Educação em disputa, 100 dias
Educação em disputa: 100 dias de Bolsonaro
Os temas que estão em destaque e a análise de especialistas em educação nos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro
Nesta quarta-feira (10/04), o governo Jair Bolsonaro completa 100 dias. Em cerca de três meses, mudanças significativas já ocorreram no Ministério da Educação (MEC) e temas estruturantes da política educacional seguem em debate.
Para avaliar o período, o Carta Educação, a Ação Educativa e o De Olho nos Planos e lançam hoje o especial Educação em disputa: 100 dias de Bolsonaro, que pretende, por meio de artigos e reportagens, ampliar o debate sobre as pautas governamentais para a educação.
Diariamente, publicaremos conteúdos sobre os temas listados abaixo. Acompanhe!
1. Extinção de secretarias
Em janeiro, por meio de decreto, foi extinta a Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (SASE), principal responsável por articular o Sistema Nacional de Educação (SNE), prestar assistência técnica e dar apoio aos estados e municípios no processo de monitoramento e avaliação dos planos decenais de educação, além da implementação do Piso Salarial Nacional.
A SASE foi criada em 2011 a partir de uma demanda apontada durante a Conferência Nacional de Educação (CONAE) 2010. Suas atribuições passaram então para a Secretaria de Educação Básica (SEB).
Assim como a SASE, o ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI).
O órgão era responsável pelos programas, ações e políticas de Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação para as relações Étnico-Raciais e Educação em Direitos Humanos. Em seu lugar, foram criadas duas novas secretarias: a Secretaria de Alfabetização e a Secretaria de Modalidades Especializadas da Educação. Vale destacar que não foram divulgadas que ações, programas e políticas das secretarias anteriores continuarão em andamento.
2. Disputa de política de alfabetização
A política de alfabetização no país também foi tema de destaque durante esses meses. O ex-ministro Vélez e o secretário de alfabetização, Carlos Nadalim, defenderam o método fônico como solução para os problemas relacionados à alfabetização, colocando o letramento como “vilão da alfabetização”.
O secretário afirmou, à época, que o letramento consiste em uma “preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista em formar leitores críticos”. Mais de 100 organizações se manifestaram publicamente em uma carta endereçada ao MEC.
3. Alterações no Ministério da Educação
Em pouco mais de três meses de governo, o Ministério da Educação protagonizou as principais polêmicas governamentais. A pasta esteve envolvida em uma série de decisões equivocadas e recuos, além de estar no meio de um jogo de forças entre o grupo de Olavo de Carvalho e os militares que levaram à demissão do ministro Ricardo Vélez Rodríguez e mais de uma dezena de baixas entre seus funcionários.
Abraham Weintraub assumiu o cargo de ministro da Educação na última terça e, hoje, nomeou o seu time para o alto escalão, quase inteiramente composto por economistas.
4. Ataque ao financiamento de qualidade
Em março, uma reunião do Ministério da Educação com o Conselho Nacional de Educação (CNE) colocou em xeque um dos dispositivos centrais para o financiamento da educação no país.
Previstos em lei, mas ainda não implementados, o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) permitem que se calcule o padrão mínimo de investimento por por estudante para que se possa garantir um patamar de qualidade educacional no país.
Esses insumos vão desde a infraestrutura dos prédios, todos inclusivos, até a garantia de condições de trabalho, formação e valorização das(os) profissionais da educação. O CAQi é o padrão mínimo e o CAQ é o valor que se pretende alcançar como ideal.
A implementação dos mecanismos era uma das estratégias previstas na Meta 20 do Plano Nacional de Educação (PNE) para que se pudesse alcançar até 2024 o investimento de 10% do PIB na área.
Em um cenário de restrição de recursos para a educação devido ao Teto de Gastos (EC95/16)e de desmantelamento de mecanismos de participação social, revogação do parecer torna ainda mais distante a possibilidade de cumprimento do Plano.
5. Direito à educação e educação domiciliar
Outro tema de destaque foi a educação domiciliar. Sua regulamentação consta em uma das 35 metas prioritárias do plano de 100 dias de governo de Bolsonaro e está atribuída ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Pelo determinado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), é dever do Estado e da família garantir frequência escola da população de 4 a 17 anos. Com base nesta normativa, no ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a modalidade ilegal.
6. Militarização da educação
Além de extinguir secretarias, o decreto também criou um novo órgão: a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares. Braço da Secretaria de Educação Básica (SEB), a divisão deve fomentar, acompanhar e avaliar a ampliação de escolas e modelos de gestão compartilhada entre as Secretarias de Educação, o Exército, as Polícias Militares (PM) e o Corpo de Bombeiros.
7. Criminalização da educação e Lava-Jato
No dia 14 de fevereiro, foi assinado um acordo entre Ministério da Educação, Ministério da Justiça, Controladoria-Geral da União e Advocacia-Geral da União para apurar casos de corrupção no Ministério da Educação. A Lava Jato da Educação, como foi apelidada, foi anunciada no Twitter do presidente Jair Bolsonaro e vista com preocupação por atores do campo, que alertaram que o maior problema da pasta seria a insuficiência de recursos e não a corrupção.
Conversamos com quatro especialistas em educação para saber como avaliam os primeiros 100 dias deste governo:
Ednéia Gonçalves, socióloga, formadora de professoras(es) e diretora executiva adjunta da Ação Educativa:
“À primeira vista, os 100 dias de governo de Bolsonaro se resumem à triste disputa entre olavistas e militares, sem que os ganhos de um lado ou outro impliquem em avanço no acesso, inclusão, permanência ou qualidade da educação no Brasil. Porém, acredito que outros movimentos que se desenrolam nesse governo representam riscos igualmente perigosos às conquistas democráticas na educação.
Nesse período, enquanto nos angustiamos com a ausência de lucidez e direcionamento no MEC, fomos confrontados com a pauta do retrocesso: representada pela expansão da militarização das escolas, pela tentativa de imposição de uma agenda fundamentalista religiosa, racista e LGBTfóbica inspirada no Escola sem Partido.
Enquanto isso, pautas que interessam discutir (Fundeb, CaQi/CAQ, Plano Nacional de Educação) eram esvaziadas pelo Ministério da Economia com o anúncio da PEC da desvinculação total do orçamento. A aparente ausência de propostas concretas e intencionalidade nas ações do MEC nos revelam que as reais disputas do campo educacional se desenrolam em outra trincheira: na economia. É para lá que devemos urgentemente direcionar nossa resistência.
Catarina de Almeida, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e coordenadora do Comitê Distrito Federal da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
“Se eu pudesse dizer em uma frase o que eu entendo dos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro, eu diria que é um governo que tem como projeto destruir todas as políticas e todos os projetos que nós temos para a educação. Ou seja, é um governo que tem como projeto destruir a educação deste país. Isso só para falar da área da educação. E por que eu estou dizendo isto?
Efetivamente, o que o governo Bolsonaro fez com as nomeações e demissões, com seus anúncios até agora, foi exatamente soltar decretos e portarias e constituir comissões para acabar com o que estava por aí, para acabar com o projeto de educação que vinha se desenvolvendo neste país, que, para bem ou mal, estava em curso.
Objetivamente, é um governo que ameaça acabar com o que o país já tinha, sem apresentar nenhuma proposta. Tanto é que, nós, ativistas, das entidades que lutam em prol do direito à educação e de outros direitos, lutamos para nos manter o que já tínhamos e não para avançar em relação àquilo que se faz necessário.
Esses 100 dias do governo representam destruição. Acho, inclusive, que se o ministro anterior ficou na sua falta de ação, as perspectivas dos 100 dias futuros é a de concretizar a destruição daquilo que o presidente já anunciava na campanha e vem anunciando desde que assumiu o governo.
Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC e doutor em Direito pela USP
” Um princípio básico da avaliação política é considerar o que foi proposto. Por isto, para fazer essa avaliação, precisamos retomar o plano de governo que foi apresentado durante a campanha e o plano específico apresentado para os 100 primeiros dias.
O plano de governo para a campanha falava de uma “inversão de prioridades”, reduzindo o investimento em Educação Superior e priorizando a Educação Básica. Propunha também “extirpar a filosofia de Paulo Freire das escolas”.
Além disso, trazia a questão do ajuste econômico ultraliberal, a manutenção da Emenda Constitucional 95 e a redução da máquina estatal.
O plano dos 100 dias da área de educação tinha basicamente uma meta, que era um plano de alfabetização. No Ministério de Direitos Humanos, havia a apresentação da regulamentação do ensino domiciliar no Brasil. Esse é o plano que precisa ser avaliado.
Isso explica em parte a estratégia de se nomear uma figura como o Vélez Rodríguez, que tinha como papel, mobilizar a agenda de censura no Ministério da Educação (MEC), torná-la, se não implementada, ao menos presente constantemente no discurso, enquanto uma ameaça colocada para as instituições educacionais. Nesse sentido, ele deu várias sinalizações, tanto em relação ao livro didático, como em relação ao Enem.
Portanto, é muito diferente de imaginar que se tratava de alguém sem propósito: havia uma coerência muito grande entre o que é uma das estratégias iniciais e a perspectiva desse ministro. Além disso, era alguém que não tinha preocupação com a construção de políticas educacionais, com a pactuação federativa, nenhuma preocupação ou percepção com a questão do financiamento educacional.
Um ministro com esse perfil é muito útil e oportuno para a implementação da agenda radical de ajuste fiscal neoliberal que está colocada na Emenda Constitucional 95. Não haverá espaço para um ministro que tensione a área econômica por um maior aporte de recursos da União, uma relação federativa ou mesmo um financiamento direto via políticas de fundo, como o Fundeb.
Praticamente, nenhum programa relacionado a repasse de recurso ou coisa do gênero foi anunciado ou sequer pensado-, salvo algo relacionado à implementação da BNCC por pressão das fundações empresariais e da imprensa articulada a essas fundações. Nesse sentido, o governo é coerente com o que foi apresentado inicialmente.
É nesse sentido que meu balanço dos 100 dias é um indicativo do que serão os próximos anos e meses em relação ao governo Bolsonaro na área de educação.
Entendo que a aliança ultraconservadora, neoliberal radical e militarista reacionária que caracterizam esse governo não dá margem para qualquer ação de melhoria ou de “menos mal” no Ministério da Educação.
Ou seja, a articulação entre a lógica autoritária do militarismo, a lógica do controle ideológico, os efeitos já sentidos da EC 95 (que serão agravados caso ela não seja revogada) e uma postura de desvinculação total vai permear estruturalmente a área de educação no governo Bolsonaro e impossibilitar qualquer perspectiva de uma política educacional minimamente racional, planejada, progressista, que atenda, por exemplo, as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação.
Esse é um balanço realista, pessimista, que nos convoca a uma ação de contestação direta e total à lógica do governo Bolsonaro, que é uma lógica que vai além do debate educacional. Essa condução das políticas educacionais não será influenciada ou derrotada unicamente a partir do debate educacional.
Juliana Oliveira, historiadora e cientista social, professora de história da rede municipal de educação de São Paulo
” A influência do discurso do presidente eleito é perceptível no ambiente escolar: alguns estudantes agindo com maior violência enquanto os grupos que fazem parte do que consideramos minorias têm se unido, se fortalecido e criado espaços de resistência.
Nas periferias as “celas” de aula seguem recebendo cada vez menos investimento (na sua estrutura e nos materiais didáticos) e a quantidade de grades supera a de janelas – fazendo um paralelo com os sonhos de cada aluno e aluna ali.
As decisões presidenciais transmitidas pela mídia e redes sociais, as fake news que os familiares receberam por WhatsApp e as declarações sensacionalistas de representantes oficiais do governo causam todos os dias comoção e desespero entre a comunidade escolar na rede pública: somos nós os mais afetados e prejudicados, serão os nossos que pagarão com sangue, suor e lágrimas pelas escolhas de quem possui uma vida digna com o mínimo de recursos básicos e direitos humanos – que nós não temos. O balanço não é favorável.
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