Fake News, novas e velhas falsificações

Fake News, novas e velhas falsificações

Fake News, novas e velhas falsificações

A gênese das falsificações em texto de Umberto Eco

14/11/2020 

    

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Umberto Eco relembra e ironiza num texto polêmico, publicado na Itália em 1972, a estratégia dos estudiosos medievais. Segundo o grande intelectual italiano, misto de professor, romancista, cronista de jornal e cientista inspirado, o pesquisador da Idade Média fingia – o verbo é de Eco – nada criar, atribuindo sempre a outros aquilo que dizia ou aventava. Esse recurso à autoridade pregressa, de Aristóteles a Santo Agostinho, era certamente uma maneira de proteger-se de ataques e de simular uma humildade não necessariamente real. Era também uma forma de reverenciar a tradição em tempos de mudança lenta. Eco destaca que de René Descartes ao século XX aconteceria uma inversão de estratégia, com a valorização do novo acima de tudo.

O século XXI representaria academicamente um retorno à Idade Média em termos de citações? No texto em questão, Eco afirma que na cultura medieval todos se preocupavam “em usar a mesma linguagem, as mesmas citações, os mesmos argumentos, o mesmo léxico”. As fake news, essas notícias falsas disseminadas nas redes sociais da Internet, constituem uma novidade jornalística e sociológica ou apenas a aceleração radical tecnológica de uma antiga modalidade de difusão de boatos, de falsificação de informações e de destruição de reputações? A obsessão pela origem de algo nem sempre é fundamental para o seu entendimento, podendo desviar o foco do estrago causado pela nova dimensão do fenômeno para uma espécie de genealogia estéril.

A reflexão sobre um fenômeno nas suas etapas anterior pode, contudo, ajudar a compreendê-lo em sua estrutura e profundidade. As fake news parasitam um padrão jornalístico de empacotamento de informações. A lógica subjacente é a da manchete de jornal: o mais forte em primeiro lugar numa mescla de informação e apelo à emoção. Se jornalismo significa publicar o que estava encoberto antes de uma investigação, chamada no jargão profissional da imprensa de apuração, e assim permaneceria se dependesse do conforto e do interesse dos envolvidos, fake news é publicar aquilo que alguém gostaria de ler ou de ver, mesmo sendo inverídico, com o desejo de que se torne verdade por repetição ou por ser a pista forçada de uma realidade encoberta. 

Da crítica de Eco à aceleração digital

Umberto Eco abordou o tema da produção do falso com embalagem de verdadeiro num texto publicado em 2 de abril de 1978 no jornal italiano L’Expresso e reproduzido no livro Viagem na irrealidade cotidiana. Ele foi direto ao ponto como era seu hábito e seu estilo em ensaios sobre a semiologia do complexo cotidiano das sociedades modernas: “Eis então que na era da informática abre caminho a palavra de ordem para uma forma de guerrilha não-violenta (ou pelo menos não-sangrenta), a guerrilha da falsificação”. Se, por um lado, a falsificação pode seguir simplesmente o desejo perverso de confundir e prejudicar terceiros, numa espécie de jogo cruel e gratuito como acontece nos chamados trotes telefônicos por meios dos quais alguém liga para o telefone de emergência dos bombeiros e anuncia um falso incêndio, por outro lado pode inscrever-se nessa categoria obscura, que Eco rotulou de “guerrilha da falsificação”, onde se luta por ódio.

No primeiro caso, irresponsabilidade pura no grau mais primário ou infantil pela qual o desperdício de energia e de tempo da vítima figura como a grande meta a ser atingida. O resultado alcançado não se traduz num benefício material ao autor, mas num gozo inglório e quase sempre solitário perpassado por um humor de mau gosto. No segundo caso tem-se um jogo motivado por razões políticas ou sociais mais profundas e orientado pelo abandono das normas éticas e dos princípios morais pertinentes mesmo em situação de guerra. Guerrilha da falsificação ou guerra suja da informação. Umberto Eco enfatizou no seu texto premonitório a vulnerabilidade dos grandes sistemas. Brincou que era mais fácil desviar um avião do seu curso do que um bonde. O grande perigo era a falsificação de dinheiro com uma poderosa fotocopiadora.

Falsificar dinheiro é sempre um problema na medida em que se trata de um sistema dependente da confiança de cada usuário na valoração das notas e na veracidade material de cada peça a ser protegido por um pesado órgão central monetário. A desmaterialização do dinheiro, fruto da mesma aceleração tecnológica que permite a viralização das fake News, parece sinalizar que esse temor começa a ser neutralizado. Contra a facilidade de produzir cédulas, nada mais eficaz do que a passagem ao dinheiro imaterial, encontro engenhoso entre o valor simbólico e o simbólico como valor. Não mais um valor fictício sobre um pedaço de papel ou de metal. Apenas um valor realizado como operação de troca e de substituição de mercadorias transferido sem materialidade por meio de operações virtuais.

Esse tempo descrito por Eco, tão próximo e tão distante deste ainda jovem século XXI, chega a parecer ingênuo quando comparado aos desafios e temores das sociedades atuais no apogeu do desenvolvimento tecnológico ao alcance da mão das maiorias antes quase silenciosas ou obrigadas a fazer barulho com meios mecânicos limitados. Passou-se dos primórdios da informática ao tempo da Internet e das redes sociais. Figuras antes subterrâneas ou inexistentes tornaram-se comuns e até, em algumas configurações, domesticadas como hackers e crackers. Para Umberto Eco a falsificação era regida, nas formas que apareciam então como novas, por um princípio teórico de crítica ao poder. Um novo modo de investir contra o velho poder. Potência contra poder? Todo sistema complexo necessita de milhões de pequenos consensos para subsistir. A crença no valor atribuído a cada cédula de dinheiro faz parte desse jogo consensual. O que acontece, porém, quando os consensos são atacados por falsificações que minam a confiança nos seus alicerces?

Era disso que falava Umberto Eco enquanto examinava as condições para a manutenção da confiança mínima necessária ao funcionamento da engrenagem social. Só bebemos a água que compramos engarrafada por confiarmos que nenhuma garrafa estará envenenada. Fora disso, para além dos controles sanitários, triunfaria a paranoia. Eco citou dois textos falsos, um poema de Pasolini e um artigo de Cassola, enviados ao jornal Corriere della Sera. Sem o restabelecimento da confiança, cada texto teria de ser entregue pessoalmente ao diretor do veículo. O primarismo das falsificações salvava o sistema. O que fazer, contudo, quando a sofisticação da cópia pode torná-la mais real do que o real, hiper-real? Só as suas imperfeições podem identificá-la. Contra a perfeição do falso só restaria, segundo Eco, uma astúcia fatal, “reagir às falsificações com outras falsificações”. Matar ou morrer.

As fake news, numa hipótese extrema e caricatural como podem e devem ser as hipóteses ad hoc, poderiam ser vistas como falsificações verdadeiras contra as falsificações dissimuladas? Contra o consenso da verdade legitimada seriam as fake News um vírus disseminado para destruir o sistema e denunciar a sua falsidade ideológica? Eco via como convenção a ideia de que quem fosse dar uma notícia desse a notícia verdadeira. Se, porém, o informante passasse a mentir, o grupo não confiaria mais nele: “Pode acontecer, num caso limite, que o grupo se vingue e passe a mentir para ele”. Eco soava o alarme: “Mas suponhamos que o uso de não respeitar a condição mínima de verdade se alastre, e que cada um passe a mentir aos outros. O grupo se desagrega e começa a guerra de todos contra todos”. Esse parece ser o estágio atual da “guerrilha da falsificação” hipermoderna. As fake News não como reações conscientes a falsificações, mas como consequência de um método desmascarado e praticado com a arrogância do dominador.

Designar as fake news como falsificações derivadas logicamente das contrafações tradicionais não justifica nem absolve os falsificadores. Quando todos mentem não há mais verdade a defender? Falso. O trabalho de retorno a um conceito de verdade, no entanto, torna-se mais difícil. Umberto Eco afirma que nesse jogo cada um se torna vítima e subjugador. Vencem, ao menos provisoriamente, aqueles que se “unem para elaborar alguma técnica mais eficaz” que permita mentir “melhor e mais rapidamente dos que os outros”, pelo que uns se tornam “padrões dos outros”. A guerrilha está em curso. Até quando?

Medidas são tomadas para tentar evitar o pior. No Brasil, sob o impacto das eleições norte-americanas que levaram Donaldo Trump em 2016 ao poder, as autoridades passaram a encarar as fakes news como um problema político grave. O Tribunal Superior Eleitoral organizou-se para impedir que as falsificações afetassem o resultado das eleições. Qual a reação possível e eficiente contra a guerra de todos contra todos? Umberto Eco sugeriu que “contra a falsificação desagregadora” surgiria ou “seria restabelecida uma ética da verdade muito puritana” pela qual “a maior parte (para defender as bases biológicas do consenso) se tornaria fanática da ‘verdade’ e cortaria a língua até a quem mentisse por utilizar uma figura de retórica”. Remédio amargo.

Umberto Eco provocou com uma boa fórmula: “A utopia da subversão produziria a realidade da reação”. Outra leitura, complementar certamente à de Eco, poderia sustentar que as fake news são uma distopia tecnológica em tempos de crise de referenciais e de relativismo pós-moderno. Contra a distopia da falsificação estimulada pelo mau jornalismo e pela violência política, a reação adequada seria fazer mais e melhor jornalismo sob o signo da verdade ponderada como uma equação cujos termos são apuração, verificação e comprovação.

A falsificação como estratégia fatal

O italiano Umberto Eco e o francês Jean Baudrillard compartilharam alguns interesses e tiveram pontos em comum: a descrição do hiper-realismo da cultura dos Estados Unidos, a preocupação com falsificações, certo estilo provocativo e irônico, embora o de Baudrillard fosse mais rebuscado e ferino, os paradoxos da cultura espetacular de mídia e o faro para as metamorfoses culturais por aceleração. As fake news, na linguagem de Jean Baudrillard, equivalente, no caso, à interpretação de Eco, podem ser vistas como “estratégias fatais”. Eco fala em irrealidade cotidiana. Baudrillard mostra que na televisão “os fatos reais se sucedem numa relação perfeitamente estática, isto é, em traços vertiginosos e estereotipados, irreais e repetidos”. Extenuantes de tanta verdade?

Para Baudrillard as coisas desapareciam por saturação e aceleração. Quando todos escrevem, não há mais escritores. Quando tudo é irreal, qual o sentido de denunciar o falso? A mais radical estratégia fatal talvez seja a aceleração do falso para resgatar a necessidade do verdadeiro como extrema-unção.  Para Baudrillard o salto já havia sido dado: “Não estamos mais no drama da alienação, estamos no êxtase da comunicação”. Nem verdadeiro nem falso, puro gozo na enunciação. Passagem da esperança de cura para a contemplação da metástase. Não se deve brincar com coisas tão sérias? Nem Baudrillard nem Eco brincavam. O francês denunciava contradições e revelava paradoxos. Usava a ironia como uma arma letal. Sobre as fake news talvez perguntasse: não serão elas a revelação de que a verdade morreu como uma manchete do dia anterior jamais refutada nem confirmada, apenas esquecida, superada, suplantada, neutralizada?

Jean Baudrillard sentia que uma utopia estava perdida: “Como a informação era bela no tempo da verdade! Como a ciência era bela no tempo do real! Como a objetividade era bela no tempo do objeto! Como a alienação era bela no tempo do sujeito”. Num pequeno livro de grande repercussão, América, Jean Baudrillard especulou: “A América não é nem um sonho nem uma realidade; é uma hiper-realidade. É uma hiper-realidade porque é uma utopia que desde o começo foi vivida como realizada”. As fake news são uma distopia hiper-real, desde o começo vividas como um pesadelo realizado. A estratégia fatal pode estar em usar involuntariamente a estratégia banal da falsificação como despertador das consciências. A lógica profunda das fake news consiste na veiculação do desejado. Para funcionar melhor cada notícia falsa precisa ser verossímil. Quanto mais verossímil, mais real, hiper-real. Retorno de uma missão, a do profissional capaz de separar verdade e mentira sem hesitação nem sofismas? Uma janela se abre. O que se verá?

A história brasileira recente, assim como a mundial, é repleta de notícias falsas. As fake news seriam, num cenário caricatural extremo e cínico, do ponto de vista dos seus usuários, pistas para apurações capazes de produzir verdades posteriores de interesse público. Numa lógica baudrillardiana, ou seja, de desmascaramento pela ironia ou pelo paroxismo do absurdo, seria o “bom uso” social do falso, uma hiper-realidade ou irrealidade cotidiana fazendo Eco – Umberto, com seu senso de humor, não desprezava um trocadilho – nas consciências manipuladas e sensíveis ao falso como repetição ou reforço de suas crenças, mitologias, ilusões e estereótipos.

Verdadeiro e falso

A lógica das fake news é antiga: destruir reputações, fomentar o ódio, provocar celeuma, obter vantagens com o prejuízo alheio, gerar confusão, obter prazer com a propagação daquilo que atrapalha o discernimento, etc. Novidade é a tecnologia de produção, montagem e disseminação do falso. Quando todos podem ser emissores e difusores de dados, não há mais limite para a circulação do inverídico. Nunca foi tão fácil e rápido mentir para todos. A notícia falsa disputa com a verdadeira a atenção dos públicos. A sua vantagem é a liberdade que se dá para usar técnicas jornalísticas atreladas ao sensacionalismo para mexer com as emoções, mais especificamente as paixões, dos indivíduos.

Numa dimensão viral, como metáfora de desregulação ou de metástase, resgatando as ideias de Eco e Baudrillard comentadas anteriormente, cada jogador – pois há jogo, embora perverso, maligno, em campo – responderia ao falso com outro falso ou com doses sempre mais elevadas de falsificação. Só o falso seria capaz de neutralizar o falso na medida em que o verdadeiro se tornaria impotente para enfrentar a proliferação acelerada do seu oposto. A verdade exige tempo de apuração, de verificação e de ponderação. A falsificação ocupa os espaços vazios acelerando sempre mais o seu fluxo. Nessa perspectiva, a tecnologia deu ao falso o seu principal trunfo: a velocidade de difusão. Contra a discrição do verdadeiro, a obscenidade do falso. Contra a lentidão da verdade, a celeridade do celerado.

Face a um real fragilizado pela diversidade de pontos de vista, uma opinião relativizando a outra num jogo de soma zero, a falsificação oferece a robustez do hiper-real, mais real do que o real, mais enfática, mais definida e em sintonia com a percepção distorcida do indivíduo que reclama uma verdade clara e precisa, embora falsa, pela qual possa viver e morrer. Num tempo em que o relativismo não pode mais ser negado pela verdade do especialista, pois sempre pode existir outro especialista para sustentar o oposto, só a falsificação se dispõe a apresentar uma “verdade” incontestável.

As fake news alimentam-se de dois públicos paradoxalmente antagônicos e complementares: o que sabe da falsificação e não se importa, por considerá-la útil aos seus fins ideológicos, e o que adere ingenuamente a uma verdade inexistente por crença ou identificação, ou seja, por encontrar no falso aquilo que pensa ou imagina como sendo verdadeiro. Toma, portanto, o seu desejo por verdade e aceita o falso como evidência materializada da sua ilusão. Não raro, como na vulgata do pensamento medieval, a falsificação recorre a citações verdadeiras para legitimar o seu procedimento.

O grande desafio da verdade é o de frear a vertigem da falsificação como estratégia fatal, aquela que substitui a insegurança do jogo argumentativo, argumento e contra-argumento, ponto e contraponto, pela falsa segurança da afirmação contundente e autoconfiante que não admite contestação nem quer discussão. A tarefa é trazer de volta para o terreno da apuração, da verificação e da demonstração quem passou a considerar mais eficaz, na guerrilha ideológica, o uso do falso como dispositivo de desestabilização do adversário por meio de uma aberração lógica: quando tudo é relativo, só o falso tem ar de verdadeiro e capacidade de convencimento. Uma verdade fraca, que afirma constante os seus limites, não consegue enfrentar uma mentira forte, que se apresenta como ilimitada. Parafraseando Heidegger – o fim deve remeter ao começo – para quem a essência da técnica não é técnica, a essência do falso não é a falsidade, mas, quem sabe, a sua competência para simular veracidade.

Ciro Marcondes Filho, um dos maiores intelectuais brasileiros, professor da Universidade de São Paulo, falecido no último domingo, descontruía ilusões: “Pós-verdade parte de um mito na produção jornalística, a saber, o de que a imprensa seria um veículo da verdade, buscando desvendar todas as deturpações ou falsidades na transmissão de notícias. Quer dizer, só falam em ‘pós-verdade’ aqueles que acreditam que havia uma verdade que a imprensa noticiava”. O antídoto contra a falsificação talvez esteja em voltar a acreditar profundamente na verdade. Como fazer isso quando tudo é interpretação? A justiça, por exemplo, não se contenta em aplicar a literalidade da lei. Entende que fora da interpretação tudo é falso. A verdade tornou-se uma etapa da grande mitologia iluminista extinta? Umberto Eco sabia que o fake era somente um novo momento do falso, a sua apoteose.

 

https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/fake-news-novas-e-velhas-falsifica%C3%A7%C3%B5es-1.520808




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