Educação como direito?
Educação como direito de quem?
Por Mirian Mazzardo
Muito dos escritos sobre a educação apresentam opiniões diversas sobre o ambiente escolar. Não diferente de outros, esse texto busca a reflexão e o questionamento sobre a prática docente, sobre o papel da escola enquanto instituição formadora de cidadãos para o mundo e sobre o direito à educação.
Quando falamos sobre educação formal, curricular, é preciso pensar: a educação é para quem? Qual é o papel da escola na vida do estudante? Poderia dizer que a educação é feita para todos e todas e que a escola tem o papel de ajudar a formar o cidadão do mundo e para o mundo, mas a questão vai além do que podemos concluir inicialmente.
Algumas referências sobre a educação apresentam um ideal de escola que estamos longe de atingir, afinal, não podemos esquecer que as classes dominantes são detentoras do poder e da influência do que e como aprendemos as coisas, inclusive os conteúdos científicos e pedagógicos. Quando confrontados os ideais com a realidade, o impacto acontece: escolas sem professores, sem merenda, professor sem salário, violência no ambiente escolar, são alguns fatores que mais emergem soltando gritos abafados de socorro quando chegamos nas instituições públicas, principalmente as presentes nos bairros periféricos. Tanto a escola quanto os estudantes, precisam de atenção. Atenção no sentido de pertencer e ser pertencente a um ambiente dentro de uma sociedade que, em boa parte do tempo, vê à docência como uma complementação de renda e não como um trabalho fixo e de sustento e tem o colégio como um “depósito” de estudantes.
Ao assistir alguns filmes que relatam a vida docente, muito me admira a facilidade e simplicidade com que o tema é tratado. Geralmente as histórias têm o mesmo enredo: um professor vindo da cidade grande chega em um colégio na periferia, leciona para a turma que é considerada a pior e mais problemática e, no fim, acontece a magia: todos os estudantes em perfeita harmonia com o professor e com a escola, como se tudo fosse simples e fácil de ser resolvido apenas com as aulas dentro do colégio.
Quem dera a realidade fosse essa! Quando se analisa a realidade escolar existente no sistema público de educação atual, nos deparamos com uma estrutura de ensino defasada e, muitas vezes, precária, tanto em relação ao conteúdo curricular obrigatório (que muitas vezes não se aproxima da realidade do estudante) como na questão de estrutura física escolar e na não presença dos jovens e crianças na escola, questões que vão além do funcionamento do sistema dentro do colégio.
Mesmo sabendo que a educação é um direito humano e estabelecido na constituição federal de 1988, ainda presenciamos constante violação desse direito. Dados de 2019, apontam que cerca de 11 milhões de jovens não estudam e não estão colocados no mercado de trabalho. Os chamados “nemnem”, por não estarem incluídos nas escolas e nos postos de trabalho, dizem mais do que imaginamos sobre a realidade social e econômica que vivemos. Sabe-se que a realidade socioeconômica de muitas famílias no Brasil não são ideais para uma boa condição de vivência, quando muito, beiram apenas a sobrevivência.
A vida cotidiana vira um efeito dominó da tragédia: o jovem está fora da escola porque precisa trabalhar – muitas vezes, informalmente, para ajudar no sustento da casa -, não estudando, dificilmente vai conseguir um emprego com melhores condições de trabalho, visto que não tem formação suficiente exigida pelo mercado, acentuando ainda mais as desigualdades sociais entre as classes.
Quando pensamos a escola pública outros fatores devem ser levados em consideração – o currículo escolar principalmente, já que em muitos casos, não se aproxima da realidade dos estudantes que frequentam as aulas. Pimenta (1997) acredita que: Ao desenvolverem um currículo formal com conteúdos e atividades de estágios, distanciados da realidade das escolas, numa perspectiva burocrática e cartorial que não dá conta de captar as contradições presentes na prática social de educar, pouco têm contribuído para gestar uma nova identidade do profissional docente. (PICONEZ, 1991; PIMENTA, 1994; LEITE 1994 apud PIMENTA 1997).
Isso não reflete somente na identidade docente, mas também na percepção do estudante em relação a escola, já que ainda existem práticas didáticas que não favorecem o estudante para que ele seja o protagonista do seu processo de ensino e aprendizagem, assim, a educação “engessada” pode afastar o estudante da escola, já que ele se torna um receptor e reprodutor da vivência, mas a sua condição e conhecimento pré-escolar é deixada de lado para que o conhecimento científico-pedagógico venha a se tornar o “real”.
Lembrando mais uma vez que o que e como aprendemos sempre são contextos definidos pelas classes dominantes, não atoa, na educação pública, as ciências humanas são as menos valorizadas. Enquanto muitos colégios particulares trabalham com metodologias ativas, práticas pedagógicas montessorianas e pedagogia Waldorf, por exemplo, para desenvolver a criatividade, independência, senso crítico e autonomia estudantil, os currículos públicos trabalham com conteúdos tecnicistas e que dificilmente permitem que os estudantes questionem dentro do processo de ensino e aprendizagem.
Por mais que pareça clichê, por que sempre coloco a importância do estudante como protagonista da sua construção educacional e da necessidade do currículo se aproximar da realidade desses jovens? Porque, em muitos casos, eles não se sentem pertencentes ao colégio. Eles não se consideram parte importante da aprendizagem e da construção coletiva da educação e do ambiente escolar. Além das questões sociais que estão fora da escola, esse não pertencimento pode contribuir para que os jovens deixem a escola, já que ela passa ser reprodutora das violências cotidianas, já que não percebem a escola como elo de transformação social e pessoal.
É fato que não tem como colocar a “culpa” de tudo isso somente no professor, que passa 45 minutos dentro de sala, dos quais ainda se dividem entre acalmar a turma, fazer a chamada, passar o conteúdo e conseguir sintetizar uma explicação, além disso, muitas escolas não dispõem de recursos que possibilitem práticas diferenciadas e, outro fator agravante dentro desse processo, é a falta de assistência do próprio Estado, lotando cada vez mais as salas, desvalorizando os professores, entre outras coisas que são mais comuns do que aparentam.
Obviamente que se sentar em frente ao computador e escrever críticas, relatar problemas e apontar o óbvio sobre as realidades e distopias é uma tarefa simples. A partir da convivência presenciei muitas coisas, inclusive muitas sem resolução imediata, não por falta de competência ou de interesse mas, principalmente, por não serem problemas possíveis de ter uma resolução individual, ou com os estudantes, ou colegas de profissão, porque esses problemas se encontram em esferas que estão além do que a escola, enquanto auxiliar na formação cidadão, pode fazer. Existem problemas estruturais que necessitam de assistência e presença EFETIVA do Estado para que haja transformações e melhorias. Pensar em quem, de fato, tem o direito à educação de qualidade no Brasil, é o início da transformação do pensamento social que permeiam as discussões educacionais.
Esse texto serve de introdução provocativa para as próximas discussões ligadas à diversidade que estão por vir. Refletir os processos que vivemos conjunturalmente é essencial para pensarmos saídas alternativas para enfrentar as desigualdades sociais de forma efetiva.
*
Sobre a autora: Mirian Mazzardo, 23 anos, moradora da periferia de Curitiba. Graduada em Ciências Sociais (PUCPR), professora de Sociologia e Fundamentos do Trabalho na rede pública estadual do Paraná e professora voluntária do Cursinho Popular Alicerce 23. Atua na luta pela democratização do ensino, educação popular, combate às desigualdades sociais e na luta pelo direito à moradia, em Curitiba.
https://observatorio3setor.org.br/observatorio-em-movimento/educacao-como-direito-de-quem/