Fome!
Fome!
Há grupos organizados que definem quem come e quem não come, quem pode ter casa para morar e quem não pode, já que a carência alimentar do corpo é cruel e seletiva e a moradia é um privilégio!
Dia desses, rolando os posts no FB, passei por um anúncio que dizia: “descubra como é morar em uma obra de arte”. E discorria sobre um lindo prédio de apartamentos à venda. Aí pensei: quem não gostaria de morar em uma obra de arte? Até imaginei alguém morando em uma casa pintada por Monet, Van Gogh ou Munch…
Mas esse pensamento foi breve. Logo outro se agigantaria, num inevitável contraponto, porque ver é sempre ir além do que se enxerga.
Surgia, assim, o Invisível, as imagens das pessoas que vivem nas ruas, as crianças, os cães e os parcos pertences, amarradinhos em sacos plásticos, lotando praças e chãos gelados sob marquises – o frio e a fome assolando suas almas e corpos, em tantos lugares, grandes ou pequenos, perto ou longe de mim.
E pensei, num pensamento sólido, nelas e neles, e a bruma de seres humanos invisíveis foi se formando. Era possível, no entanto, ver o apagamento deliberado, tornando esse povo um fio de quase nada, sem identidade no complicado tecido social, varridos decididamente das possibilidades que a própria existência teria de lhes garantir, nesta sociedade dita democrática…
Foi quando um outro pensamento insistiu em esvoaçar sobre meu coração: como pessoa que vive na mesma “casa comum”, respira na mesma atmosfera, preciso urgentemente ver! Mas como ver o Invisível?
Não vou discorrer aqui sobre a forma através da qual a Filosofia e seus estudos fenomenológicos tratam a questão do “invisível”, embora esse recorte seja fascinante, porque meu fascínio repousa na praça e nas ruas, na concretude da pedra, donde também vem minha fome. (Apenas aproveito um pouco do que Agostinho de Hipona diz quando sugere que, para ver, é preciso mediações. Dessa forma, Agostinho louvava insistentemente a criação e as criaturas, como a louvar o próprio Deus, através dessas mediações d’Ele!)
A partir daí, para ver o Invisível, vou em busca de algumas mediações que sangram a nossa realidade: higienização social e preconceito; desigualdade de oportunidades, descaso para com as/os mais vulneráveis; sistema prisional dissipado por uma sociedade cega para essa realidade; escola, enquanto instituição segregadora e seletiva, haja vista o obsoleto sistema de avaliação, presentificando ainda a “promoção” (passar de ano/rodar- suposta seleção epistemológica); sistema de saúde pública, a par de seu modelo exemplar, (e embora heroico na Pandemia), com adversidades crônicas que atingem sempre os pobres; a terra nas mãos de pouquíssimos!
O que tudo isso tem a ver com quem vive nas ruas? Tudo, já que há grupos organizados que definem quem come e quem não come, quem pode ter casa para morar e quem não pode, já que a carência alimentar do corpo é cruel e seletiva e a moradia é um privilégio!
Então me deparo com meu construto de vida: quero ter fome, sim, de luta para poder ver o invisível! E então fico com a Adélia Prado: “Não quero a faca nem o queijo, quero a fome”! E sigo.
Agradeço a oportunidade de escrever neste sentido e somar-me aos esforços de outros tantos e tantas pela humanização, através do conhecimento. Leia também:https://www.neipies.com/aprender-a-desaprender-construindo-a-esperanca/
Autora: Ir. Marta Maria Godoy
Graduada e pós-graduada em Letras, pós graduanda em Teologia
FONTE:
https://www.neipies.com/fome/?fbclid=IwAR3rkWXt_rx49IdQTal8n7RjcTaJSQ7ew_Cutem6nyCmZXgGrNMdO9Vi1E4