Essa economia mata!
Essa economia mata!
A frase foi usada pelo Papa Francisco para resumir sua indignação diante do funcionamento da economia global dominada pela especulação
Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 30 de abril de 2025

Choramos a partida do Papa Francisco deste mundo, porém, ele segue vivo por meio do impressionante legado que nos deixou, abrangendo praticamente todas as áreas do conhecimento nos diversos documentos elaborados por ele. No âmbito da economia, suas colocações foram contundentes.
“Essa economia mata” foi a frase usada pelo Papa Francisco para resumir sua indignação diante do funcionamento da economia global dominada pela especulação, aprofundamento da desigualdade social e o comprometimento da vida do próprio planeta diante da exploração ambiental predatória e desenfreada.
A frase foi dita quando o Papa Francisco referendou e determinou, em 2018, a publicação do documento “Oeconomicae et pecuniariae” (Questões Econômicas e Financeiras – Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro), no qual exigiu mais ética no trato da economia e finanças.
Ele repudiou explicitamente as elevadas taxas de juros e comportamentos usurários:
(…) Neste âmbito, parece claro que aplicar taxas de juros excessivamente elevadas, não sustentáveis pelos sujeitos que tomaram os créditos, representa uma operação não somente ilegítima eticamente, mas também disfuncional à saúde do sistema econômico. Semelhantes práticas, assim como comportamentos usurários, desde sempre foram advertidos pela consciência humana como iníquos e pelo sistema econômico como adversos ao seu bom funcionamento. (…)
Apontou a falta de ética na criação de ativos tóxicos de risco, fictícios, por meio de estruturas cada vez mais complexas, como a securitização de créditos e a produção de derivativos, particularmente as “securitizações”:
A criação de títulos de crédito de alto risco – que operam uma espécie de criação fictícia de valor, sem um adequado controle de qualidade e uma correta avaliação do crédito – pode enriquecer aqueles que os intermediam, mas cria facilmente insolvência em prejuízo de quem deve recebê-los. Isto vale ainda mais se o peso da criticidade destes títulos é transferido ao mercado, no qual são espalhados e difundidos, em vez de ser colocado sobre o instituto que os emite (cf. por exemplo, securitização dos empréstimos). Assim pode-se criar intoxicação de grande alcance e dificuldades potencialmente sistêmicas. Uma tal contaminação dos mercados contradiz a necessária saúde do sistema econômico-financeiro e é inaceitável do ponto de vista de uma ética respeitosa do bem comum. (…)
Todavia, para alguns tipos de derivados (particularmente as chamadas securitizações) assistiu-se ao fato de que a partir das estruturas originárias e ligadas a investimentos financeiros individuáveis, foram construídas estruturas sempre mais complexas (securitizações de securitizações), nas quais é sempre mais difícil – quase impossível depois de várias destas transações – estabelecer em modo racional e équo o valor fundamental delas. Isto significa que cada passo na compra e venda destes títulos, para além da vontade das partes, opera de fato uma distorção do valor efetivo daquele risco que, ao contrário, o instrumento deveria tutelar. Tudo isto tem favorecido o surgimento de bolhas especulativas, que foram importantes causas da recente crise financeira. (…)
É evidente que a aleatoriedade advinda destes produtos, que na operação originária ainda não emerge – unida também a diminuição crescente da transparência daquilo que asseguram – os torna sempre menos aceitáveis do ponto de vista de uma ética respeitosa da verdade e do bem comum. Isto porque são transformados em uma espécie de bomba relógio, prontos a deflagrar mais cedo ou mais tarde a falta de confiabilidade econômica e a contaminação da saúde dos mercados. Verifica-se aqui uma carência ética, que se torna mais grave quanto mais tais produtos são negociados nos mercados chamados não regulamentados ( ) – mais expostos ao azar que os mercados regulamentados, quando não à fraude – e subtraem a linfa vital e investimentos à economia real. (…)
Tratou da falta de ética também das apostas representadas pelos swaps:
Semelhante avaliação ética pode ser efetuada também em relação à utilização dos (CDS – Credit Default Swap – os quais são contratos particulares de assegurações do risco de falência) que permitem de apostar no risco de falência de uma terceira parte também a quem não assumiu precedentemente um risco de crédito, e de reiterar tais operações no mesmo evento. Tal fato, não é absolutamente consentido pelos pactos normais de asseguração. (…)
Entre vários temas relevantes, o documento mencionou os sistemas bancários que operam nas sombras e os paraísos fiscais que possibilitam manobras tributárias, sonegação e operações criminosas:
29. Não é mais possível ignorar fenômenos como o difundir-se no mundo de sistemas bancários paralelos ou “sombra” ( ), os quais, mesmo compreendam também tipologias de intermediação cuja operatividade não aparece imediatamente crítica, de fato têm determinado uma perda de controle do sistema de parte das autoridades de vigilância nacionais. Tem-se favorecido assim de maneira desconsiderada, o uso da chamada finança criativa, cujo motivo principal de investimento dos recursos financeiros é sobretudo de caráter especulativo, se não predatório, e não constitui um serviço à economia real. Por exemplo, muitos concordam que a existência de tais sistemas “sombra” seja uma das principais causas que favoreceram o desenvolvimento e a difusão global da recente crise econômico-financeira, iniciada nos Estados Unidos, com a crise dos empréstimos no verão de 2007. (…)
Hoje mais da metade do comércio mundial é efetuado por grandes sujeitos que reduzem a carga tributária transferindo os lucros de uma sede para outra, segundo as suas conveniências, transferindo os ganhos para os paraísos fiscais e os custos para os países de elevada imposição tributária. Parece claro que tudo isto subtraiu recursos decisivos para a economia real e contribuiu a gerar sistemas econômicos fundados na desigualdade. Além do mais, não é possível calar que aquelas sedes em muitas ocasiões tornaram-se lugares habituais para a lavagem de dinheiro, isto é, dos resultados de receitas ilícitas (furtos, fraudes, corrupção, associações para delinquir, máfia, saque de guerra (…).
Esse documento fabuloso teve grande repercussão pública, porém, na prática, pouca mudança tem ocorrido no funcionamento dos mercados financeiros desde então.
Antes, por meio da importante carta encíclica Laudato Si, em 2015, o Papa Francisco já apontava o problema da dívida pública como um instrumento de controle, e sua relação com a dívida ecológica, com grandes danos humanos e ambientais insustentáveis, e, também fazendo o chamado para a conscientização de que somos uma só família, conforme trechos a seguir transcritos:
51. A desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países. (…) A isto acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento (…). Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar.
52. A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro. (…) e, como disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais poderosos». É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença.
No Brasil, a destruição ambiental por meio de mineração predatória e da expansão do grande agronegócio de exportação, bem como o funcionamento do Sistema da Dívida – que segue exatamente a lógica condenada no importante documento “Oeconomicae et pecuniariae”, devido à prática de juros exorbitantes, securitizações, swaps e operações sem transparência – estão na contramão do que o Papa Francisco defendia: que as finanças deveriam estar a serviço da economia real e da justiça na alocação dos recursos.
Entende-se o Sistema da Dívida como a utilização do endividamento público às avessas, de tal forma que em vez de aportar recursos viabilizadores de grandes investimentos, a dívida pública tem sido gerada por diversos mecanismos que provocam a contínua transferência de recursos públicos principalmente para bancos privilegiados.
A chamada dívida pública gerada de forma espúria e sem a devida transparência tem sido o principal alimento do capital financeiro no Brasil, e decorre de diversos mecanismos irregulares e até fraudulentos que continuamente subtraem recursos orçamentários que deveriam destinar-se a investimentos em nosso desenvolvimento econômico, social e ambiental. Ademais, essa chamada dívida pública, que consome a maior fatia do orçamento federal anualmente, tem sido a justificativa para contrarreformas que subtraem ou adiam direitos sociais; privatizações insanas de nosso patrimônio público, e tetos que limitam investimentos sociais imprescindíveis para a garantia de vida digna da população.
O tremendo privilégio do Sistema da Dívida tem transformado o Estado brasileiro em um instrumento a serviço do poder financeiro transnacional, às custas de escassez profunda para a imensa maioria do povo brasileiro e atraso de toda ordem, razão pela qual é imprescindível lutar por uma auditoria integral, com participação social, para que a conscientização trazida por este processo leve a um comportamento ético em todos os ramos da administração pública, inclusive no âmbito da economia, pois a que vem sendo praticada é uma economia que mata, como nos ensinou o Papa Francisco! Nunca o esqueceremos, Papa Francisco! Gratidão!
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB (CBJP). Escreve mensalmente para o Extra Classe.
FONTE:
https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2025/04/essa-economia-mata/