EJA não tem lugar no MEC
A EJA não tem lugar no MEC atualmente”, afirma Sonia Couto
Com a extinção da secretaria responsável pela EJA, o fim do organismo participativo da agenda e a interrupção da distribuição de materiais didáticos, modalidade é abandonada pelo Governo Federal
O órgão era responsável não apenas pela modalidade de EJA em específico, como também por outras modalidades cujos sujeitos, frequentemente, são também estudantes da EJA, como a Educação do Campo e a Educação nas Prisões.
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Em seu lugar, foram criadas duas novas secretarias: a Secretaria de Alfabetização e a Secretaria de Modalidades Especializadas da Educação. No decreto que as instituiu, entretanto, não há nenhuma diretoria específica dedicada à modalidade.
As estratégias e princípios da EJA tampouco aparecem no desenho atual da Política Nacional de Alfabetização. Meta dos 100 dias de governo assinada em 11 de abril, o documento tem uma única menção à Educação de Jovens e Adultos: o desenvolvimento de materiais didático- pedagógicos.
O Programa Nacional do Livro Didático (EJA), entretanto, teve sua última distribuição de livros em 2016: é o que afirma Luiz Alves Junior, diretor presidente da Global Editora, única editora no Brasil que atende estudantes de EJA no Ensino Médio.
“Temos um universo grande, de milhões de estudantes que estão marginalizados pelo governo. De jovens e adultos que não têm material para dar continuidade aos estudos, não têm acesso ao material didático há 3 anos. Este é o maior crime com estas pessoas. Eu considero isso uma tremenda traição a este povo. A preocupação da editora é colher neste momento alguma informação do governo sobre a continuidade da atenção à EJA. O próprio MEC não tem ninguém respondendo até o momento como coordenação de EJA”, relata.
Ainda agravando a conjuntura, a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), que reunia representantes de movimentos sociais e da sociedade civil para assessorar a política de EJA no MEC, foi extinta no início de abril por um decreto federal que modificou o Sistema Nacional de Participação Social.
Diante deste cenário de incertezas, o especial Educação em Disputa: 100 dias de Bolsonaro ouviu três especialistas no assunto:
Roberto Catelli Jr., pesquisador da EJA, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador executivo da Ação Educativa
Sonia Couto Feitosa, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), professora aposentada da Rede Municipal de Educação de São Paulo e diretora do Instituto Paulo Freire
Miguel Arcanjo Caetano, representante do Fórum EJA na Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA/SECADI/MEC)
Para começar, você poderia fazer um breve panorama sobre a escolaridade de jovens e adultos no Brasil atual?
Roberto Catelli: Sabemos que cerca da metade dos brasileiros com 15 anos ou mais não concluiu o Ensino Fundamental no Brasil. É uma dívida social enorme. Temos cerca de 3 milhões de matrículas e cerca de somente metade dessas pessoas concluindo um período letivo. Falta investimento do Estado na modalidade, que é marginal no país. Tem o menor orçamento e pouco se investe na formação de educadores, metodologias e criação de escolas apropriadas para jovens e adultos.
Sonia Couto: A maioria é composta por pessoas que não conseguiram se alfabetizar na infância. Algumas tiveram uma passagem pela escola, mas não conseguiram dar continuidade por questões financeiras. É um público bastante diverso na sua faixa etária. É também diverso na questão étnica, tem indígenas e quilombolas. Temos, principalmente, pessoas de origem pobre. Pessoas do campo. Muitas mulheres. Adultos que não conseguiram terminar sua escolaridade. Alguns nunca chegaram a iniciar, outros começaram, mas tiveram que largar. São mais de 12 milhões de brasileiros.
Miguel Caetano: O Brasil tem uma população em torno 25 milhões de jovens entre 15 e 29 anos ou mais de idade que não frequentam a escola e que não têm o Ensino Fundamental completo. O número de estudantes matriculados na modalidade EJA é mais de 3,7 milhões de pessoas. (INEP/MEC,2017). Da população com 15 anos ou mais de idade, há uma estimativa de 11,5 milhões de analfabetas [7,%]. (PNAD/IBGE,2017). Dito isto, é óbvio que o ideal seria fomentar polÍticas públicas para superar o analfabetismo no Brasil, compreendendo que a ação alfabetizadora deve oportunizar a continuidade dos estudos em turmas de Educação de Jovens e Adultos. Pois, do contrário, todo esforço feito a partir de 2003 com o PBA –Programa Brasil Alfabetizado seria inócuo.
O que é imprescindível para uma boa política de EJA?
Catelli: É importante levar em conta a diversidade de seus sujeitos, propondo modelos educativos que contemplem a heterogeneidade e não simplesmente um padrão homogêneo que não atende aos diversos sujeitos: idosos, jovens, trabalhadores urbanos e rurais, jovens em liberdade assistida, encarcerados e um grande conjunto de pessoas que. por diversas razões, foram excluídas da escola.
Além disso, é necessário investir em currículos adequados, criação de espaços educativos de fácil acesso para estes jovens e adultos e lançar mão de um conjunto de políticas intersetoriais que possam promover a permanência desses sujeitos nesse espaço educativo.
Couto: Primeiro, vontade política de conhecer a EJA como direito, não favor ou caridade. Pensar que essas pessoas tiveram esse direito negado, há uma dívida social com elas. É imprescindível o reconhecimento de que essas pessoas têm direito de ler e escrever, de ter acesso à tecnologia, de ter conhecimentos matemáticos, de conhecer seu território, de saber as questões sociais que permeiam sua vida. Segundo, o financiamento. São duas coisas que andam juntas. Por mais que se tenha boa vontade, não se faz política sem recurso. E a EJA sempre foi privada disso. Teve menor índice de investimento.
Às vezes, os políticos entendem a educação como gasto. Mas ela tem que ter uma centralidade e, por isto, precisa de recursos adequados. Aliado a tudo isto tem uma questão social de que muitas escolas não querem ofertar a EJA. Estados e municípios precisam ter incentivo para ofertá-la. Como nos recursos do FUNDEB os percentuais para outras modalidades são maiores, as escolas acabam valorizando outras modalidades.
Caetano: A EJA necessita de muitas ações políticas para que esta modalidade cumpra seu papel social e resgate o direito à escolarização desta população que foi abandonada pelo estado. Isto exigirá, de gestores e gestoras e dos governos, compressão de que a adoção de uma política pública específica para estes sujeitos não se constrói de forma solitária, mas com a participação da sociedade como um todo, de modo a superar formas veladas, sutis e/ou explícitas de exploração e exclusão, das quais a desigualdade se vale. Para isso, será preciso revisitar os documentos já construídos por todos os movimentos que orbitam em torno da modalidade.
Quais ações, programas e políticas desenvolvidas para a EJA foram implementadas nos últimos anos? Como funcionavam?
Catelli: Tivemos o Programa Brasil Alfabetizado no campo da alfabetização, programas específicos para a população do campo, como o Saberes do Campo, o Projovem e também o PROEJA, que aliou a formação escolar com a profissional. Elas conseguiram atingir públicos específicos com diferentes perfis, mas não chegaram a ter o alcance que poderiam para fazer com que o país avance no processo de escolarização de jovens e adultos.
Couto: No começo do século passado, a preocupação com a EJA era inexistente. Só a partir de 1947 houve um dos primeiros programas que se dedicaram a jovens, adultos e adolescentes. Como outros programas, ocorreu em caráter de campanha. O grande problema que atinge a EJA é que os programas federais não são pautados em uma política, e sim em caráter de campanha, de assistencialismo. Procuram dar respostas imediatas a um problema que é secular e que precisa de uma política centrada em sua resolução.
Tivemos o sistema Paulo Freire, que foi um divisor de águas nessa questão da educação para adultos. Com a saída de Paulo Freire, o Mobral perpetuou até 1985. Foi então fundada a Fundação Educar, gerida pelo governo federal para apoiar as Secretarias na EJA. Aqui em São Paulo, esse trabalho não era desenvolvido pela Secretaria de Educação, mas pela de Bem Estar Social. Então a EJA estava deslocada de seu âmbito, que deveria ser a educação. Depois, com Collor, houve o Programa Nacional Alfabetização e Cidadania (PNAC), seguido pelo Alfabetização Solidária (PAS) do Fernando Henrique. E, desde 2003, temos o Programa Brasil Alfabetizado (PBA).
Todos eles têm caráter de repasse de recursos, não existe uma definição, um alinhamento metodológico. Há uma parceria feita com instituições que se incumbem de fazer o acompanhamento, dar formação, mas cada uma com sua linha metodológica. Então acontece de acordo com os interesses de quem está desenvolvendo. Não existe política nacional que amarre tudo isso.
E hoje, que ações, programas e políticas têm sido desenvolvidos?
Catelli: Vivemos hoje uma grande crise, não temos clareza sobre os destinos do programa de alfabetização, o Projovem foi extinto e o programas para o campo vem sendo descontinuados. Nem mesmo material didático para a modalidade está sendo distribuído pelo governo. Não há programas ou propostas no nível federal desde, pelo menos, 2016.
Couto: O PBA ainda está sendo ofertado, mas com uma redução absurda. Para se ter uma ideia, em 2013/2014, o PBA atendeu mais de 1 milhão de pessoas. Em 2014, 7961 mil. Hoje, apenas 250. Ou seja, menos de ¼ do que se atendia.
E a população de pessoas não alfabetizadas não diminui. Porque além da oferta para alfabetização ser pequena, não há continuidade. As pessoas aprendem a ler e escrever e não conseguem vagas para seguir sua escolarização. Então, entram em um processo de esquecimento. Chegam a aprender algo, mas com o tempo esquecem. O processo tem que ser contínuo. Terminou a alfabetização, segue ao Fundamental e então ao Médio. Mas, infelizmente, as portas se fecham a cada dia.
Eu dei aula na rede pública por 31 anos. E vi como a escola acaba criando estratégias para não fazer essa oferta. Por exemplo, o aluno chegava perguntando se tinha vaga. Se falava que não. Mas para a Secretaria se falava que não havia demanda. Então, há uma demanda invisibilizada e a falsa ausência de demanda justifica o fechamento da EJA.
Caetano: A partir de 2017, o retrocesso tem acabado com tudo que conseguimos construir a duras penas no MEC, inclusive permitindo, com sua omissão, o fechamento indiscriminado de turmas de EJA em todo brasil e, agora em 2019, com as indefinições no ministério e o fim da SECADI, a secretaria que se propunha ao menos ouvir os reclames dos movimentos sociais, ficamos órfãos de vez.
Quem está cuidando da EJA no MEC hoje?
Catelli: Até 2018 havia a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), uma secretaria dedicada ao tema da diversidade. Com a posse de Bolsonaro, um dos primeiros atos do governo foi extinguir a SECADI. Ao que se sabe, decretou-se também o fim da política de EJA no governo federal. Embora ela tenha sido alocada formalmente na Secretaria de Educação Básica (SEB), não há diretoria ou coordenação responsável pela EJA. Ela existe só no papel, não há programa, gestor, proposta para a modalidade. O programa de alfabetização também só se refere às crianças. É trágico, considerando nossa enorme dívida social no campo da educação.
Couto: Com a extinção da SECADI, que era a secretaria em que a EJA estava abrigada, foram criadas a SEMESP e a Secretaria de Alfabetização. Então a gente percebe que há um não lugar da EJA. A EJA não tem lugar dentro do MEC atualmente. Se o cenário está complicado para as modalidades que sempre tiveram prestígio, imagina para a EJA, que não tinha prestígio social.
A gente ainda tem alguma coisa de PRONATEC, em parceria com o Sistema S, mais voltado ao Ensino Técnico. Em São Paulo, tem o Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA). Mas, em nível federal, apenas o PBA.
Lastimo muito que vários órgãos de participação popular tenham sido extintos, entre eles a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), que era uma comissão que eu e o Catelli fazíamos parte, composta por diferentes segmentos, e que tinha por responsabilidade assessorar o Ministro da Educação no estabelecimento de uma política pública para a EJA. Mesmo em governos mais progressistas era uma missão difícil, mas tínhamos um momento de escuta. Íamos até o MEC, ouvíamos as propostas, falávamos das nossas pautas.
Construímos um documento de Política Nacional de EJA, que delineava quais os pontos e diretrizes necessárias para a melhoria da qualidade da EJA no Brasil. Com a extinção desse órgão, nem este momento de escuta existe mais. Nem nós sabemos como se está pensando a política, nem o MEC ouvirá nossas demandas e pautas. Infelizmente, essa ausência de diálogo vai comprometer muito a qualidade e a oferta de EJA no Brasil.
Caetano: De janeiro para cá fomos jogados no vento, não sabemos nem se ainda existimos na estrutura do MEC, pois o mesmo não se pronuncia oficialmente.
Silêncio institucional
O especial tentou contato com o Ministério da Educação e enviou à assessoria de imprensa do órgão alguns pedidos de esclarecimento sobre a política para a modalidade. Até hoje, entretanto, não houve resposta. As informações solicitadas foram:
– Após a dissolução da SECADI, as atribuições da Educação de Jovens e Adultos (EJA) migraram, formalmente, para a Secretaria de Educação Básica (SEB). No organograma do Ministério da Educação (MEC) disponível no site do governo federal, entretanto, não há nenhuma diretoria ou profissional dedicado exclusivamente à modalidade. Quem é atualmente responsável pela EJA? Em que diretoria a modalidade está alocada?
– Que ações, programas e políticas serão realizadas para esta modalidade?
– No site do Ministério, não há nenhuma informação recente sobre o Programa Brasil Alfabetizado. Qual é a perspectiva para o programa?
– O PNLD EJA desde o ano passado não distribui livros. Ele será descontinuado?