Educação e cultura indígena
Por GABRIEL DE ARAUJO SILVA*
Considerações sobre o processo de expansão do sistema de escolarização indígena no Brasil
A história da educação escolar entre povos indígenas no território dominado pelo Estado brasileiro é dividida por Ferreira (2018) em 4 fases. Sendo que uma nova fase não significa o fim da outra, mas é um marco do surgimento de novas tendências ou orientações.
A primeira fase é marcada pela chegada dos europeus até o século XX, se resume à catequese e a uma política de assimilação cultural ou destruição das culturas indígenas. A segunda fase se dá quando em 1910 com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) surge uma nova abordagem do Estado em relação a Educação indígena, com uma alegada preocupação com a diversidade cultural e linguística dos povos originários, através de uma abordagem menos desumana.
Em 1967 foi criada a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) em um contexto de denúncias internacionais em relação às práticas brasileiras para com a educação escolar indígena ao não garantir o ensino bilíngue. Dessa forma este tipo de ensino foi adotado pela Funai, porém ainda com objetivos integracionistas. A Funai faz parceria com a empresa estadunidense SIL (Summer Institute of Luinguistics) para criar material de alfabetização em línguas indígenas e português. Um dos objetivos deste instituto é a tradução da bíblia para todas as línguas, o que mostra a forte continuidade do caráter evangelizador.
A terceira fase se dá com o surgimento de iniciativas alternativas a do Estado e de instituições não governamentais, a partir do final dos anos 1970. Com o surgimento de organizações indigenistas não governamentais no final dos anos 1970 como a Comissão Pró-índio de São Paulo (CPI/SP); Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI); Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAÍ); Centro de Trabalho Indigenista (CTI) A partir de 1974, iniciou se a realização de assembleias indígenas em todos o país, articulando lideranças indígenas até então isoladas do cenário político nacional. Também foram criadas organizações indígenas como a UNI (União das Nações Indígenas) em 1980. Em 1979 aconteceu o “I Encontro Nacional de Educação Indígena” Organizado pela CPI/SP. O encontro desencadeou uma série de outros encontros de educação para indígenas no país
A quarta fase seria a atual, com o avanço de experiências de autoria indígena e encontros entre professores indígenas, entrando atualmente num período marcado por uma inédita inserção dos povos indígenas nos órgãos culturais e educacionais nacionais.
A história da educação escolar indígena é transpassada pela tensão entre horizontes de genocídio, apagamento étnico e destruição, mas também anseios emancipatórios seja pela via da integração a sociedade brasileira, ao mercado de trabalho ou da esperança que com a educação formal seria possível melhor resistir.
O documentário Escolarizando o mundo: último fardo do homem branco traz uma reflexão a partir do exemplo de uma escola em Ladack, no interior da Índia, sobre o apagamento da cultura e de conhecimentos locais em nome de um padrão cultural eurocêntrico globalizado que é ensinado pela escola, o filme mostra como grandes corporações internacionais financiam a escolarização de comunidades isoladas, tendo como resultado final sua desvinculação com seus territórios tradicionais, o apagamento de sua cultura e sua proletarização. Cenário que lembra o atual momento do ensino indígena, com a presença de ONG com financiamento internacional. Este processo de homogenização de diferentes culturas dentro de um padrão único levou a filósofa indiana Vandana Shiva a cunhar o conceito de “monoculturas de mentes”, denunciando o pensamento único capitalista que ele cria por todo o globo.
No Brasil, a assimilação e o apagamento do indígena e das culturas tradicionais populares são temas em debate na palestra “ O Truque Colonial que Produz, o Pardo, o Mestiço e outras categorias de Pobreza”. Aí, Ailton Krenak denúncia como no Brasil a categoria “pardo” é resultado do apagamento da matriz cultural afro indígena e de uma proletarização rebaixada destas populações, defendendo um movimento de retomada cultural como via emancipatória.
O movimento de retomada indígena é um excelente exemplo das contradições da instituição escolar, se por um lado a escolarização é historicamente um instrumento de dominação, por outro também é um espaço frequentemente reivindicado ou auto-construído pelas próprias comunidades indígenas em seus projetos de luta. Neste sentido temos dois exemplos da Bahia, os das retomadas de terras dos Patoxó Hã Hã Hãe e dos Tupinambá de Olivença, ambos tiveram no ambiente escolar um espaço para o processo de retomada de suas culturas tradicionais, de seu orgulho coletivo, da valorização e compartilhamento de conhecimentos tradicionais agrícolas, botânicos, farmacológicos, espirituais, assim como a realização da própria organização do movimento pela demarcação e retomada de seus territórios ancestrais teve na escola um espaço estratégico.
A história dos Patoxó Hã Hã Hãe foi registrada no livro A escola da reconquista da professora e liderança indígena Maria M. A. Ribeiro (2021), conhecida como mestre Maya e o registro das práticas de educação na comunidade Tupinambá de Olivença por Santana e Cohn (2016).
Os indígenas nas universidades brasileiras
Em recente palestra na Unicamp, o professor Gersem Baniwa, da Universidade de Brasília (UnB), tratou de muitos temas polêmicos, afirmou que ainda não se aceita a autoria indígena plenamente no meio acadêmico, e defendeu a necessidade de uma modernização indígena que não signifique assimilação, aculturamento e perda da autonomia.
Otimista, o professor acredita que vivemos um momento em que os povos indígenas no Brasil voltam a imaginar futuros possíveis depois de um longo período de revezes contínuos. Acredita que vivemos num momento de superação de uma tutela histórica, com a ascensão dos povos indígenas como sujeitos na vida nacional.
Segundo o professor, houve grande avanço no acesso e na permanência de indígenas nas universidades brasileiras, apesar da insuficiência de políticas específicas. Vê que segue um grande desafio a integração pedagógica, no sentido que o ensino universitário hoje se resume ainda para o indígena na integração a sociedade brasileira, em um processo de aculturação e de embranquecimento, não havendo ainda sido encontrado lugar para os saberes e a cultura indígena na universidade. Há apenas espaços ainda muito incipientes como um raro seminário ou disciplina sobre pensamento indígena em ou outro lugar, mas ainda não há espaço real aos indígenas seja no currículo seja nos programas de pesquisa.
Gersem Baniwa estima que há atualmente em torno de 100 mil indígenas no ensino superior, havendo 16 doutores formados e 12 professores efetivos em universidades públicas. Acredita que essa nova geração irá marcar uma inflexão no papel que é reservado aos indígenas na cultura brasileira.
No início deste ano houve o suicídio de Jorge Figueiredo Alves, aluno da Unicamp e primo de primeiro grau do professor Gerson. A taxa de suicídio entre indígenas é o triplo da média nacional. Também no primeiro semestre deste ano, se suicidou Lucas Souza, aluno do mestrado de filosofia na USP, que entrou na graduação em filosofia na mesma geração que eu na minha primeira tentativa de cursar a universidade. Mostrando como a realidade do aluno pobre, preto e periférico, do indígena, segue extremamente dura, massacrando-nos e roubando o sentido da vida mesmo dos nossos melhores companheiros.
Também na Unicamp, ocorreu em 12/05/2023, o Seminário de Extensão e Cultura: Casas dos Saberes Ancestrais, marcando a continuidade do projeto de ampliar o espaço institucional reservado aos povos indígenas dentro desta universidade, mesmo que ainda sem recursos suficientes. A artista visual Daiara Tukano fez uma fala emocionante, contou a história das crianças indígenas separadas de seus povos e criadas em seminários, tendo muitas mortas nesse processo, em São Gabriel da Cachoeira, fez a defesa da inserção do ensino de história e cultura indigena e africana como disciplina obrigatória nas licenciaturas da Unicamp, passando um abaixo assinado neste sentido.
Naldo Yupurí Tukano, estudante de linguística e membro do Coletivo de Estudantes Indígenas da Unicamp, falou sobre o processo e as dificuldades de construção conjunta com os mais de 40 povos indígenas que estão presentes na Universidade. Também divulgou o grupo de estudos de filosofia indígena que se reuniram toda a segunda feira de manhã no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) para a leitura do livro A queda do céu de Davi Kopenawa Yanomami, o grupo de alunos auto organizados supre uma demanda de debate sobre o pensamento ameríndio que ainda é completamente ausente nas disciplinas do departamento de filosofia da Unicamp.
A ópera O Guarani
No mês de maio deste 2023 foi realizada uma temporada de exibição da Ópera O Guarani de Carlos Gomes no Teatro Municipal de São Paulo. Ailton Krenak realizou a concepção geral e Denilson Baniwa trabalhou na codireção artística e cenográfica. Foi a primeira vez que ópera foi encenado com um guarani no palco como um dos artistas. Os personagens principais, Peri, o indígena guarani e Ceci, filha de um português, contam em cena com duplos indígenas. Em determinados momentos há um coral guarani e cenas encenadas por indígenas sem conexão continua com o restante da ópera, o coro indígena aparece como uma ruptura na música lírica e sua orquestra.
Há uma cena que sugere certo tensionamento, no momento de conversão de Peri ao cristianismo, que a imagem de nossa senhora é substituída pela figura do duplo indígena de Peri apontando seu arco e flecha para seu duplo branco. A ópera segue o libelo original de Antonio Scalvini e Carlo D’Ormeville e a história colonial que louva o genocídio indígena permanece a mesma. A quase totalidade de cantores líricos e músicos na realização da ópera são brancos. A ópera incomodou por servir de palco político aos indígenas que sempre ao final da ópera levantaram suas faixas por demarcação.
Esta encenação de O Guarani, junto a outros marcos, como a expansão da participação indégena nas universidades e a fundação do ministério dos povos indígenas, marcam esta conjuntura de entrada da participação indígena no que era chamado de “alta cultura” e no Estado. Se estes fatos são uma novidade histórica, a presença indígena segue como subalterna, sujeitos submetidos ao segundo plano. O avanço no congresso da votação do Marco Temporal, não só interrompendo o processo de demarcações de terras indígenas, mas colocando em risco também territórios já demarcados, mostra os limites ainda muito estreitos do avanço da influência indígena em poder concreto para o Estado brasileiro. Qualquer ilusão nestes avanços desmancha feito açúcar na chuva, para usar a expressão da excelente análise de Silvia Adoue (2023).
No lançamento da Trilha de Sustentabilidade da Unicamp em 10/03/2023, Ailton Krenak encarou com o ceticismo o avanço de figuras indígenas na universidade e em espaços de representatividade, se perguntando se seria a coisa certa a se fazer, citando como exemplo o processo dos EUA onde os indígenas teriam perdido seus territórios e culturas mas que teriam conquistado espaços de reconhecimento e dinheiro, vendo que os povos indígenas estariam hoje enfrentando dilemas semelhantes aqui no Brasil. Esta em aberto se essas novas aberturas a cultura indígena servirão apenas para assimilação e aculturamento, ou potencializarão novos e inesperados ciclos de ascensão de lutas e resistências.
*Gabriel de Araujo Silva é estudante de filosofia na Unicamp.
Referências
ADOUE, Silvia. Feito açúcar na chuva. Quilombo Invisível, 29/05/2023. Disponível em: https://quilomboinvisivel.com/2023/05/29/feito-acucar-na-chuva/
BANIWA, Gersen. Fala no colóquio Instituto Rouanet, Mesa 4, Políticas de emancipação indígena, 14/04/2023. Disponível em: https://www.youtube.com/live/3fv5bnY7-TM?feature=share
FERREIRA, Mariana. K. L. A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da Situação do Brasil. In: SILVA, A. L. e FERREIRA, M. L. (orgs.). Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. MARI/FAPESP/GLOBAL. 2000.
KRENAK, Ailton. O Truque Colonial que Produz, o Pardo, o Mestiço e outras categorias de Pobreza. TV Tamuya, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dvijNR9Nbgo
KRENAK, Ailton. Lançamento da Trilha de Sustentabilidade na Unicamp. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iXO1jfCrjqs
RIBEIRO, Maria Muniz de Andrade. A escola da Reconquista. Bahia, Teia dos Povos, 2021.
SANTANA, J. V.; COHN, C. (2016). Formas de estar na cultura na e pela escola: o caso dos indígenas Tupinambá de Olivença/BA. Anthropológicas, 27(1): 218-244.