Escola, espaço da convivência social
“A escola é o espaço da convivência social”
Para Jamil Cury, o direito à educação sai fortalecido após STF barrar homeschooling no DF. Agora, segundo ele, é hora de o país promover uma discussão séria e comprometida com o próximo PNE

No início do mês, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve, por unanimidade, a decisão do ministro Flávio Dino, que declarou inconstitucional a Lei Distrital nº 6.759/2020, sancionada pelo governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha, e que permitia o homeschooling na capital federal. O texto regulamentava a oferta domiciliar da Educação Básica para as famílias que desejam não matricular seus filhos em uma escola pública ou privada e atribuía ao Poder Executivo a função de acompanhar e fiscalizar o desenvolvimento dos estudantes.
“O Supremo voltou a bater o martelo em uma tecla que já estava muito clara”, avalia Jamil Cury, filósofo e professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e professor emérito aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com mais de seis décadas dedicadas à docência e à defesa do direito à educação, o especialista lembra que, em 2018, o STF já havia determinado que somente o Congresso Nacional, por meio de legislação federal, pode criar e regulamentar o homeschooling no Brasil.
Jamil acredita que esse debate ficou enfraquecido após as eleições de 2022. “Temos uma nova correlação de forças, pelo menos no âmbito do Executivo e até no Judiciário. Por isso, de certo modo, a ressonância do lobby desses grupos que defendem o ensino domiciliar é muito menor.”
O assunto, porém, não está encerrado. Tramita no Senado o Projeto de Lei nº 1.338/22, já aprovado na Câmara dos Deputados, que visa regulamentar a oferta domiciliar da Educação Básica. A pauta ganhou destaque durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, com a chegada de grupos conservadores no Ministério da Educação (MEC) e no Congresso Nacional.
Mas o momento atual é outro, avalia Jamil: “Atualmente, a proposta está parada no Senado, sem uma perspectiva de ser retomada. Ela pode voltar a tramitar no ano que vem? Pode, a depender de quem será o candidato da direita. Mas hoje o que nós precisamos é de mais escola, mais educação. Precisamos discutir o Plano Nacional de Educação (PNE) com seriedade”.
Em entrevista ao DIVERSA, Jamil reforça sua posição contrária ao homeschooling, discute os possíveis efeitos da adoção desse sistema sobre a inclusão de pessoas com deficiência e explica por que esse é um tema que de tempos em tempos ganha força e reaparece no debate nacional. Além disso, enfatiza a importância de direcionar os esforços do Congresso Nacional e de diferentes atores sociais para o debate dos rumos das políticas educacionais para os próximos dez anos, refletindo como enfrentar as causas dos problemas atuais.
O que a legislação brasileira diz sobre o chamado homeschooling ou educação domiciliar?
Ela é silenciosa sobre esse assunto e não aborda essa possibilidade. O que existe é um projeto de lei que tramitou na Câmara dos Deputados, foi aprovado e está no Senado. Houve também uma consulta ao Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da constitucionalidade da educação domiciliar. A resposta do Supremo, com votação apertada, foi que ela é inconstitucional e que isso deveria ser objeto de análise do Congresso Nacional. Como já havia vários projetos a esse respeito, eles foram apensados, ou seja, anexados a uma única proposta, que tramitou e foi aprovada na Câmara.
Atualmente, a proposta está parada no Senado, sem uma perspectiva de retomada. Ela pode voltar a tramitar no ano que vem? Pode, a depender de quem será o candidato da direita. Mas hoje, o que nós precisamos é de mais escola, mais educação. Precisamos discutir o Plano Nacional de Educação (PNE) e o Sistema Nacional de Educação (SNE) com seriedade.
O STF acertou em manter a inconstitucionalidade da lei do Governo do Distrito Federal que instituía o homeschooling?
O Supremo voltou a bater o martelo em uma tecla que já estava muito clara: a responsabilidade de legislar sobre o tema é do Congresso Nacional. O que não ficou claro é se uma decisão como essa exige uma lei ordinária ou complementar. Isso não foi esclarecido.
Quais os principais argumentos de quem defende esse modelo de ensino?
A motivação mais indicada é a de que determinadas famílias estão insatisfeitas tanto com a escola pública como com a privada. Nos últimos anos, essa insatisfação se sustenta em temas como violência dentro da escola e no entorno, bullying e determinadas facetas do currículo, que estariam abordando questões ligadas a gênero e orientação sexual, além de motivações de ordem religiosa. Essas fundamentações têm como cobertura conceitual o direito à liberdade de ensino, mas ao meu ver é uma interpretação duvidosa desse conceito.
Por quê? Quais os principais pontos contrários ao homeschooling?
Um dos principais argumentos está no parágrafo terceiro do artigo 208 da Constituição, que determina de forma muito clara a obrigatoriedade da educação em escolas.
A escola tem três dimensões fundamentais: o exercício da cidadania, a qualificação para o trabalho e a entrada no Ensino Superior. Falando da primeira, a democratização do acesso a conhecimentos sólidos, científicos e indispensáveis para a vida contemporânea só podem ser propiciados por profissionais formados em instituições autorizadas, inclusive para dar conta dos objetivos e das competências de cada etapa da educação. Pelo artigo 61 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e por toda a tradição brasileira, esse trabalho precisa ser feito por um profissional competente e não pode ser objeto de amadores ou voluntários. O exercício da docência é o de uma profissão regulamentada.
A escola também proporciona a convivência social entre os desiguais: ricos e pobres, gordos e magros, altos e baixos, pretos e brancos, católicos e luteranos. Esse convívio permite conhecer e respeitar as regras do jogo democrático, buscando tornar os desiguais mais iguais no ponto de vista do conhecimento e do acolhimento. Se você ficar em uma bolha, essa convivência ficará muito restrita.
Um dos argumentos favoráveis à educação domiciliar é a violência nas escolas. Porém, dados do Disque 100 de 2021 apontam que 81% dos casos de violência contra crianças ocorrem em casa. Esse tema é levado em conta nas discussões?
Dentro da assistência pedagógica, a escola é um refúgio, uma proteção contra a violência doméstica. A família tem importância crucial e determinante na socialização primária, ninguém abre mão disso, e esse ponto não está em jogo. O que se reivindica é o papel da escola de promover o exercício da cidadania e a assistência pedagógica com proteção. A educação domiciliar atentaria contra essas dimensões.
Além disso, [o ensino domiciliar] privaria a convivência mais ampla entre crianças e adolescentes e favoreceria uma visão restrita de si e dos outros. É no encontro sistemático e institucional que se aprende o respeito e o reconhecimento mútuo. É um princípio de inclusão, de respeitar o outro: uma pessoa cadeirante, uma pessoa com deficiência visual, uma pessoa com Síndrome de Down. Não existe na nossa sociedade nenhuma outra instituição que promova o encontro dos desiguais e dos diversos de forma sistemática e institucionalizada, quatro horas por dia, cinco dias por semana.
Falando em diversidade, como a regulamentação do ensino domiciliar poderia impactar a educação inclusiva?
Temos muitas pesquisas que mostram a insuficiência dos insumos pedagógicos para uma efetiva inclusão nas escolas, falando por exemplo da acessibilidade em banheiros e escadas ou da ausência de professores fluentes em Libras. Quando não há apoio técnico e assistencial, os pais começam a reivindicar o retorno da escola de segregação.
Nesse sentido, a postura dos demandantes do homeschooling é interessante porque, na crítica que fazem à escola, eles mandam um alerta para os gestores: há insuficiências e é preciso olhar para elas. Insuficiência de recursos, de meios e de pessoal qualificado. A gente tem de brigar para que no PNE, que está sendo construído agora, essas questões não só apareçam, mas tenham planejamento e passo a passo para que as políticas de inclusão aconteçam na sala de aula da escola pública.
Como o homeschooling afetaria o acesso à educação dos estudantes com deficiência?
Seria uma regressão da inclusão para a segregação, e nós conhecemos as consequências do modelo segregacionista. A lei avançou muito, mas nem sempre a cultura acompanha o avanço legal. Nós só vamos poder criar uma nova cultura se o poder público investir na dimensão do acolhimento e do fornecimento de pessoal qualificado para promover uma educação de qualidade a todos os estudantes.
Esse movimento é exclusivo no Brasil?
Não. Há diversos países onde o homeschooling é legalizado, com várias especificidades. Mas também há diversos países que não só não o acatam como o proíbem. É o caso da Alemanha, da Suécia e da Espanha, países muito representativos quando se fala em educação.
Por aqui, a pauta ganhou mais força com o aumento do conservadorismo, em especial durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro?
Sim, esse era um dos planos do Bolsonaro. De um lado, ele queria aprovar o homeschooling para satisfazer sua base eleitoral e, do outro, para quem eventualmente não tivesse condição de manter a educação domiciliar, ele ampliou as escolas cívico-militares. O resto ele desmontou. Não houve política de educação.
Boa parte dos que demandam a educação domiciliar são pessoas ligadas a determinados credos religiosos que estimulam paradigmas contra a inclusão do outro, em especial no que se refere a gênero e a orientação sexual. É uma segregação? Um elitismo? Um egoísmo? Na minha visão, é algo que pode ser classificado como aporofobia, que é a discriminação com relação ao pobre, e nesse grupo negros, indígenas, pardos…
Mas o modelo de educação que temos hoje no Brasil se propõe a ser universal, público e gratuito. A aprovação do homeschooling poderia enfraquecer essas conquistas históricas?
A impressão que fica é a de que os defensores do homeschooling têm um desprezo e uma desqualificação pela escola pública, inclusive pelos alunos e pelos profissionais da educação. Se essa proposta passar, ela terá condicionalidades, que vão exigir novas atribuições dos sistemas subnacionais de educação. Qual seria a fonte financeira para bancar essas novas atribuições? Quem vai pagar pela fiscalização, por exemplo? A verba para isso sairia do Fundeb [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica], como um deslocamento do fundo público para uma dimensão privada? Quais os impactos para as escolas? É preciso pensar nessas questões.
O homeschooling é um assunto que de tempos em tempos ganha espaço no debate educacional. Por que isso ocorre?
Temos essa oscilação porque propostas como a do homeschooling, da escola cívico-militar, da escola sem partido e até mesmo os resultados do Saeb [Sistema de Avaliação da Educação Básica] são efeitos. Eles são consequências, não são causas [dos problemas]. Enquanto nós não enfrentarmos as causas, teremos pautas como essas disputando o debate público. É uma série de penduricalhos que são propostos e que têm potencial muito danoso.
Vejamos um exemplo: do que nós estamos precisando? De creches. Nós não atingimos [segundo as metas do atual PNE] o porcentual que era necessário na Pré-Escola, embora tenhamos avançado. Temos questões de acesso na Educação Infantil, mas não só. Isso ocorre também na EJA [Educação de Jovens Adultos]. Precisamos fazer uma discussão em torno da equidade. Então, a causa reside onde? Discute-se muito, mas, a meu ver, há alguns fatores que nunca foram atacados de frente.
Quais fatores?
A escola de tempo integral é um deles. Ela exige investimento. Se queremos que os resultados melhorem, precisamos ter mais tempo de escolaridade. O Brasil é um dos últimos países do mundo a manter essa jornada de quatro horas, que nem chega a quatro horas de relógio. No Ensino Médio e sua articulação com a Educação Profissional, por exemplo, se garantíssemos oito horas, teríamos muito mais chances de resolver a conexão da formação geral com a qualificação para o trabalho.
Outro exemplo é que não podemos aceitar que 85% das matrículas nos cursos voltados para a formação docente sejam em EAD [Educação a Distância]. Por mais que digam que esse movimento está ampliando o acesso, eu quero saber o seguinte: se a finalidade da educação é a construção e o compartilhamento de conhecimento e uma socialização adequada, como é que esse futuro professor vai lidar com as pessoas se, no seu processo formativo, só lidou com a tela, em cursos com apenas 3.200 horas? Isso é muito pouco para formar um professor que domine conhecimentos sólidos, que domine práticas pedagógicas atuais, que domine o que o currículo exige. Essas duas frentes nunca foram frontalmente atacadas.
Como colocar essas questões como prioritárias no debate do próximo PNE?
O próximo PNE é o quinto que nós vamos ter. E se não tivermos uma sociedade civil muito bem organizada, a capacidade política para a implementação do plano vai naufragar mais uma vez. Porque os quatro planos anteriores fracassaram. Os quatro. O de 1936, o de 1961, o de 2001 e o de 2014.
Agora, mais uma vez, temos a oportunidade de construir um termo de compromisso entre as pessoas do campo democrático, que postulem elementos comuns. E que esses elementos comuns não precisam significar o abandono de pautas diferenciadas. Isso ocorreu na década de 1930, em que Pascoal Leme era um comunista e se aliou com Anísio Teixeira, que era um liberal democrata, com Fernando Azevedo e com Manuel Bergström Lourenço Filho, que era um liberal, mas era democrata. Se nós não fizermos isso, será muito difícil.
Agora, com os meus 60 anos de magistério e 80 de vida, eu posso dizer: nós temos de lutar pelo comum e resguardar o diferente no nosso campo com toda certeza. Não vou abandonar o horizonte que eu tenho. Isso foi o grande impulso na década de 1930. Os signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova colocaram de lado suas eventuais divergências e buscaram um campo comum. Quem eram os reacionários daquela época? Eram membros da igreja católica. Isso foi objeto da minha dissertação de mestrado.
Os católicos eram muito organizados, como a direita hoje é. Eles começaram a acusar de comunista Anísio Teixeira, Fernando Azevedo e Pascoal Leme. Começaram a ignorar Cecília Meirelles, Hermes Lima… Então, o que aconteceu? Eles, de alguma maneira, tiveram de fazer o que nós fazemos hoje: ficar respondendo a essas questões de efeitos, não de causas.
Então o Manifesto é fruto de uma articulação entre posições distintas que buscou consenso nas pautas comuns?
Sim, eles conseguiram coisas das quais hoje a gente não quer abrir mão, como a vinculação de impostos na Constituição para educação, a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino, o Plano Nacional Educação e o Conselho Nacional Educação. A construção do Sistema Nacional de Educação não passou, mas eles brigaram por isso
FONTE: