Fim do pesadelo
Fim do pesadelo e desradicalização
Quando as gerações futuras examinarem o que ocorreu no Brasil entre 2018 e 2023, saberão que um obscuro ex-tenente do Exército, reformado como capitão em lamentável acordo para sua exclusão das FFAA em processo sob a acusação de terrorismo, foi eleito presidente da República após 30 anos de atividade parlamentar em defesa da tortura e das milícias, em favor do ódio e dos preconceitos. Saberão que ele se apresentava como um enviado de Deus, que seu símbolo era uma arma de fogo e que tinha especial capacidade de ampliar patrimônio com compras em dinheiro vivo.
Será difícil, então, compreender como uma nação com a nossa grandeza permitiu que um aventureiro extremista e necrófilo chegasse à Presidência. Mais difícil ainda será identificar as razões pelas quais o mesmo indivíduo, após ter transformado a imagem do Brasil em chacota internacional; ter implantado política para estimular a disseminação do coronavírus com base na ideia da “imunidade de rebanho” e, após ter conduzido seus apoiadores a um processo de radicalização jamais visto em nossa história, alcançou quase a metade dos votos válidos em sua tentativa de reeleição.
Muitos estudos internacionais têm analisado os processos de ascensão do populismo de perfil neofascista. No Brasil, também temos trabalhos importantes como Bolsonarismo: a alt-right e o populismo iliberal no Brasil, de Michele Prado; Guerra cultural e retórica do ódio, de João Cezar de Castro Rocha, e Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI, de Idelber Avelar, para citar apenas alguns exemplos; além de relatos impressionantes como A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake News e violência digital, de Patrícia Campos Mello.
Mais recentemente, alguns podcasts têm situado o tema em profundidade, como a produção da GloboPlay de “Guerras Culturais, uma batalha pela alma do Brasil”, que recomendo muito. O fato é que precisamos conhecer mais como o bolsonarismo emergiu na cena pública e foi capaz de hegemonizar a direita em um lapso temporal tão curto, produzindo uma realidade distópica, que seguirá nos assombrando por muito tempo. As dificuldades para esse entendimento são as mesmas que temos para identificar a origem dos pesadelos.
Há muitas lições para aprender sobre pesadelos que se tornam realidade, e as dificuldades serão enormes, mas já se pode afirmar que o Estado brasileiro precisará de políticas específicas para a promoção de uma cultura democrática, o que envolve, pelo menos, quatro desafios: 1) iniciar um processo de desradicalização para evitar o escalonamento dos conflitos políticos, o que, entre outros temas, demanda um marco legal para as plataformas de comunicação na Internet que assegure a responsabilização dos proponentes dos discursos de ódio e da desinformação; 2) realizar reformas institucionais que assegurem a independência dos Poderes e dos órgãos de controle; 3) despartidarizar as FFAA e as polícias e 4) punir os crimes praticados contra a democracia.
A experiência internacional pode nos oferecer caminhos imprescindíveis, porque vários países têm lidado com os mesmos problemas de radicalização, definida como um processo em que a participação política ocorre em apoio ao uso da violência para fins políticos (Wilner; Dubouloz, 2010). Nessa linha, assinalo aqui dois comentários apenas.
A Indonésia é um dos países fortemente atingidos por um processo de radicalização em uma onda de extrema-direita, que envolveu práticas de violência política e atos terroristas. O processo atingiu os ambientes religiosos, a administração pública e as escolas, sendo que os serviços de inteligência do país (Badan Intelijen Negara) estimaram que 39% dos jovens foram influenciados pelo processo de radicalização que propunha a transformação da Indonésia em um Estado Islâmico, sob um Califado. Estudo de Suyanto, Sirry e Sugihartati (2019) sobre a Indonésia, entretanto, mostrou que há muitos jovens que participam de movimentos extremistas, mas que não compartilham das noções proponentes da violência, sendo, portanto, “pseudorradicalizados”. Essa diferença tende a ser muito importante para se pensar em uma política pública de desradicalização no Brasil.
Outro ponto muito importante é o enfrentamento ao processo de radicalização realizado nas “bolhas” da internet. Grupos extremistas precisam de uma ecologia do ódio, e as redes sociais e as diversas plataformas de comunicação oferecem os recursos mais amplos para a promoção de ambientes radicalizados, protegendo-os do escrutínio público. Há vários estudos internacionais sobre o tema da desradicalização, porém pouco acúmulo no Brasil. O fato é que mudanças socioeconômicas e maior inclusão social parecem não produzir qualquer impacto no engajamento e nos ideais de grupos radicalizados. Como assinalaram Rink e Sharma (2016), em estudo sobre a violência política no Quênia, outro país que tem enfrentado sérios eventos promovidos por grupos extremistas, o processo de radicalização é melhor compreendido “de forma relacional, em um quadro orientado por ideias em oposição a uma abordagem estrutural a nível macro”.
Será preciso compreender essas dinâmicas relacionais se pretendemos avançar e consolidar a democracia no Brasil, o que assinala uma nova e talvez crucial pauta civilizacional.
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.
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