Escola pobre para os pobres

Escola pobre para os pobres

Porto Alegre e a escalada autoritária do movimento Todos pela Educação

A “nova proposta pedagógica” levada a cabo por Janaína Audino defende: Estado Mínimo e uma escola pobre para os pobres

Marco Mello / Porto Alegre | BdF RS |  

Janaina Audino é vinculada ao Movimento Todos pela Educação, expressão mais acabada
da ação lobista e do empresariado para privatizar a educação - Divulgação

Nas últimas semanas ganhou espaço nas mídias sociais, e mesmo em parcela da chamada grande imprensa, o impacto da reforma curricular proposta pela atual gestora à frente da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, Janaína Audino, sob o comando de Sebastião Melo (MDB).

O símbolo da insensatez da mudança pretendida: a retirada sumária da disciplina de Filosofia, nas quase 50 escolas de Ensino Fundamental. Afinal, por que pensar se temos um messias lá e uma gerente aqui a orientar o caminho para o abismo?

As mudanças pretendidas são, todavia, bem mais amplas do que em relação à Filosofia: redução significativa da carga horária de História, Geografia, Inglês, Espanhol e Ciências – para contemplar o aumento da carga horária de Matemática e Língua Portuguesa, e assim atender aos ditames da meritocracia e a realização de avaliações externas padronizadas para melhorar os Indicadores de Desempenho (IDEB), mantra do empresariado para atestar “qualidade” da educação pública. Some-se a isso o retorno de avaliações classificatórias, a retomada da oferta do Ensino Religioso, e a porta escancarada para parcerias com o empresariado e o terceiro setor através de “projetos temáticos”, voltados à “inovação”.    

Escalada autoritária

Sob a chancela da escalada autoritária expressa pelo bolsonarismo e a extrema-direita neofascista, por que discutir, debater, assegurar participação de professoras/es e das comunidades escolares nos destinos da educação pública?

O pragmatismo passa a imperar sobre a realidade, sobre princípios político-pedagógicos e normas legais existentes. Janaína Audino e sua equipe – em plena pandemia –, viram as costas às necessidades das comunidades e atropelam celeremente a cidadania sem cerimônia ou remorso, ferem a autonomia das escolas, ignoram sumariamente a instituição reguladora do Sistema Educacional, o Conselho Municipal de Educação, órgão plural que sequer foi consultado e tem suas normativas ignoradas.

Em dois meses, querem impor seu programa de governo à ferro e fogo para, evidentemente, demitir e remanejar recursos humanos em nome das “entregas” de uma “nova educação”.    

No horizonte, sob uma farsa de consulta popular e regras absolutamente viciadas, que beiram o escárnio, pouco mais do que algumas dezenas de supervisoras das escolas são chamadas a debater e coagidas a validar uma nova grade curricular, que deverá por sua vez levar a referenciais curriculares de alinhamento acrítico à BNCC (Base Nacional Curricular Comum) e o RCG (Referencial Curricular Gaúcho). Ou seja, uma verdadeira lei da mordaça voltada a inibir a possibilidade de pensamento crítico e transformador.

O espaço relativo de ressignificação e resistências aos desmandos e tentativas de mudanças nas políticas curriculares que asseguraram que a educação em Porto Alegre sobrevivesse aos desmandos do populismo e do tucanato, parece agora encontrar um desafio de outro tipo. E talvez fosse importante conhecermos um pouco mais do perfil da gestora em foco.

Quem é Janaína Audino?

Janaina Franciscato Audino é um quadro técnico vinculado ao Movimento Todos pela Educação – expressão mais acabada da ação lobista e do empresariado na direção da privatização e da adequação da educação aos interesses do mercado, buscando instituir o modelo de gestão empresarial como parâmetro para os sistemas públicos de ensino.

Apadrinhada pelo grupo RBS, trabalhou na Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho (FMSS), e foi Executiva do Instituto JAMA em Porto Alegre, organização de coaching/consultoria, similar a Itaú Social, Fundação Unibanco, Fund. Bradesco, Fundação Lehmann. É também um quadro com formação acadêmica. Fez seu mestrado e doutorado na Unisinos, justamente focando nos indicadores do IDEB na Rede Pública Estadual, transformado em verdadeira obsessão. Foi Assessora Pedagógica junto a SEDUC nas gestões de Yeda Crusius e Germano Rigotto. Na última década fez um deslocamento tático, depois desse treinamento inicial, se apresentando como “Consultora em Gestão Educacional”.

Na SMED, acompanhou como consultora a experiência de implantação do Lumiar e vem desde 2018, através de parceria ESPM/JAMA, atuando nos cursos de formação para direções das escolas iniciados pela gestão psdebista de Marchezan/Adriano Naves.  

Temos, portanto, em Porto Alegre, uma expressão do que academicamente vem se chamando de um gerencialismo educacional que visa suplantar o paradigma da gestão democrática. Esse acento tecnocrata explica o foco da secretária em centrar suas ações em diretores e supervisoras. A peonada, o operariado tem que cumprir as ordens do andar de cima, bem típico de uma reengenharia empresarial.

A “nova proposta pedagógica” levada a cabo por Janaína Audino e seus “colaboradores”, embora aparente amadorismo e inconsistência, é absolutamente coerente e sintonizada com a estratégia preconizada pelas agendas do Banco Mundial e da OCDE para a educação: Estado Mínimo e uma escola pobre para os pobres.

Resistência e luta

Nenhuma das 99 escolas da Rede de Porto Alegre acolheram a proposta da secretária Janaina. Mais de 15 entidades representativas do campo educacional organizado, a partir da iniciativa da ATEMPA – Associação dos Trabalhadores em Educação do Município -, rejeitaram cronograma, concepção, prazos e método da “nova proposta”.

Conselhos escolares entram com ação coletiva requerendo esclarecimentos e a suspeição da votação de “cenários” prevista para a próxima semana. Há denúncia em curso, de desrespeito à legislação local, junto ao Ministério Público Estadual. O Conselho Municipal, instado, anuncia para os próximos dias resolução que visa barrar a iniciativa tresloucada que ignora a necessidade, por exemplo, de chamar o Congresso Municipal de Educação para empreitada dessa envergadura. 

Venceremos? Quero crer que sim

O que está em jogo não é uma grade curricular. O que está em jogo não são “apenas” expressões de resultados. O que está em jogo são projetos de formação humana, do papel da educação e da escola pública, bem como da própria liberdade de ensino.

Diante da ameaça da barbárie e do neofascismo, evoco o sempre querido Paulo Freire, andarilho da utopia e cidadão do mundo, que fez cem anos há poucos dias. Ele continua do lado esquerdo do peito a nos inspirar nas boas lutas. Eles e elas passarão.

* Professor e Coordenador Pedagógico na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko

 

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