Educação sob ataque

Educação sob ataque

Educação sob ataque: entre o silêncio dos governos e a omissão da sociedade

Foto: BM/Divulgação
Foto: BM/Divulgação

 

Márcio Pereira Cabral (*)

“A educação é o ponto em que decidimos se amamos
o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele.”
Hannah Arendt, “A Crise na Educação”

 

Hannah Arendt nos ensinou que educar é assumir responsabilidade pelo mundo diante da chegada do novo. A escola, nesse sentido, não é apenas um lugar de instrução, mas o espaço simbólico em que o mundo é apresentado às novas gerações como algo digno de ser habitado, sustentado e transformado. Quando essa responsabilidade é abandonada — seja pelo Estado, seja pela sociedade —, o que se instala não é o vácuo, mas a violência, a negação e o medo. O colapso da autoridade educativa não é fruto do acaso, mas o resultado direto de uma decisão política: a de não cuidar, de não investir, de não sustentar o pacto que torna possível a experiência educativa como prática de liberdade.

Em 2023, escrevi o artigo “Educação e violência: testemunho sobre o desamparo e o sofrimento psíquico na realidade docente brasileira”, publicado pela Revista da SIG. Naquele texto, mobilizado pelos ataques brutais que marcaram o cotidiano escolar naquele ano — como os casos de Blumenau, São Paulo e Cambé —, afirmei que a violência contra a escola já não podia ser tratada como exceção. Tratei do sofrimento docente não como experiência individual, mas como condição estrutural, coletiva e invisibilizada, enraizada no abandono institucional, no machismo estrutural e na desvalorização histórica da profissão docente, majoritariamente feminina. Falei, sobretudo, da dor silenciosa de quem educa em um país que já não protege suas educadoras.

Dois anos depois, o silêncio tornou-se regra. A violência epidêmica que denunciamos virou rotina. O caso da professora esfaqueada por dois alunos em Caxias do Sul (RS), dentro da sala de aula, é a expressão mais recente e cruel desse colapso. Mas não é um caso isolado — é sintoma de uma realidade social em decomposição. E mais grave do que a agressão, talvez seja o fato de que já não nos espantamos. Como alertou Primo Levi, sobrevivente do Holocausto, “aconteceu, portanto pode acontecer de novo.” E, quando acontece — e ninguém reage —, o que se repete não é apenas o fato, mas a sua banalização. O horror sem espanto é o passo final da barbárie.

É necessário, então, nomear essa barbárie. A escola brasileira está sob ataque. E esse ataque não vem apenas da violência física. Ele se dá pela desautorização permanente da figura do professor; pela precarização das condições de trabalho; pela mercantilização da educação; pela negação dos debates sobre gênero, raça, desigualdade e política; e pela tentativa sistemática de reduzir a escola ao silêncio.

Nos últimos anos, vimos crescer uma ofensiva ideológica que tenta transformar os professores em inimigos da família, da pátria e da moral. A falaciosa retórica da “doutrinação” criou um ambiente de perseguição e censura. As campanhas do “Escola Sem Partido”, o avanço do homeschooling, a criminalização de conteúdos pedagógicos e a vigilância crescente sobre o que é dito em sala de aula são expressões de um projeto autoritário que tenta submeter a escola à lógica do medo. E, onde há medo, não há pensamento crítico. Onde há censura, não há liberdade de aprender.

A figura da professora — mulher, geralmente pobre, boa parte negra, periférica — tornou-se alvo simbólico e concreto dessa guerra. Historicamente, como mostram Guacira Lopes Louro e Mary Del Priore, a docência foi associada a uma extensão da maternidade. Espera-se da professora abnegação, doçura, cuidado incondicional. Mas, quando ela rompe com esse lugar — quando ousa ensinar com autoridade crítica, quando nomeia injustiças, quando reivindica reconhecimento —, ela se torna perigosa. E o perigo, nesse modelo, é neutralizado pela violência.

O que se instala, então, é o desamparo. E aqui, mais do que nunca, precisamos de Sandor Ferenczi. Em seus escritos sobre trauma, Ferenczi nos mostra que o desamparo é o ponto de origem do sofrimento psíquico — não apenas como uma condição do bebê diante do mundo, mas como uma experiência de colapso subjetivo diante da falência do outro. Quando aquele de quem esperamos cuidado se torna fonte de violência, o psiquismo entra em colapso. O trauma, diz Ferenczi, é a traição do vínculo. É o abandono absoluto.

Esse é o nome da experiência docente no Brasil hoje: traição do vínculo. Porque os professores e professoras foram traídos pelo Estado, que deveria protegê-los. Pela sociedade, que deveria reconhecê-los. Pelas famílias, que deveriam compartilhar a tarefa educativa. E, em muitos casos, pelas próprias instituições escolares, que já não oferecem nem mesmo o básico: escuta, abrigo, mediação.

Diante disso, o silêncio se impõe. Não o silêncio do consentimento, mas o da exaustão. Professores retraídos, calados, sobrecarregados, doentes. Adoecem não por fraqueza, mas por excesso. Excesso de tarefas, de cobranças, de expectativas, de agressões. E ausência de tudo o que é vital: tempo, apoio, afeto, condições de trabalho, valorização simbólica.

Mas, se o desamparo é a experiência fundante da dor, é também — como aponta Ferenczi — a condição a partir da qual se pode construir uma nova ética do cuidado. E é nesse ponto que entra Paulo Freire. Ao contrário da lógica da violência, Freire nos ensina que educar é um ato amoroso e político. Não há neutralidade na educação. Como ele escreveu em Pedagogia do Oprimido, ou se educa para a domesticação, ou se educa para a liberdade. E a liberdade, nesse caso, começa por escutar os que foram calados. Por reconhecer que os professores não são culpados da crise educacional — são suas vítimas e resistências.

Freire nos lembra que ninguém educa ninguém, mas que todos se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Isso significa que a responsabilidade pela educação não é apenas do professor: é do Estado, das famílias, das comunidades, das instituições. É da sociedade como um todo. E é essa responsabilidade coletiva que precisa ser urgentemente reconstruída.

Reverter a crise exige mais do que planos de segurança ou campanhas publicitárias. É preciso refundar o pacto educacional sobre novas bases: a escuta, o reconhecimento, a proteção e a valorização ética da docência. Isso implica garantir saúde mental como política pública, formação continuada com foco no cuidado e na mediação de conflitos, condições dignas de trabalho, salários compatíveis com a importância social da profissão e, sobretudo, um discurso público que cesse a culpabilização do magistério e recoloque a escola como bem comum.

Também é preciso reatar os laços entre escola e comunidade. A escola não pode mais ser vista como uma ilha de responsabilidade exclusiva do professor. É preciso reativar os conselhos escolares, fortalecer os coletivos de pais e estudantes, construir espaços de diálogo permanente entre sociedade e escola. Só assim poderemos fazer da escola um espaço de reconstrução do vínculo social.

O que está em jogo é mais do que a saúde dos professores. É a própria ideia de futuro. Como escreveu Paulo Freire, “a educação não transforma o mundo. A educação muda as pessoas. E as pessoas transformam o mundo.” Mas que pessoas queremos formar quando a escola é um lugar de medo? Como falar de esperança se as professoras têm medo de entrar na sala de aula? Como formar cidadãos quando a violência se torna naturalizada?

Ao permitir que se tornem alvos, ao normalizar a precariedade, ao calar diante da dor das professoras, estamos, como sociedade, quebrando o espelho onde deveríamos nos reconhecer. E o que vemos refletido, hoje, é a falência de uma promessa: a de que toda criança teria direito à educação, e de que todo educador teria direito à dignidade.

Reagir é urgente. Porque, como nos alertou Primo Levi, o horror pode, sim, acontecer de novo — e está acontecendo. E se não formos capazes de nos indignar, então talvez já não estejamos mais do lado dos vivos.

É tempo de amar o mundo o bastante para, como queria Arendt, assumirmos a responsabilidade por ele. E isso começa por devolver às escolas o que elas sempre foram, mesmo sob ataque: lugares de resistência, de vínculo, de vida.

(*) Psicanalista, professor Mestre pela UFRGS e diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política

 

FONTE:

https://sul21.com.br/opiniao/2025/05/educacao-sob-ataque-entre-o-silencio-dos-governos-e-a-omissao-da-sociedade-por-marcio-pereira-cabral/ 




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