Educação só para as ciências

Educação só para as ciências

Para Muniz Sodré, educação voltada só para as ciências exatas produz monstros

Em entrevista, intelectual diz que sociedade vive uma crise de ideias e rejeita “lógica da esperança”

 

Aos 80 anos de idade e 55 de carreira como docente, Muniz Sodré coleciona títulos e sucessos. É jornalista, sociólogo, tradutor, pesquisador, palestrante, autor de mais de 40 livros, membro da Academia Baiana de Letras. A Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da qual é professor emérito.

Bem-humorado e gentil, embora diga estar “mais cansado” que antes, continua lendo, produzindo e, sobretudo, pensando. Para ele, a sociedade vive uma crise de ideias. Crítico feroz das redes sociais, do capitalismo financeiro e = da cultura algorítmica, defende que a escola só faz sentido como um lugar de vínculo e paixão. Ainda que rejeite a “lógica da esperança”, vê com otimismo algumas transformações sociais que vêm acontecendo lentamente, como a maior visibilidade social e a ascensão de uma intelectualidade negra e indígena.

“Individualmente a internet é boa, claro. Do ponto de vista público e social, elas são
uma tragédia”. Foto: reprodução/Educação


Cada vez menos jovens querem ser professores. O senhor tem uma vida dedicada ao magistério. Ainda hoje vale a pena ser professor?

Aos 80 anos eu continuo a dar aulas e gosto muito. Certamente, a instrução, em determinados assuntos e disciplinas, pode ser satisfatoriamente substituída por máquinas.

Você pode aprender cálculos de prédios por máquinas, até mesmo aprender a fazer operações cirúrgicas online, aprendendo a controlar os próprios robôs. Mas a isso eu dou o nome de instrução. Educação não é simplesmente passar informação. O mais pobre dos computadores faz isso melhor que o melhor dos professores.

O que fica então para a educação?

Está reservado à educação um outro lugar, porque ela é outro tipo de processo. É a formação cívica, ao mesmo tempo psicológica e ética. Isso não pode ser substituído. A educação é um nome da transformação de um processo radical de iniciação. As sociedades ocidentais não iniciam – a iniciação só há em sociedades tradicionais e tribais. Iniciação é como uma conversão ou um batismo: a entrada numa câmara-portal e o renascimento do indivíduo para a vida social e coletiva. A iniciação é pessoal – ela precisa de gente – e é libidinal. Não consigo conceber uma educação que não tenha uma reinterpretação do laço libidinal entre pais e filhos, filhos e pais.

Sei que as pessoas entram numa faculdade para ter uma profissão e arrumar emprego, mas não queria que o futuro da educação valesse só o caminho do emprego

Há uma passagem de saber familiar inicial, que é importante, mas não é nunca o conteúdo o mais importante e sim o laço, que é ao mesmo tempo amoroso, em parte odiento. Esse laço visceral, que é uma vinculação, é retomado pela escola. Portanto, o ensino fundamental é uma retomada vigorosa desse laço de pais e filhos. A relação com professores é uma relação de paixão. Quando digo paixão, não quer dizer amorosa apenas, envolve também a briga, o ódio. São dois afetos fundamentais: o ódio e o amor. Com a criança crescendo, há a individualização dessa formação, onde pode entrar o escopoprofissional. Mas não é o essencial da educação.

Mas, para muitos, a educação parece ligada à preparação para um trabalho, não é?

Sei que as pessoas entram numa faculdade para ter uma profissão e arrumar emprego, mas não queria que o futuro da educação valesse só o caminho do emprego. Ela vai no sentido de preparar para que tenha opções de percurso. O próprio trabalho está sendo velozmente desvalorizado pelo advento das máquinas e robôs. Não acho que a educação esteja estruturalmente acoplada ao trabalho. Ela está acoplada à formação psicológica, ética, propriamente humana.

Num mundo regido por algoritmos, vale a pena estudar as ciências humanas e sociais, ou deveríamos nos focar em matemática e outras ciências exatas?

As próximas gerações, e já esta geração, sãogerações de base matemática, mesmo que não tenham formação. Somos regidos por números e fórmulas. Nossa realidade é forjada pela matemática. Mas precisamos mais do que nunca entender o solo social em que a matemática se dá. Então, as ciências humanas e sociais têm que se distanciar da matemática para entender efetivamente o que está se passando. Estamos num momento de crise das ciências sociais porque o momento áureo foi um momento de produção de ideias no século 19, na passagem da filosofia para a sociologia, economia, antropologia. As ciências que se fragmentaram, mas o que elas efetivamente produzem são ideias. E nós estamos numa crise de produção de ideias.

Há consequências quando a educação foca muito as exatas, para a prática profissional?

Uma educação voltada só para as ciências exatas produz monstros – e estamos vendo isso no Brasil. Na pandemia vimos que uma parte da classe médica beira a monstruosidade apesar da competência técnica. Tem negacionistas, próximos a um comportamento fascista. A mesma coisa aos diplomas dados a certos engenheiros, mas que são ignorantes, apedeutas. A ignorância social dos técnicos brasileiros é estarrecedora. Não sabem nada do social e por isso cavaram um buraco para que o fascismo se instalasse. Foi assim que se elegeu Bolsonaro, que é um monstro. Agora a sociedade está aparentemente reagindo.

A crítica continua assustando as elites, que continuam matando quem pensa demais.

Política e educação estão muito ligadas?

O pensamento de direita que emergiu não foi do povo apenas; foi nas classes médias. Gente que estudou, se formou nos melhores colégios, nas melhores universidades, os melhores tecnicamente, mas que são impermeáveis à empatia social e à solidariedade humana. Isso é uma falha educacional, uma tragédia educacional. Eu conheço pessoas de alto nível de formação que eu considero analfabetos em relação ao mundo e à sociedade. Nem são de direita necessariamente. Mas faltou o lado social – e isso é um fracasso das ciências sociais, que se fecharam muito em si, se departamentalizaram demais.

Muitas escolas hoje dizem que querem formar cidadãos críticos. Elas tentam e não conseguem ou ficam só no discurso?

Isso é marketing, o discurso dominante do comércio e da indústria. Como é que se elege hoje um presidente ou governador? Com partidos que não representam coisa nenhuma e marketing. Você tem em outros países partidos que representam uma parcela da população que é de direita, outros de esquerda, de centro. Os partidos brasileiros e da maioria dos países latino-americanos não representam coisa nenhuma. Eles se constituem em função do fundo partidário. São máquinas burocráticas que giram ao redor de si mesmas, dos seus interesses. O discurso qual é? É o do marketing. É assim que se elege alguém. Os políticos sempre foram retóricos, havia margem de engano, mas o marketing promete apenas a realidade do marketing, que nunca se cumpre. É discurso das escolas privadas quando se faz uma crítica à formação que oferecem. Mas eles não querem realmente isso. Ao contrário: a crítica continua assustando as elites, que continuam matando quem pensa demais.

Havia no início do advento da internet uma esperança de que a livre circulação de informação e opiniões melhoraria a democracia…

Eu não sigo muito a lógica da esperança. Esperar é colocar seus desejos num outro tempo ou na cabeça do outro. Sei que é uma nuance, que não existe na nossa língua o verbo esperançar, que seria dar à espera uma força motriz, transformadora. Mas acho que isso está em curso. Falei antes dos negros, mas há também os indígenas: você tem intelectuais indígenas hoje importantes no Brasil, coisa que antes não existia. Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Sonia Guajajara. O país é muito grande, temos muito mais. A movimentação civil está crescendo. Nesse sentido sou otimista.

 

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