Envelhecer como professor
Os desafios de envelhecer como professor
Por Cristiano Fretta / Publicado em 30 de dezembro de 2021
Imagem: Detalhe de Sísifo/ José de Ribera 1650/ Museu del Prado/ Domínio Público
Há poucos dias eu observava algumas fotografias do meu primeiro ano como professor de escola privada, há 10 anos. Encontrei-as meio por acaso, após vasculhar com curiosidade alguns pendrives esquecidos em gavetas do meu escritório.
Alguns meses depois da minha formatura na Ufrgs, consegui meu primeiro emprego “sério” como professor de língua portuguesa e literatura. Digo “sério”, pois eu já trabalhava em cursinhos havia uns três anos.
Infelizmente, muitos desses estabelecimentos faliam ou simplesmente não cumpriam com sua obrigação trabalhista mais básica: pagar o salário, fosse por impossibilidade financeira ou por pura má fé.
Mesmo tendo alguns anos de experiência docente – e isso significava já ter um bom domínio de turma e capacidade, portanto, de manejar as diversas demandas práticas de sala de aula, como, por exemplo, mediar conflitos pela temperatura do ar-condicionado ou “vencer” materiais didáticos –, só passei a me sentir plenamente professor quando integrei uma grande rede de ensino privado em Porto Alegre. Isso representava um salário estável e bem mais alto do que eu recebia – recebia? – nos outros locais, além de, claro, ter a minha carteira de trabalho assinada, algo que ainda não havia acontecido.
Olhando hoje para as fotografias dessa época, observo o pátio de uma escola em que não mais trabalho e estudantes que mal sei que caminhos seguiram – já esqueci, inclusive, o nome de boa parte deles. Também observo a mim mesmo: ganhei quilos que parecem impossíveis de serem perdidos, e a massa escura de cabelos que existia sobre minha testa contrasta impiedosamente com a minha completa calvície de hoje.
Observando com um pouco mais de atenção, é possível perceber também que o meu sorriso e meus olhos revelavam uma espécie de esperança alicerçada na noção de que eu estava apenas começando e, portanto, talvez pudesse de fato haver um mundo a ser mudado por meio da educação e eu, quem sabe, fizesse parte disso.
As utopias e os clichês fazem certo sentido. Talvez fosse o que eu pensava naquela foto, abraçado a uns dez adolescentes sorridentes.
É natural que o começo da vida profissional seja repleto de otimismo e força de vontade, afinal de contas é comum que ele venha acompanhado de oportunidades e melhora nas condições financeiras e consequentemente na qualidade de vida.
Isso, claro, para a parcela da população profissionalizada que teve acesso a boas universidades e que, portanto, pode compreender o início da vida adulta como uma recompensa por tantos anos investidos em sua própria formação.
A verdade é que demora um certo tempo até que nós percebamos todas as engrenagens que movem a vida profissional, não só no quesito das naturais responsabilidades quanto às funções imanentes à nossa classe, mas sobretudo às relações políticas e de poder que são necessárias para a “sobrevivência” do profissional em seu cargo.
O corpo do professor
Isso fica muito explícito no caso do professor, especialmente do docente de instituições privadas. A escola é um ambiente absolutamente político, em todas as concepções, em todas as esferas. É nesse local extremamente complexo que o professor atua. Os desgastes que ele enfrenta, a meu ver, se dão em três níveis principais.
O primeiro deles é o desgaste físico. É claro que esta não é, de longe, uma exclusividade da profissão de professor. No entanto, o cansaço do corpo costuma ser amplamente negligenciado quando se pensa no fazer docente.
Isso se deve a um amplo desconhecimento sobre o que de fato ocorre quando a porta da sala de aula é fechada. Ter como tarefa de trabalho lidar com público é algo muito difícil e exige bastante das cordas vocais e da coluna, por exemplo. Estar de frente para muitas pessoas causa tensão, que pode acarretar dores musculares. Falar por muitas horas pode causar calos nas cordas vocais. Ficar muito tempo de pé pode ter como consequências danos à coluna vertebral.
Em virtude da baixa remuneração, é necessário que os professores, muitas vezes, trabalhem inúmeras horas por dia expostos a essas condições. Nenhum corpo sai ileso após 10 períodos de aula no mesmo dia. Sim, é preciso falar sobre a saúde do corpo do professor.
Estresse
Em segundo lugar deve-se levar em conta o desgaste emocional. É claro que, muitas vezes, ele é tão ou mais intenso do que o desgaste físico. No entanto, a atribuição de que o professor é o responsável legal pelo ambiente da sala de aula acaba por causar uma carga de estresse que contrasta com o seu papel ainda apregoado ao Iluminismo de propagador impassível do conhecimento.
É necessário não somente lidar com o sorriso da descoberta pelo saber, mas também com o uso do boné proibido pela escola que nos paga o salário, com as demasiadas idas ao banheiro de tal turma, com a conversa insistente que parece ser desprezo, deboche e arrogância frente a tudo aquilo que estudamos, com a cola nas provas, que explicita uma visão um tanto quanto pragmática que o importante, ao fim e ao cabo, é terminar a vida escolar e ingressar na vida profissional.
Enfim, é necessário ter a consciência de que, por mais que se proponham práticas pedagógicas inovadoras, o embate com o outro é uma certeza cotidiana a que precisamos nos acostumar como algo comum no dia a dia profissional. Além disso, o desgaste emocional muitas vezes também ocorre fora da sala e se perspectiva por meio de frustrações frente a uma enorme gama de desafios, que podem ir desde a baixa remuneração até o excesso de demandas burocráticas por meio das escolas privadas.
Lógica fabril
Também há o cansaço intelectual, natural ao final de um dia repleto de períodos em que enfrentamos todos os tipos de adversidades para, por exemplo, explicarmos a diferença entre um período composto por coordenação e por subordinação.
A repetição com que essas explicações podem ocorrer no dia a dia de um docente, independentemente da prática pedagógica utilizada, são passíveis de causar uma sensação de estafa mental que é oposta ao ideário da leveza do ensinar, tão necessário para a construção de uma educação humanística contrária a um modelo horizontalizado de escola baseada puramente na produtividade.
O fato de o cérebro encontrar-se sobrecarregado ao final de um dia de intenso trabalho em sala de aula não pode ser considerado um demérito ao professor, tão acostumado a levar as suas próprias capacidades cognitivas a níveis elevadíssimos de exigência durante o seu dia a dia de trabalhador.
Acontece que nossa sociedade é pautada por uma lógica fabril que não enxerga no descanso uma ferramenta necessária e saudável para que o trabalhador, e isso também inclui o docente, recupere o seu fôlego físico, intelectual e emocional para entrar em uma sala de aula.
Dessa forma, é natural que, com o passar dos anos aquele jovem professor dê lugar a um profissional mais “cascudo” com o meio que o cerca, relativamente livre dos ingênuos discursos repletos de idealizações pedagógicas e ciente de que o seu fazer no cotidiano da sala de aula depende de uma complexa equação que envolve inúmeros agentes detentores de poder no ambiente escolar.
É nesse contexto multifacetado e completamente político que o professor vai envelhecendo. Perde-se com o passar dos anos o vigor físico, o emocional vai sucumbindo à ansiedade, que é uma das doenças que mais atingem professores.
Com uma tentacularização cada vez maior da tecnologia no ambiente escolar, a tendência que se tem é que os domínios de novas ferramentas digitais sejam progressivamente encaradas como um pré-requisito para a atividade docente.
Como se sabe, dominar aplicativos e recursos tecnológicos diversos também é uma questão etária. Dessa forma, quanto mais jovem for o professor, é provável que mais apto ele esteja no domínio de linguagens digitais. Por outro lado, a possibilidade de que o professor mais velho não seja assim tão eficiente no manejo dessas ferramentas é maior, o que pode deixá-lo “defasado” em relação a diversos processos escolares.
Pausare
No entanto, o aspecto mais sensível em relação ao envelhecimento do docente diz respeito à sua aposentadoria. É claro que a carreira de professor não é a única que desafia o profissional. No entanto, a sua importância é, na grande maioria das vezes, reconhecida somente no nível discursivo e muito pouco em quesitos práticos.
A etimologia do verbo aposentar remete à forma latina pausare, que significa fazer uma pausa, cessar o que está em andamento. Ou seja, a noção de aposentadoria é intimamente relacionada à interrupção da atividade produtiva no seio de uma economia liberal. Porém, essa mesma interrupção nunca deve ser compreendida como uma benesse por parte do Estado, mas sim como um direito trabalhista inquestionável, apesar de muitas vezes ser visto de forma pejorativa em nossa sociedade baseada na noção de produtividade e desempenho.
Um professor aposentado não “largou” a sala de aula, mas sobretudo respeitou a si próprio e consequentemente à sua classe profissional quando lançou mão de um direito adquirido.
Infelizmente o que temos assistido nos últimos tempos, seja por meio da Reforma da Previdência de 2019 ou de qualquer outra reestruturação que mexa no plano de carreira, é uma apatia. Ou melhor, má vontade – do Estado em reconhecer que um professor, depois de uma certa idade, pode encontrar sérias dificuldades de se recolocar no mercado de trabalho e precisa, portanto, de seguridades que não o deixem injustamente desassistido, tendo em vista a importância que seu trabalho teve para a sociedade ao longo de muitos anos.
Para um professor, envelhecer não pode ser um lento suplício regado a insegurança: é necessário que haja a convicção de que o descansar trará a serenidade calcada na certeza de que o passado foi útil na vida de inúmeras pessoas e de que o descanso não é uma caridade, mas sim justiça.
*Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.
FONTE: clique aqui