Fim do Estado Social
Fala a procuradora que denuncia fim do Estado Social
Élida Graziane aponta: Teto de Gastos é inconstitucional e reproduz lógica escravocrata. Ainda que a economia volte a crescer, erosão de políticas públicas continuará. Mas é possível derrotá-la no STF, se sociedade estiver mobilizada
Por Élida Graziane, no Observatório de Análise Política
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Neste mês de outubro, a Constituição de 1988 e o direito à saúde completam 33 anos. Atualmente, qual a situação do país em relação ao modelo adotado pela Constituição Cidadã?
Élida Graziane: Em 5 de outubro completaremos 33 anos da Constituição de 88 e o cenário, infelizmente, não é de celebração. Ao longo dessas mais de três décadas, o país parece ter buscado lenta e implicitamente renunciar ao pacto constitucional civilizatório e abdicado, por conseguinte, do seu compromisso para com a máxima eficácia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, não haverá comemoração porque deixamos de resguardar a implementação a mais ampla possível da CF/1988.
Nós temos vivido um cenário de desmonte gradual e continuado dos serviços públicos e das suas respectivas garantias de custeio no ciclo orçamentário. Especialmente desde a Emenda 95 de 2016, o Brasil optou pela trajetória de paulatina erosão das garantias de financiamento suficiente dos direitos fundamentais, sobretudo a partir da perda da relação de proporcionalidade da despesa com a capacidade arrecadatória estatal. Significa dizer: ainda que a economia volte a crescer e o governo amplie a arrecadação, a tendência do teto vintenário é de redução do custeio das políticas públicas asseguradoras da consecução dos direitos sociais. Fiscalmente perdemos a garantia de implementação progressiva dos direitos fundamentais. Eu digo isso, em especial, tendo em mira a retirada da relação de proporcionalidade com a arrecadação governamental dos pisos federais em saúde e educação. A isso se soma o constrangimento consistente para o custeio dos demais direitos sociais que o teto de despesas primárias impôs.
Exemplificam os vazios assistenciais na oferta estatal de direitos fundamentais, à luz do projeto de lei de orçamento para 2022, tanto a fila de espera do Bolsa Família, quanto a insuficiência de custeio do censo decenal (contrariando decisão do Supremo Tribunal Federal). Interessante, por sinal, notar que o próprio IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] emitiu comunicado dizendo que a previsão orçamentária para realizar o censo em 2022 foi feita de forma deficitária em R$ 300 milhões. Um terceiro e último exemplo reside na dotação para a compra de vacinas para 2022, aquém do montante necessário até mesmo em relação ao montante de 2019, portanto, defasada monetariamente até mesmo em face do cenário pré-pandemia. O patamar previsto para a compra de vacinas no ano que vem é inferior à demanda de imunização da população brasileira não só em relação à prevenção da Covid-19, mas também coloca em risco a gestão de todas as demais vacinas oferecidas ordinária e historicamente no âmbito do SUS.
Vivemos uma trajetória de constrangimento consistente do financiamento dos direitos sociais, mas não apenas, porque o limite global de despesas primárias repercute também na nossa capacidade de promoção da ciência e tecnologia, de proteção ambiental, entre outras relevantes áreas de atuação governamental.
É iníqua essa lógica de apenas fazer ajuste fiscal sobre despesas primárias sem qualquer contenção ou enfrentamento da regressividade tributária, tampouco há balizas mínimas para as despesas financeiras. Enquanto a fila de espera do Bolsa Família é ampliada dramaticamente, acumulam-se renúncias fiscais majoritariamente concedidas por prazo indeterminado, sem adequada avaliação de entrega das contrapartidas prometidas no ato da sua concessão e sem suficiente estimativa de impacto nas metas fiscais. Em igual medida, inexiste controle que imponha ônus argumentativo, balizas mínimas para o montante de despesas financeiras.
Em síntese, no balanço de 33 anos da Constituição de 1988 e, por conseguinte, também do SUS, nós temos o risco consistente de quebra do piso da proteção social para manter – eu diria, inclusive, de forma fictícia – um teto de despesas primárias que, na verdade, desconstrói nossos pilares civilizatórios. É como se a gente abdicasse de ter um pacto constitucional civilizatório, a pretexto de cumprir uma lógica de ajuste fiscal seletivo, iníquo, que na verdade nos traz para um cenário pré-constitucional, um cenário que reproduz a desigualdade escravocrata.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): No Brasil, crises econômicas geralmente resultam em medidas de ajuste e contingência orçamentária incompatíveis com a manutenção de direitos sociais inscritos na Constituição Cidadã. Como combater o discurso de que o equilíbrio das contas públicas se sobrepõe a direitos?
Élida Graziane: Toda vez que me dizem que a Constituição não cabe no PIB [Produto Interno Bruto] e que, por isso, ela deveria ser limitada a partir da fronteira do orçamento, eu retruco questionando se existe orçamento legítimo fora da Constituição. Pode o Estado arrecadar recursos públicos na seara tributária ou por meio da dívida pública, ignorando por completo a concepção de qual é seu papel definido constitucionalmente? Qual é o tamanho necessário do Estado brasileiro para cumprir nosso pacto constitucional civilizatório? Daí decorre que, se nós pensarmos que há uma concepção de obrigações constitucionais a serem cumpridas, todas as normas sobre competências tributárias e sobre a gestão da dívida devem ser lidas como meios instrumentais que visam alcançar, tanto quanto possível, a finalidade da máxima eficácia dos direitos fundamentais. É preciso nos lembrarmos que há finalidades constitucionais a serem cumpridas pelo orçamento.
É urgente desvendarmos a inversão de narrativas. O raciocínio sequencial correto é o seguinte: se o orçamento só é legítimo à luz da Constituição e se a capacidade arrecadatória do Estado (seja pela via das receitas tributárias, seja pela gestão da dívida pública) está fundamentada constitucionalmente, a gente precisa propor à sociedade e aos órgãos de controle que questionem a iniquidade de um ajuste que incide apenas sobre despesas primárias, porque, na prática, isso esvazia fiscalmente a capacidade estatal de cumprir o nosso pacto constitucional civilizatório.O orçamento não se resume a despesas primárias. O debate das finanças públicas deve, necessariamente, refletir também as despesas financeiras e as opções de arrecadação. Ora, no Brasil temos opções absolutamente regressivas, como o são a perenização de renúncias fiscais, bem como a tributação majoritariamente incidente sobre o consumo e a produção quando deveria ser mais incidente sobre o patrimônio e a renda. Em igual medida, a gente também precisa enfrentar a necessidade de balizas mínimas e constrangimentos institucionais que imponham o ônus de motivar o dever de ampla transparência, para trazer as despesas financeiras para o debate coletivo.
É inconcebível que a gente simplesmente sequer debata a necessidade de ajuste também sobre as opções de arrecadação e as despesas financeiras. A tendência de ajuste apenas sobre as despesas primárias vai nos colocar no patamar de gasto social equivalente ao da África Subsaariana, é disso que se trata. Não podemos imaginar, dadas as nossas desigualdades históricas, que seja possível reduzir ainda mais o tamanho do Estado brasileiro. É possível sim aprimorar a qualidade do gasto, é possível que a gente torne, por exemplo, os gastos em saúde e educação mais aderentes aos respectivos planejamentos setoriais. Significa dizer: o gasto mínimo em saúde deve ser estritamente aderente ao planejamento sanitário, na forma do artigo 36 da Lei Orgânica do SUS (Lei 8080/90) e do artigo 30 da Lei Complementar 141/2012. Deve haver aderência da execução orçamentária do piso em saúde ao planejamento sanitário. O gasto mínimo em saúde de todos os entes da federação tem finalidades a cumprir definidas e debatidas de forma ascendente segundo a realidade municipal, estadual e nacional. É preciso que a aplicação de recursos no SUS seja feita conforme o levantamento das necessidades de saúde da população e dos riscos epidemiológicos que lastreiam o respectivo planejamento sanitário. Não podemos permanecer tão reféns desse modelo hospitalocêntrico, dessa terceirização irrestrita para as organizações sociais na política pública de saúde brasileira.
Mas isso pressupõe o quê? Pressupõe qualidade do gasto, pressupõe um debate muito mais sofisticado e não esse viés apenas reducionista de contenção da despesa como algo ontologicamente ruim e, por isso, a ser linearmente reduzido. A despesa pública tem finalidades a cumprir. Inclusive, eu tenho dito que a judicialização da saúde deveria ser interpretada, no mínimo, como diagnóstico dos mais diversos vazios assistenciais para aprimorar a próxima etapa de planejamento no ciclo da política pública sanitária.
Aliás, todo o debate recente da expansão dos precatórios no âmbito do Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério] para o projeto de lei de orçamento para 2022 revela que o Estado não pode se omitir impunemente. A Justiça vai ser chamada a assegurar sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direitos. Na prática, a lógica de ajustes fiscais reducionistas do tamanho do Estado apenas posterga a efetividade dos direitos fundamentais, trazendo essa perspectiva trágica da sua ‘precatorização’, do seu adiamento. Mas, na verdade, o Brasil não pode abrir mão, não pode abdicar da garantia de direitos fundamentais, não pode renunciar à proteção que a nossa Constituição estabelece para a natureza de dever estatal na consecução desses direitos fundamentais.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5595, que questiona artigos da Emenda Constitucional 86/2015 – Emenda do Orçamento Impositivo – por violação de cláusula pétrea da Constituição ao reduzir o financiamento federal para ações e serviços públicos de saúde, segue no Supremo Tribunal Federal (STF), com perspectiva de retorno do julgamento no mês de outubro. Quais as repercussões desse julgamento para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS)?
Élida Graziane: Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5595 o debate é bastante profundo, sendo mais importante pela tese do que pelo valor envolvido. Ali há uma decisão a favor do SUS, em que se firma a impossibilidade de alterar o piso federal em saúde para torná-lo inferior ao patamar anterior, ou seja, a
ideia de vedação de retrocesso no financiamento do direito à saúde. A ADI 5595 estabelece, de forma clara
e consistente, que é inconstitucional o estabelecimento de alterações no financiamento do direito à saúde
que impliquem um patamar inferior àquilo que se tinha adquirido.
A tese de fundo é que o direito à saúde (e também o direito à educação) é acompanhado de uma garantia instrumental de custeio, ou seja, de um instrumento financeiro de defesa, que também é cláusula pétrea.
A garantia constitucional de piso nos permite defender um dever de progressividade. Se é vedado o
retrocesso no financiamento do direito à saúde, impõe-se a constatação de um dever de progressividade, até mesmo em consonância com os tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário em matéria de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. É essa perspectiva que nos interessa: o dever de progressividade no custeio, conforme a capacidade arrecadatória estatal. Porque a Emenda 95/2016, em última instância, despregou o comportamento do piso federal em saúde da capacidade arrecadatória da União.
O precedente da ADI 5595 nos permite obstar novos retrocessos, até porque precisamos nos lembrar que infelizmente houve uma trajetória de alterações regressivas no piso federal em saúde, a começar do descumprimento do artigo 55 do ADCT [Ato das Disposições Constitucionais Transitórias], que previa 30% do Orçamento da Seguridade Social para o SUS. Se hoje nós cumpríssemos esse patamar, o Ministério da Saúde teria praticamente o dobro da dotação orçamentária que tem à sua disposição. A Emenda 29, de 2000, tentou conter um pouco a dificuldade de financiamento da saúde, sobretudo porque a Previdência começou a correr em raia própria com a segregação das suas fontes de custeio desde a Emenda 20/1998. Então a Emenda 29 foi uma tentativa de mitigação de danos em face do cenário em que a Previdência crescia dentro do orçamento da Seguridade Social, enquanto a saúde e a assistência social perdiam a capacidade de se afirmarem. A Emenda 29, por sua vez, ficou 12 anos sem ser regulamentada, só veio a ser regulamentada em 2012 pela Lei Complementar 141. Nesse intervalo de tempo, houve várias manobras que esvaziaram o dever de gasto mínimo em saúde, inclusive o cancelamento de restos a pagar inscritos no piso federal em saúde, mesmo também o falseamento de aplicação [de recursos] nos estados. E a sobrecarga de demanda de custeio, obviamente, acabou incidindo de forma maior sobre os municípios.A corda rompe sobre o lado mais fraco.
Quando o Movimento Saúde+10 pressionava mais enfaticamente em 2015, o governo federal, de uma certa forma, capturou a agenda da sociedade organizada e manejou abusivamente a demanda dos 10% da receita corrente bruta para torná-la 15% da receita corrente líquida (RCL) na forma da Emenda 86. O novo piso federal em saúde não havia sido ampliado imediatamente, mas seria atingido de forma escalonada ao longo de cinco anos, a partir de subpisos que se iniciariam em 13,2% da RCL em 2016, sendo que o piso de 15% da RCL só seria alcançado em 2020. Para que todos tenhamos ideia do que isso significava, vale lembrarmos que, em 2016, o primeiro ano em que supostamente vigoraria esse novo patamar dado pela Emenda 86, o patamar de 13,2% era proporcional e faticamente inferior ao montante aplicado ainda em 2015. Ou seja, houve retrocesso. Na prática, foi o subpiso de 13,2% da receita corrente líquida dado pela Emenda 86 que foi considerado inconstitucional pela cautelar da ADI 5595.
O governo federal, nessa lógica de manobras contábeis (inclusive normativas) para esvaziar o debate no Supremo Tribunal Federal, acabou revogando o art. 2º da Emenda 86/2015 que foi suspenso pelo STF, no âmbito da PEC 241, que se tornaria a Emenda 95/2016 (Emenda do Teto dos Gastos). O debate da ADI 5595 hoje no STF corre o risco de ser considerado como processualmente prejudicado porque a Emenda 95 já teria, em tese, superado os problemas da Emenda 86 em relação ao piso da saúde. Mas a Emenda 95, por si só, congelou o piso da saúde por 20 anos (até 2036), então o debate de mérito subsiste, já que estamos questionando a vedação de retrocesso no custeio do direito à saúde.
Mais importante do que o debate sobre porcentuais ou valores específicos, precisamos que seja afirmada a tese de que há um dever de progressividade e, portanto, não cabe retrocesso no financiamento do direito à saúde. Tal proteção, por óbvio, se estende ao direito à educação, já que ambos direitos sociais são amparados por piso de custeio. É isso que interessa à sociedade, que a gente defenda a proteção dos pisos da saúde e da educação como cláusulas pétreas análogas ao próprio habeas corpus, ao próprio mandado de segurança. De uma perspectiva comparativa, tal garantia de custeio é análoga ao fundo de participação dos estados e dos municípios que resguarda o pacto federativo no nosso país.
Os pisos da saúde e da educação têm a natureza jurídica de remédio constitucional, ou seja, são garantias que instrumentalizam operacionalmente a consecução e permitem a existência dos próprios direitos fundamentais à saúde e à educação.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Você é autora do relatório “Execução orçamentária do SUS no enfrentamento à pandemia da Covid-19”, apresentado à CPI da Covid-19 em julho deste ano, no qual aponta problemas como o descumprimento do Plano Nacional de Contingência “por força de impasses federativos e do atraso orçamentário-financeiro da resposta sanitária”. A partir desse estudo, quais ações e omissões você classificaria como determinantes para o agravamento da crise sanitária no Brasil?
Élida Graziane: No relatório que entreguei no início de julho para a CPI da Covid no Senado, eu levantei várias falhas na execução orçamentária do Ministério da Saúde, ao longo dos três semestres de gestão da pandemia no Brasil até aquele momento: o primeiro semestre de 2020, o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2021.
Nesses três semestres observei o trato errático dos recursos que deveriam ser destinados para o enfrentamento da pandemia, sobretudo por parte do governo federal, o que mostra bem a fragilidade do nosso federalismo sanitário. A resposta da União foi lenta, atrasada e, ao mesmo tempo, não cumpriu o Plano Nacional de Contingência para o Enfrentamento à Covid que o próprio Ministério da Saúde publicou em 13 de fevereiro de 2020. Não houve capacidade de pactuação consistente e tempestiva no âmbito do SUS. Desse modo, os recursos foram liberados, praticamente, às vésperas do calendário eleitoral no âmbito dos municípios (vale lembrarmos que tivemos as eleições municipais em novembro do ano passado). Tal perspectiva foi um tanto voluntariosa, porquanto sem aderência ao planejamento correspondente. Mesmo a lógica de um ‘Orçamento de Guerra’ foi frágil, porque ele vigorou apenas até 31 de dezembro do ano passado e temos o controverso manejo de créditos extraordinários em 2021 para atender a despesas previsíveis.
Portanto, repetem-se manobras contábeis, como quem diz ‘olha! eu não planejei, mas tudo bem, eu dou um jeitinho, eu descumpro’ tanto a necessidade de pactuar com os entes nacionais, quanto a necessidade de pactuar com o Congresso. Aí, vira esse trato errático, muito suscetível a desvio de recursos e a abuso de poder político no âmbito das eleições. A isso se soma o fato de que, infelizmente, registramos o fúnebre legado de um acúmulo de morte evitáveis significativamente dramático.
O balanço que trago da execução orçamentária do Ministério da Saúde é um balanço de fragilidade do planejamento, fragilidade da pactuação federativa, lentidão na execução orçamentária e, até numa perspectiva que eu pude explorar e demonstrar, militarização das despesas típicas do SUS, inclusive, de forma, ao meu sentir, potencialmente equivocada. Quando a gente vê meio bilhão de reais de despesas, algumas delas, inclusive, via transferências do Fundo Nacional de Saúde, para órgãos militares comprarem, por exemplo, material de cama, mesa e banho, materiais esportivos, realização de gastos veterinários, isso tudo é muito controverso, isso tudo merece a
imposição de justificativa adicional.
O meu relatório explora um pouco essas várias fragilidades, algumas delas históricas, mas que, dada a realidade de urgência, de necessidade de máxima transparência durante a pandemia, se tornaram ainda mais dramáticas. Essas irregularidades e fragilidades se tornaram ainda mais dramáticas até porque a gente chega agora, praticamente, nestes meados do segundo semestre 2021, a um acúmulo de quase 600 mil mortes evitáveis. É possível imputar, inclusive, a dimensão do dano moral coletivo, do dano patrimonial coletivo e do acúmulo dessas mortes a essas omissões e ações governamentais, a essa gestão errática, da qual a execução orçamentária é apenas um espelho. Eu chego a dizer, infelizmente, que a forma como nós conduzimos a gestão da pandemia, do ponto de vista sanitário, é um espelho que mostra o quanto se troca toda hora de ministro e secretário de saúde em todos os níveis da federação, o quanto se terceiriza de forma irrefletida, o quanto a gente sente falta de proteção estruturada para o cumprimento do planejamento sanitário com os recursos vinculados ao SUS. A pandemia apenas explicita fragilidades antigas, só que com um acúmulo de mortes que realmente configura um cenário de guerra. Um cenário de guerra que demonstra nossa fragilidade em como, a despeito de ter tido uma expansão, a princípio, grande do gasto em saúde, nós não entregamos aquilo que a sociedade mais precisava, que é uma resposta rápida, uma resposta planejada, uma resposta pactuada federativamente em prol da promoção e da prevenção em saúde.
A gente só remedia dramaticamente a doença já instalada e esses casos de desvio de recursos públicos, a tentativa de manejar compra das vacinas, direcionando como foco de corrupção, isso tudo prova bem a realidade brasileira de criar dificuldades para vender facilidades, para fazer sempre esse jogo de curto prazo eleitoral à custa da saúde da população e até mesmo à custa, infelizmente, do acúmulo de mortes evitáveis.
O cemitério a céu aberto que o Brasil se transformou, essa lógica de um acúmulo tão dramático de mortes mostra bem que, na verdade, a gente escolhe não executar tempestivamente, escolhe não executar o orçamento de forma aderente ao planejado porque, inclusive – me permitam, é duro isso – a música do Cazuza sintetiza bem a execução orçamentária do SUS durante a pandemia: ‘transformam o país inteiro em um puteiro pois assim se ganha mais dinheiro’. Talvez, parafraseando o Cazuza nessa música, composta junto com Arnaldo Pires Brandão: ‘transformam o país inteiro em um cemitério a céu aberto porque assim se ganha mais dinheiro’. É a síntese dramática do que pude perceber no meu relatório para a CPI da Covid.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): A Emenda Constitucional do Teto de Gastos completa cinco anos de vigência em 2021 em meio a discussões sobre seu descumprimento, inclusive por parte do governo federal. O que esse período mostrou em relação aos impactos e viabilidade de manutenção desse instrumento fiscal?
Élida Graziane: Eu não tenho dúvida de que a Emenda do Teto, em relação primordialmente ao congelamento dos pisos em saúde e educação, na forma do artigo 110 do ADCT, é inconstitucional. Sempre defendi isso desde quando ainda era uma PEC – a PEC 241, que depois, quando recebida no Senado, se tornou a PEC 55/2016. A Emenda do Teto se revela cada vez mais uma opção frágil, inconstitucional, que trouxe nesses cinco anos uma piora da qualidade do gasto porque o teto não conteve o trato fisiológico dos recursos públicos. De 2016 para cá ampliou-se muito o espaço para as emendas impositivas, a maioria delas sem maior compromisso com o planejamento setorial das políticas públicas, e agora, em 2020 e 2021, em especial, essa lógica ainda mais opaca, mais subjetiva, ainda mais errática das emendas de relator, marcadas pelo indicador de resultado primário 9 (RP 9). As emendas de relator, além das emendas de bancada, emendas individuais e impositivas, mostram bem a forma como o debate do teto se tornou muito mais suscetível a esse trato balcanizado e feudalístico, esse trato que quer apenas impactar o curto prazo eleitoral dos mandatários políticos de ocasião.
A gente não aprimorou o debate sobre os conflitos distributivos, a gestão da escassez, o planejamento. Não. A Emenda do Teto apenas restringiu ainda mais as soluções coletivas. Veja o debate do censo, do financiamento da Ciência e Tecnologia e mesmo do SUS e da educação, a gente tendo toda essa dificuldade de projetar as políticas públicas, a fila de espera do Bolsa Família, as políticas públicas em caráter universal, a estruturação impessoal dessas políticas públicas, obrigando os ministérios a passarem com o ‘pires’ na mão para parlamentares que querem se perenizar no poder. Esse trato feudal, repito, esse trato de curtíssimo prazo eleitoral prejudica muito a nossa capacidade de entregar para a sociedade melhores serviços públicos.
Nesse contexto, o balanço de cinco anos do teto é, na verdade, de maior iniquidade fiscal. Um teto que não
controla as opções de tributação regressivas, um teto que não traz nenhuma baliza para despesas financeiras,
apenas faz ajustes sobre despesas primárias e, mesmo entre as despesas primárias, deixa crescer de forma desenfreada as emendas parlamentares e as despesas com militares. A reforma do ‘sistema de proteção social’ dos militares, na verdade, trouxe aumento salarial, o Ministério da Defesa tem expandido a sua dotação ao longo desses anos, isso mostra que o teto não trouxe capacidade por si só de a gente enfrentar as nossas iniquidades fiscais.
A crise da pandemia revela o quanto o país tem regras fiscais superpostas, algumas delas francamente ineficazes, e que não consegue fazer o debate amplo e democrático do que é prioridade e como ordenar legitimamente as nossas prioridades do ponto de vista não só das despesas, mas também daquilo que o Estado abdica de arrecadar. A gente faz um debate no Brasil ainda um tanto opaco, um tanto injusto, de abrir mão de arrecadar, as nossas renúncias fiscais. Como disse, não controla as despesas financeiras que seguem irrefreadamente livres, enquanto as despesas primárias que amparam serviços públicos à sociedade mais vulnerável têm sofrido esse constrangimento sem que isso, por exemplo, restrinja a expansão dos gastos militares e das emendas parlamentares.
A síntese que faço a respeito da Emenda 95 é que ajuste apenas sobre despesa primária é iníquo. Há uma iniquidade fiscal e, além disso, uma inconstitucionalidade no constrangimento, em especial, dos pisos em saúde e em educação, tal como vínhamos debatendo na ADI 5595 e, principalmente, na ADI 5658. O balanço de cinco anos do teto é um balanço de perenização das nossas iniquidades fiscais.
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