Educação no campo e agronegócio
Proposta de Bolsonaro para educação no campo está alinhada com o agronegócio
Escolas em assentamentos rurais resistem às ameaças do atual governo
Brasil de Fato | São Paulo (SP), 28 de Março de 2019
Refeitório da Escola Trabalho e Saber, Paraná / José Carlos de Jesus Lisboa
Letícia Maria Fortes de Campo sempre teve vontade de ler o mundo. Seus olhos percorriam desde rótulos de embalagens de produtos a livros infantis. Com isso aprendeu a ler e escrever muito rápido, já no primeiro ano escolar. Aos dez anos, Leticia é filha de assentados e estuda na Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, que fica a 60 quilômetros de Londrina.
Sua disciplina favorita é o português. Ela conta que adora as aulas de redação e para escrever se inspira em histórias da vida real. O texto que ela mais gostou de fazer, por exemplo, foi a história de uma professora que lecionou em sua escola antes mesmo dela nascer.
Letícia conta que Cidinha morreu defendendo o direito à educação e sua luta serve de inspiração pela força que a professora teve como mulher. “Eu gosto de escrever sobre pessoas que marcam a história. Escrevi sobre a professora que lutava pelo direito dos educadores, mas sofreu um acidente de carro quando voltava da cidade. Ela foi uma mulher muito lutadora e a história dela é muito bonita”.
Agora, no entanto, a educação e as histórias de Letícia, Cidinha e de milhares de crianças que vivem em assentamentos e acampamentos rurais estão ameaçadas. E desta vez os ataques não partem de pistoleiros do agronegócio, mas do próprio governo federal. Desde a campanha eleitoral o presidente Jair Bolsonaro (PSL) já atacava as escolas do campo afirmando que iria fechá-las. Em entrevista à revista Veja o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, afirmou que pretende fechar as escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e chamou as escolas públicas do campo de “fabriquinhas de ditadores”.
Além disso, o governo Bolsonaro qualifica o MST como organização criminosa e defendeu o direito dos fazendeiros utilizarem armas de fogo quando tiverem propriedades improdutivas ocupadas.
Educação na mira
Mesmo antes da eleição de Bolsonaro, a educação no campo já vinha sofrendo um conjunto de ataques significativos, especialmente após o golpe de 2016, que tirou Dilma Rousseff da presidência. Os principais retrocessos foram na qualidade de ensino, na redução de verbas destinadas às unidades rurais e no desinvestimento na formação de professores. Agora, encaram a criminalização de sua proposta educacional.
Erivan Hilário, do setor de educação do MST, explica que há uma política intencional de fechamento das escolas do campo que está alinhada com o agronegócio.
"O projeto defendido por esse governo e até pelo governo Temer é um projeto predador que destrói a natureza e esse projeto tem nome: é o agronegócio. É o que temos de mais perverso e atrasado em termos de desenvolvimento humano.Ele não respeita a natureza, cada vez mais libera agrotóxicos e cria um campo sem gente e sem vida. E nesse projeto de desenvolvimento não há lugar para escola do campo”, protesta.
O dirigente acrescenta que a primeira conquista dos camponeses foi mudar o imaginário desse trabalhador rural que passou a reconhecer que eles têm direito à educação. Para Salomão Ximenes, professor de política públicas da UFABC, o atual governo ameaça censurar e cercear comunidades camponesas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e caiçaras de acessar a educação e com isso afirmar seus direitos e seu modo de vida.
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“Há uma tentativa de impor até pela medida de força uma visão de educação que é dita como neutra, não política, mas que visa silenciar qualquer perspectiva político-pedagógica que seja questionadora, como são muitas das escolas do campo. Sobretudo as que estão organizadas pelos movimentos sociais e criticam o modo de produção, os agrotóxicos, a grande monocultura, ou seja, o agronegócio”, analisa Ximenes.
De acordo com dados do MST, já foram realizados 320 cursos via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 40 instituições, e se formaram 165 mil educandos no ensino fundamental e médio e em cursos técnicos e de nível superior, como agronomia, agroecologia, medicina veterinária, história, direito, serviço social e cooperativismo. Atualmente, existem mais de 100 cursos de graduação em parceria com universidades públicas por todo o país.
Pronera
O Pronera foi um marco na educação do campo, pois possibilitou a elevação do nível de escolaridade das famílias camponesas e formou educadores que podem atuar nos territórios onde vivem. O programa, que apoia projetos de educação voltados para o desenvolvimento das áreas de reforma agrária, é um dos que está sob risco de ser extinto, segundo o coordenador do setor de educação do movimento.
“Concretamente não existe uma posição que o Pronera acabou, mas um das formas de acabar com uma política de combate a desigualdade é não financiar, não colocar recursos nessas iniciativas”, explica.
Outros ataques também partiram de emissoras alinhadas com o bolsonarismo, como foi o caso da reportagem da Record que atacou as escolas do MST e os Sem Terrinha, como são conhecidas as crianças que fazem parte do movimento, acusando as escolas do campo de fazerem “doutrinação ideológica”.
No entanto, o que a série de reportagens “Saberes do Campo” constatou foi que essas escolas públicas, mesmo em assentamentos, oferecem aprendizados baseados no currículo das escolas cidades, mas também ligados território.
O educador Márcio José Barbosa defende que a escola cumpre um papel essencial no acesso à educação na zona rural. “A gente não doutrina ninguém. Queremos que as crianças aprendam o máximo possível. Eu vi essa reportagem da Record e não concordo em nada com ela. É uma matéria preconceituosa, que atende ao desejo do governo de criminalizar o movimento e precisamos fazer o contraponto. O que a gente faz é trabalhar os conteúdos e garantir a escolarização das crianças no assentamento e no acampamento”, reforça o professor da Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, Paraná.
Bolsonaro já afirmou que poderia transformar o ensino do campo em uma modalidade “à distância”. Para o pesquisador em educação do campo da UFSCar, Luiz Bezerra Neto, a educação à distância só seria uma alternativa viável em locais onde os estudantes têm dificuldades de deslocamento, como no caso de comunidades ribeirinhas do interior do Amazonas. Porém, é exatamente nesses lugares é que existe falta de condições que viabilizam a EAD — desde energia elétrica até a falta de sinal de internet. Ele acredita que o projeto do governo Bolsonaro é destruir a escola pública e o caminho para não ter mais retrocessos é a mobilização popular.
“É preciso muita luta para impedir a criminalização de movimentos sociais que são os que lutam por melhorias nas políticas públicas, sobretudo à educação no campo. Não vejo muitas perspectivas de melhora com esse pessoal no MEC. Porque parece que o objetivo deles é destruir a educação, não só a educação no campo, mas a que leve o povo a pensar, a ter uma escola a ter um mínimo de qualidade”, avalia o especialista.
A reportagem entrou em contato com o Ministério da Educação solicitando informações sobre as propostas e programas voltados à educação no campo, assim como os desafios e o que está previsto na área pelo governo Bolsonaro, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Edição: Pedro Nogueira
Como funcionam as escolas do campo que estão na mira do governo Bolsonaro
Existem mais de 2 mil escolas públicas em assentamentos e acampamentos no Brasil
Anelize Moreira
Brasil de Fato | São Paulo (SP), 25 de Março de 2019
Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber no assentamento Eli Vive I, no Paraná /
José Carlos de Jesus Lisboa
O lugar onde você mora fica a muitos quilômetros da cidade e você e outros meninos e meninas querem estudar, mas lá não existe escola. Você e as famílias da sua comunidade se juntam e coletivamente constroem uma, conseguem apoio e autorização do poder público e educadores da própria comunidade fazem parte do dia a dia escolar. É assim que nascem as escolas que atendem crianças e adolescentes sem-terra na zona rural brasileira. Ao ocupar uma terra improdutiva, uma das principais preocupações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é assegurar o direito à educação das famílias camponesas.
Foi assim, por exemplo, com a Escola Bernardo Sabino, no Assentamento Palmares, em Luzilândia, norte do Piauí. A alfabetização das crianças começou a acontecer pelos próprios assentados em um barracão de palha e hoje mais de 20 anos depois, se tornou uma referência na região pela qualidade de ensino.
“Em 1997, quando se estabeleceu o acampamento, buscamos quem tinha maior nível de escolaridade entre os acampados. Eu só tinha ensino médio. Começamos a alfabetizar as crianças e depois de três anos legalizamos a escola. Porém, professores da rede municipal se recusavam a dar aula no assentamento. Nós tivemos que nos organizar e fazer curso superior em outro estado. Voltamos pra escolinha com a proposta de ensinar voltado mais para a educação do campo”, lembra Ildener Pereira de Carvalho, assentada e educadora da escola que fica a 240 quilômetros da capital Teresina.
Um dos primeiros desafios das famílias é conseguir apoio do poder público para construção dos espaços de ensino, apesar das dificuldades enfrentadas, atualmente as aulas acontecem em um prédio de alvenaria. Porém, a infraestrutura em âmbito rural precisa ser compreendida em seu contexto. No sul do país, no assentamento Eli Vive I, no Paraná, a Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, as salas são de madeira, mas o envolvimento de educadores é grande e o mais importante acontece: o processo de aprendizagem independe das condições de infraestrutura que não são como da cidade.
“A escola é toda feita de madeira e foi construída pelos próprios assentados. As famílias quando chegaram no local se organizaram e construíram salas de aulas. A estrutura ainda é precária, as crianças merecem estruturas melhores, porém isso não impede que o trabalho seja realizado dentro da proposta pedagógica que o próprio município impõe para a educação no campo”, conta José Carlos de Jesus Lisboa, diretor da escola.
O conceito de educação do campo foi formulado a partir da iniciativa de movimentos populares do campo, que começaram a pressionar o Estado por políticas públicas específicas para as populações não-urbanas. Até então as escolas rurais era sucateadas e eram desassistidas pelo poder público. Além do MST, lutaram pelo direito à educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e movimentos dos povos da floresta como indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
“As famílias que foram chegando nos acampamentos desde a década de 1980 passaram a entender que não bastava só lutar pela terra, para poder plantar, para sobreviver, era preciso lutar por outras políticas públicas fundamentais para o desenvolvimento dos territórios.”, explica Erivan Hilário, da direção nacional do MST, do setor de educação. Foi assim que grupos que vivem no e do campo contribuíram para a efetivação da política, e também para denunciar o fechamento de escolas no campo na década de 1990. Hoje o ensino na zona rural é garantido pela legislação.
“A educação no campo foi conquistada no Brasil pelos movimentos sociais e camponeses como uma modalidade específica de educação formal na nossa legislação. A LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as resoluções do conselho nacional de educação, o plano nacional de educação reconhecem o direito das populações de camponeses, ribeirinhos, povos da floresta de terem uma oferta educacional que é adequada às suas condições de vida, aos seus territórios, antes de tudo ela é um direito assegurado na nossa legislação”, explica o professor de políticas públicas da UFABC Salomão Ximenes.
Em 2010, o ex-presidente Lula assinou regulamentou por decreto as políticas públicas voltadas ao meio rural. As escolas instaladas nos assentamentos e acampamentos não são do movimento, mas equipamentos públicos vinculados aos estados e municípios, assim como outras escolas rurais. Mais de 200 mil alunos acessam o ensino básico nas mais 2 mil escolas públicas construídas em acampamentos e assentamentos que atendem crianças, adolescentes, jovens e adultos. Essas escolas seguem regras das secretarias de educação, mas possuem as particularidades de cada região, de acordo com o território que estão inseridas.
Para o Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação no Campo da Universidade Federal de São Carlos, Luiz Bezerra, é preciso entender que essas escolas nasceram da luta pelo do direito à educação pública, de qualidade e não são propriedade do movimento, mas dizem respeito a uma demanda por educação na zona rural.
“É preciso desmistificar que a escolas do campo são do movimento, porque não são. As escolas são públicas e mantidas pelo estado ou município. Quem escolhe professor é o estado ou município, o movimento não interfere nessa escolha. Mesmo quando a escola é de assentamento, não é ele que designa o professor.”
O número de escolas no campo diminuiu significativamente nos últimos dez anos. De acordo com Censo Escolar, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), em 2008 existiam no Brasil mais de 85 mil escolas rurais públicas. Em dez anos esse número caiu para pouco mais de 56 mil escolas.De acordo com levantamento da UFSCar, o número é maior, pois entre os anos de 2002 a 2017 já havia sido registrado o fechamento de 38 mil escolas.
“Esse número pode ser maior. Esses dados de agora estão camuflados. Como tem uma lei que dificulta o fechamento de uma escola, que requer a concordância da comunidade, eles simplesmente suspendem as atividades na escola, mas não fecham. E quando está suspenso, ela não entra nos dados de fechamento. O argumento é que a qualquer momento as aulas podem ser retomadas, mas não tem alunos suficientes”, ressalta o pesquisador sobre os dados do Inep.
O pesquisador explica que não houve êxodo rural que justifique o fechamento nos últimos anos, mas atribui a redução ao custo aluno no campo ser maior do que na cidade. A lei que dificulta o fechamento de escolas rurais indígenas e quilombolas foi sancionada em 2014, pela presidenta Dilma Rousseff.
Segundo professor da UFABC, a educação no campo é uma modalidade que vem sofrendo um conjunto de ataques significativos nos últimos anos. Ele comenta que antes do golpe de 2016, eram “ataques mais velados”, pela ausência de apoio efetivo por parte dos governos estaduais e municipais,e pois, passa a haver “incentivo mais forte de fechamento de salas”.
“Hoje há uma intenção de um ataque mais direto a oferta de educação do campo, sobretudo aquela oferta que é organizada pelo movimento dos trabalhadores do campo, quilombolas, como espaço de resistência e defesa do seu modo de vida e modo de produção. Há necessidade de fortalecer políticas públicas dessa modalidade de ensino e de resistência desses povos que na prática que mantêm viva a educação no campo”. Uma reportagem da Record acusou o MST de doutrinação socialista de crianças. Desde a campanha eleitoral do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (PSL), já apontou o movimento, como um dos seus inimigos e já enfatizou que irá acabar com escolas do campo que estão em espaços onde vivem as famílias sem terra onde plantam alimentos para sua própria subsistência e comercializam produtos agroecológicos.
“Há uma falsa ideia de que o MST atua como estado paralelo. Todas as escolas que existem em assentamentos e acampamentos são públicas e assim defendemos. O MST virou referência por ter lutado para ter escolas públicas em seus territórios, por ter formulado um projeto de educação conectado com a realidade do campo de tal modo que ganhou o prêmio UNICEF como melhor projeto educação ”, comenta o dirigente do MST.
As escolas em assentamentos têm sido exemplares na qualidade de ensino se destacando em olimpíadas da Língua Portuguesa, História e atualmente tem se destacado nas pesquisas de educação. Através do método cubano 'Sim eu Posso', que o MST promove junto ao governo do Maranhão, mais de 50 mil adultos já foram alfabetizados.
Esse é o primeiro capítulo da série de reportagens "Saberes da Terra". O especial traz em quatro reportagens experiências de escolas do campo em assentamentos que vem quebrando preconceitos e garantindo direito a educação à milhares de crianças e adolescentes na zona rural.
Edição: Pedro Nogueira / Katarine Flor