Futuro retorno das escolas
Entrevista para Zero Hora sobre o futuro retorno das escolas
Gregório Grisa
Concedi entrevista para a o jornal Zero Hora sobre a educação no cenário de pandemia e sobre o futuro retorno das atividades presenciais. A entrevista está distribuída em duas matérias, a primeira é essa e a segunda é essa.
O repórter Guilherme Justino me enviou três perguntas. Abaixo eu transcrevo a íntegra das minhas respostas. Boa leitura.
Dimitris Rapakousis / EPA — EFE- 24.3.2020
1. Será, provavelmente, um desafio para professores e alunos, com o fim ou o abrandamento da quarentena, aplicar os novos hábitos (de higiene, de distanciamento) em sala de aula. O quanto isso pode afetar o ensino?
Tudo será afetado em nossas vidas, inclusive o ensino. Do ponto de vista prático, esse efeito é tão maior quanto menor for a idade dos alunos. Na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental é muito difícil imaginar o rigoroso cumprimento de protocolos sanitários por parte dos pequenos. As crianças são espontâneas e o contato é a norma, complicado os responsabilizar por práticas que são desafiadoras até para os adultos. Isso não significa que não teremos de explicar, orientar e cobrar as ações preventivas em todos espaços, mas há de se ter bom-senso.
A etapa da alfabetização é a que mais sofre com a inatividade escolar, a criança fica muito dependente do auxílio familiar e a desigualdade de capital cultural e escolaridade dos pais implica em um agravamento do problema. Diferente de realizar brincadeiras e conversar (educação infantil) ou apenas acompanhar a realização de atividades (anos finais do fundamental e ensino médio), nessa etapa muitos pais não têm a paciência, a desenvoltura e a competência para conduzir o complexo processo de alfabetização. Por sua vez, o aluno que está se alfabetizando não consegue progredir com “pesquisas da internet”, ele precisa de orientação dirigida, aprender a ler e escrever não é um processo natural e demanda recursos técnicos por parte de quem está ensinando.
Uma grande adaptação terá de ser pensada. O retorno será parcial, envolvendo mudanças nos espaços físicos, rodízios de alunos, redução de turmas e por aí vai. As atividades pedagógicas terão de se enquadrar nesse novo cenário, o ensino presencial, ao menos durante a transição, terá de priorizar aquelas atividades que permitam algum distanciamento, mais individualizadas e que tenham suporte em questões mais dirigidas.
A comunicação com os pais, que já é fundamental agora, terá de se qualificar e intensificar, isso vale tanto para as questões sanitárias quanto para algum suporte nas questões do ensino. A recuperação da aprendizagem precisa se tornar política pública institucional, programas de reforço que combinem atividades presenciais e remotas, de preferência com turmas pequenas e materiais diferentes do usual. Esse é um desafio para os secretários de educação, tanto no que tange a oferta de formação para os docentes quanto a oferta de material didático. Tudo isso com base em avaliação diagnóstica inicial e avaliação periódica do processo. Se a política pública das redes de ensino tivesse que focar em alguma etapa nos programas de reforço, minha sugestão seria a alfabetização, mas o ideal é que todos estudantes possam ter reforço pedagógico.
2. O que será mais importante ter em mente, pensando desde direção/reitoria e professores até pais em alunos, sobre como será a retomada das aulas? É preciso ir devagar, priorizar a segurança e o tempo de cada um, ou intensificar as lições, exigir grande comprometimento dos alunos devido aos “dias parados”?
A primeira coisa é garantir a segurança através de bons protocolos sanitários, condições de infraestrutura adequadas (tudo que envolve, água, banheiros, higienização, álcool gel). Todos profissionais das escolas terão de ser treinados para implementar os protocolos previstos. Os esforços terão de ser intersetoriais, secretarias de educação, saúde (contato direto para acompanhar o estado de alunos e docentes), assistência social (para lutar contra a evasão e os problemas de acesso dos mais vulneráveis), conselhos municipais e estaduais de educação, conselhos tutelares, todos em contato permanente.
Em um segundo momento, após uma avaliação diagnóstica, terá de ser planejada a reposição de conteúdos e programas de reforço pedagógico conforme aponto na primeira resposta. Esses programas devem durar até o fim do ano letivo ou ir além dele, conforme durar o distanciamento social.
Sobre intensificar as lições. No momento de emergência, um contato mais direto e frequente da escola, do docente com as famílias e os alunos é muito importante. O contato também é fator de redução de evasão futura. Nos casos mais extremos, a busca ativa pelos alunos mais vulneráveis é um papel do poder público, antes mesmo de pensar no estudo, falamos de buscar garantir condições de existência dignas para esses alunos.
Contudo, no retorno das aulas presenciais há de se ter um cuidado para não sobrecarregar alunos e professores, teremos de ter flexibilidade curricular e fazer escolhas, o conteúdo em si não pode ser a centralidade do retorno. Teremos diante de nós, problemas emocionais, questões psicológicas e sociais de docentes e alunos que são mais amplas e merecem o foco das primeiras acolhidas. No que tange ao ensino, devemos focar mais em habilidades do que em conteúdo, ofertar trabalhos por projetos mais do que através das disciplinas isoladamente. Cobrar comprometimento de todos deve ser uma constante, mas cobrar apenas e não ofertar condições de trabalho e estudo pode não ser produtivo. Vai haver uma catarse de retorno, um reinventar das formas de interagir, ao mesmo tempo que a ansiedade por vencer o calendário estará presente, resta entender cada perfil de estudante e contexto para propor atividades coerentes com o momento.
É importante dizer que tanto durante o distanciamento quanto no retorno, cada rede de ensino e cada escola deve avaliar suas condições e sua capacidade instalada. Ninguém estava preparado para tão longa paralisação, saímos de um primeiro momento de impacto, para depois fazer algumas tentativas e as soluções não são as mesmas para todos. Estamos aprendendo no processo.
3. Toda essa crise sanitária tem mostrado, apesar do abismo que separa algumas realidades, uma capacidade grande de adaptação de professores e alunos com a intensificação de aulas a distância. O que fica de aprendizado em relação a isso?
Essa crise em particular está nos mostrando duas coisas que podem parecer contraditórias à primeira vista, mas não são. A primeira é que na educação, nada substitui as atividades presenciais e o professor, a segunda é que nunca foi tão necessário saber sobre e usar as tecnologias, bem como as diferentes formas de ensino não presencial (TV, rádio, redes sociais, livro didático). Países e redes de ensino que já usavam de maneira mais madura e de forma complementar o ensino mediado por tecnologias, estão conseguindo maior êxito no ensino remoto no período emergencial. No retorno parcial teremos de usar meios remotos para recompor conteúdos e calendário, aqueles que não fizerem registro de carga horária, ao menos irão ofertar algo como complemento de forma remota, precisamos saber fazer.
Então vejamos: a interação na escola e o papel do professor saem muito fortalecidos da crise, eles vão além do ensino, constituem um bem cultural, civilizatório. Ao mesmo tempo, o uso de novas tecnologias como auxiliar no processo de ensino precisa ser incorporado no meio educacional em uma escala maior, não para substituir o ensino presencial (não há essa equivalência), mas para o fortalecer e para que se tenham recursos mais qualificados quando se enfrentar crises como essas, que infelizmente seguirão ocorrendo.
O aprendizado aqui é de que a formação continuada de professores terá de ser mais prática, tendo um foco maior no domínio das ferramentas digitais sim, pois elas são pontos de apoio importantes. As crises demandam criatividade e proatividade, imersos em dificuldades, há casos Brasil afora de professores se desdobrando, aprendendo e propondo ações remotas muito interessantes para não deixar os alunos parados. Essa oferta dirime a defasagem que será significativa, em especial entre os mais pobres. A oferta sistematizada de atividades remotas ou a busca ativa do poder público que mencionei antes, não deve ser necessariamente atrelada ao registro completo de carga horária, isso deve ser avaliado em cada contexto.
Por fim, todo esse debate não pode ser confundido com aquele sobre a qualidade ou não da Educação a Distância (EAD) no ensino superior ou ensino técnico no Brasil. A EAD é uma modalidade específica, normatizada, que tem seus parâmetros e critérios, requer uma lógica curricular e de capacitação dos professores específica. Particularmente, sou bastante crítico, por exemplo, em relação a formação de professores (licenciaturas) por meio de EAD, temos um quadro grave no Brasil nesse sentido, mas esse é outro tema.
Doutor em Educação e Pós-Doutor em Sociologia pela UFRGS | Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul