve-se elevada e com a pandemia, acentuada, e os ciclos intergeracionais perpetuados.
Em entrevista concedida semana passada, PB enfatizou, mais uma vez, a perda da oportunidade de se redesenhar a política de concessão de benefício com a criação do Auxílio Brasil. Para PB, seria uma boa chance de se corrigir distorções que tratam diferentes como iguais e que não criam nenhum tipo de incentivo para o jovem continuar na escola: "O que precisamos fazer como sociedade brasileira é descobrir quem está fazendo educação de alta qualidade para pobres. E tem gente muito boa, no Brasil, ensinando muito bem aos pobres, em nível europeu, como mostram Cocal dos Alves e Apiaí" - dois municípios de excelência em matemática e português nos exames do Programa Internacional de Avaliação dos Estudante (Pisa).
Enquanto o setor público vem, há décadas, ignorando seu papel de provedor de educação de qualidade, o País tem perdido espaço no ambiente internacional e o adoecimento psíquico social se nutre da falta de estímulo e do desamparo. Nesse vácuo, cada vez mais instituições sem fins lucrativos, oriundas do setor privado, vêm ocupando espaço que deveria ser de honra do setor público. Exemplo recente e louvável é do Todos pela educação, com a criação do programa Compromisso com a Educação, iniciado no ano passado (2021).
A ideia do programa é sensibilizar gestores públicos municipais sobre a importância de priorizar a educação básica durante os quatro anos de gestão. Incrível como as instituições e fundações privadas sem fins lucrativos, voltadas para a educação, fazem esforço hercúleo para atuar junto às Secretarias de Educação e levarem sementes para fazerem vingar a raiz das melhores práticas na educação.
O atraso do Brasil em entender as desmotivações das crianças e jovens exige, obrigatoriamente, que educadores, formuladores de política e gestores municipais, estaduais e federais repensem urgentemente o futuro da educação básica brasileira. Certamente algo tem dado muito errado e os desestímulos e déficits educacionais são de grande responsabilidade pública.
A Unesco acaba de lançar o Reimagining our futures together: a new social contract for education (Reimaginando nossos futuros juntos: um novo contrato social para educação), documento que tem a intenção de desenhar como deve ser a política educacional global até 2050. Partindo de cinco propostas, o documento da Unesco é também um manual de boas práticas para um futuro inclusivo, colaborativamente empreendedor, transformador, cooperativo e solidário. Alunos devem se beneficiar de aprendizados interculturais e interdisciplinares; professores devem ser figuras-chave na transformação social e educacional.
A educação deve caminhar objetivamente para a inclusão, o respeito, a cooperação, a diversidade, a igualdade, o estímulo às aptidões e habilidades inatas, mas tudo isso só será possível se os Estados e seus servidores públicos entenderem que precisam estar verdadeiramente compromissados em educar suas crianças e jovens. Recurso não é exatamente o problema, mas sua má alocação certamente o é.
Por enquanto, a defesa retrógrada e inconsistente dos discursos sobre meritocracia só nos remete ao discurso astuto do crescer para depois distribuir. O mundo capitalista, sobretudo nos países menos desenvolvidos, se beneficiou desses discursos para reforçar sua rede de exploração, acúmulo de lucros e distorções no sistema capitalista. Tratem desiguais como desiguais, reduzam abismos sociais, não tenham medo da competição, das diversidades de gênero e raça, da potência humana. O medo só destrói as relações afetivas e profissionais.
O adoecimento social só tem servido para construir, além de um exército cada vez maior de desalentados, a falsa ilusão de que o sistema tem falhas e precisa ser corrigido, embora seus princípios sejam soberanos. Às favas com a soberania tirana que é capaz de assassinar o surfista Wellington Reis, que, em 2015, aos 13 anos de idade, tornou-se campeão brasileiro de surfe, mas faleceu há 2 semanas, na condição de morador de rua - alcançada pela falta de incentivo e patrocínio para continuar na atividade que tinha habilidade inata e condição de romper com seu ciclo intergeracional de pobreza.
Há quantas décadas não queremos perceber que nosso sistema educacional também faleceu dentro das estruturas de nossos grupos escolares, colégios e secretarias de educação? Essa mesma sociedade adoecida que tornou Wellington Reis invisível foi capaz de deixar o fotógrafo suíço René Robert caído inconsciente na rua, em região bem movimentada da noite parisiense, ao ponto de morrer de hipotermia. Ambos morreram com diferença de quatro dias e com a distância de dois continentes.
Mas a indiferença, tal qual também temos aqui por nossos moradores de rua, cada vez mais jovens, fez com que se passassem nove horas e ninguém percebesse René Robert, assim como passaram-se décadas e o Brasil também não percebeu que seu sistema social está na UTI, como um paciente com Covid-19 que se recusou a tomar vacina - a probabilidade de morte é alta para os negacionistas!