Golpe midiático-civil-militar

Golpe midiático-civil-militar

1964, golpe midiático-civil-militar

   por 

Tanques em frente ao Congresso Nacional após o golpe de 1964 | Arquivo Público do DF

 

O golpe de 1964 começou a nascer muito antes do fatídico 31 de março. Em 1950, quando Getúlio Vargas saiu do seu autoexílio no Rio Grande do Sul para concorrer à eleição presidencial, os lacerdistas e udenistas não queriam que ele pudesse concorrer. Se concorresse, não poderia ser eleito. Se fosse eleito, não poderia tomar posse. Se tomasse posse, não poderia governar. Vargas foi eleito, tomou posse, governou, nacionalizou o petróleo brasileiro, criando a Petrobrás, em 1953, e sofreu uma das mais duras campanhas difamatórias já enfrentadas por um político brasileiro.

Carlos Lacerda, através do seu jornal, “A Tribuna da Imprensa”, acusou Vargas de atolar o Brasil na corrupção. Em agosto de 1954, Lacerda foi vítima de um atentado amador do qual saiu ferido com um tiro no pé e transformado passageiramente em herói da luta contra os desmandos do poder. Morreu no ato o major da aeronáutica Rubens Vaz, que servia voluntariamente de guarda-costas do jornalista. Lacerda, na capa da sua “Tribuna da Imprensa”, em 5 de agosto de 1954, disparou: “Perante Deus, acuso um só homem por esse crime. É o protetor dos ladrões. Esse homem é Getúlio Vargas”. Rapidamente se descobriu que o crime havia sido encomendado por integrantes da Guarda Pessoal do presidente da República. Vargas afirmou que nada sabia.

Sob forte pressão, suicidou-se em 24 de agosto de 1954. Esse gesto teve grande repercussão política e atrasou o golpe conservador em dez anos. A glória momentânea de Lacerda evaporou-se como uma manchete de jornal do dia anterior. Ele conseguiria, no entanto, permanecer na cena política e principalmente no palco dos sucessivos crimes contra a frágil democracia brasileira. Era o golpe na alma.

A origem do apoio norte-americano ao golpe de 1964 pode ter começado a cristalizar-se em 13 de maio de 1959, quando o governador do Rio Grande do Sul, o intrépido Leonel Brizola, encampou a companhia de energia elétrica, pertencente à americano-canadense “Bond and Share”, pelo valor simbólico de um cruzeiro. O segundo passo viria com a encampação, em 1962, da companhia telefônica, filial da “International Telephone and Telegraph Corporation”(ITT), para aliviar a população gaúcha do estrangulamento do Estado provocado por tarifas altas e serviços de baixa qualidade, 14.300 telefones para 670 mil habitantes de Porto Alegre. Em 1962, os americanos acusaram o golpe.

O embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, enviou comunicado cristalino ao presidente John Kennedy: “Goulart está fomentando um perigoso movimento de esquerda, estimulando o nacionalismo. Duas companhias americanas, a ITT e a Amforp, foram recentemente desapropriadas pelo governador Leonel Brizola. Tais ações representam uma ameaça aos interesses econômicos dos Estados Unidos”. A ordem era colaborar francamente com os conspiradores brasileiros.

Os telegramas de Gordon a Kennedy, agora de domínio público, são um mapa da participação americana na implantação da ditadura militar no Brasil. Num deles, lê-se:  “O fundamental é organizar as forças políticas e militares para reduzir o seu poder e, em caso extremo, afastá-lo”. Numa conversa gravada e finalmente disponível, Gordon revela todo o seu empenho golpista: “Temos uma organização chamada IPES, que é progressista e precisa de alguma ajuda financeira. Acho que temos de ajudá-los”. Kennedy questiona: “Quanto vamos colocar nisso?” Ouve a resposta: “Isso é coisa de poucos milhões de dólares”. Inquieta-se: “Isso é muito dinheiro. Afinal, você sabe, para uma campanha presidencial aqui você gasta em torno de 12”. Recebe o alerta de Gordon: “Mas não podemos correr certos riscos”.

O embaixador William Draper, em 1962, advertira: ‘Enquanto Goulart permanecer no poder, os Estados Unidos devem persistir nos seus esforços para fazê-lo sentir a gravidade da situação econômica e financeira do Brasil, e continuar insistindo na adoção de medidas corretivas adequadas que justifiquem nossa assistência financeira em larga escala. Ao mesmo tempo, devemos tentar influenciar a sua orientação política nos sentidos mais bem calculados para servir aos interesses dos Estados Unidos (…) Os Estados Unidos devem também intensificar sua inteligência e manter contato, discretamente, com quaisquer elementos militares e políticos de um possível regime alternativo potencial para agir pronta e efetivamente em apoio de um tal regime, na hipótese de que a crise iminente financeira ou alguma outra resulte no afastamento de Goulart”.

Tudo aconteceria conforme o roteiro. É inexplicável que Hollywood não o tenha aproveitado em filme. Um telegrama ao Departamento de Estado americano apresenta o desfecho: “Estamos adotando medidas para favorecer a resistência a Goulart. Ações secretas estão em curso para organizar passeatas a fim de criar um sentimento anticomunista no Congresso, nas Forças Armadas, na imprensa e nos grupos católicos”. Assim nasceram as falsamente espontâneas, lamentavelmente inesquecíveis “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, que deram sustentação ao golpe, legitimação ao arbítrio e munição para a imprensa garantir que o golpe vinha do povo. Assim se faz a história. Lamentavelmente.

(O trecho reproduzido acima está no livro 1964, golpe-civil-militar, de Juremir Machado da Silva, publicado pela Sulina em 2014)

https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/rascunho-automatico1964-golpe-midiatico-civil-militar/ 

 

Como a imprensa ajudou a derrubar Jango

  por 

Como a imprensa ajudou a derrubar Jango - Matinal Jornalismo
João Goulart | Foto: Reprodução PDT

 

A revista semanal “O Cruzeiro”, de propriedade do magnata da imprensa Assis Chateaubriand, descreveu com entusiasmo, na “edição especial da revolução”, de 10 de abril de 1964, o golpe “hora a hora” em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Um fragmento dessa cobertura revela, por trás da aparente neutralidade da narrativa, a dimensão do comprometimento da publicação com os golpistas: “O Governador Magalhães Pinto fez seu pronunciamento à Nação. Estava formada a Cadeia da Liberdade, que levou a todo o Brasil a palavra do líder mineiro. Governadores de outros Estados, como São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo, Guanabara, Goiás, Mato Grosso e Bahia, apenas esperavam a palavra do governador de Minas, para dar início ao movimento nas áreas de sua responsabilidade”.

A “revolução” da “liberdade” colocaria na “cadeia” todos os adversários da ditadura em implantação. Mas é em “Os idos de março e a queda em abril” que o reacionarismo da imprensa atinge o seu ponto culminante. Oito jornalistas – Alberto Dines, Antônio Callado, Araújo Netto, Carlos Castello Branco, Cláudio Mello e Souza, Eurilo Duarte, Pedro Gomes e Wilson Figueiredo –, na posição de “intelectuais orgânicos” dos golpistas, chafurdam na lama dos sofismas mais primários, bajulam os coveiros da democracia, exercem com esmero a arte sempre atual no jornalismo de desqualificar adversários ideológicos sob a aparência da pretensa objetividade e praticam, logo depois do fato mais grave da nação, o velho estilo jornalístico superficial, cheio de anedotas de mau gosto, sem visão global, com baixa complexidade analítica e alta capacidade de difamação. Comprometem as suas biografias sem o menor constrangimento. Tudo parece construído para emplacar uma “boa” anedota.

Alberto Dines, Callado e Figueiredo são os que mais se enlameiam. Dines vai das confissões – “a maioria dos blocos que passava diante do jornal parava para nos vaiar” – aos lamentos: “O presidente, contrariando todas as promessas, assinara a encampação das refinarias particulares de petróleo. Enfim, a sexta-feira tensa e negra. Despontava o verdadeiro sentido daquele dia”. Sobre essa sexta-feira, 13, a sexta do ato da Central do Brasil, ele distorce a realidade sem pudor: “O comício foi deprimente até para os esquerdistas”. Contradiz-se num último esforço de distanciamento: “O próprio Arrais foi vazio. Só Brizola e Jango acertaram em cheio. Brizola aprimorara sua técnica intercalando cada frase com uma pausa que conferia às suas teses uma retumbância enorme. E Jango estava num dos seus dias mais felizes, num dia de festa oratória, abandonando o texto do discurso para se dar ao luxo, raro, de arengar de improviso, com frases certas e certeiras”.

A partir daí o tom sabe. Dines e o seu “Jornal do Brasil” revelam-se militantes. O ódio ao governo de Jango aparece a cada linha. A verdade é negada repetidamente. Os jornais “O Globo” e “Tribuna da Imprensa” atacavam Jango sem cessar. Dines achava pouco ou nada: “A velocidade do presidente tirava a capacidade de resistir. Só podíamos dedicar um único editorial contra cada ato ou falação de Goulart. No dia seguinte, já havia outros para atacar. Mesmo assim, o nosso era o único, dos chamados grandes jornais, do Rio, a resistir. Os outros como que perderam a noção das coisas. Estarrecidos ou acomodados. Mas como rebater racionalmente, como enfrentar com argumentação inteligente a política do ‘manda brasa’. Perdíamos. Na batalha das ideias contra os slogans, o grande soldado do jornal foi Luís Alberto Bahia. Quanto mais tacanha era a jogada de Goulart, mais brilhante era o seu raciocínio numa emulação do requintado contra o grosseiro. A cabeleira enorme e mitológica do ex-trotskista contra os cabelos escorridos e poucos do arrivista de esquerda”.

“Manda brasa, presidente” era a expressão, transformada em palavra de ordem e satirizada pela imprensa, atribuída ao general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, em exortação a Jango. Alberto Dines queria que a brasa do presidente fosse extinta. Para isso, qualquer meio era bom, qualquer aliado, mesmo o mais espúrio, era bem-vindo: “Em São Paulo [em 20 de março], reuniam-se no centro da cidade cerca de 500 mil pessoas na Marcha da Família. O inspirador era o governador Ademar de Barros, homem que estava longe de representar a antítese ideal de Jango. Mas já há algum tempo estávamos resignados a isto. O que importava era que, em São Paulo, meio milhão de pessoas tinha saído à rua, sem archotes nem tanques e canhões, apenas com cantos na boca e rosários na mão, para protestar contra o caos”. Sob inspiração direta dos Estados Unidos cujo telegrama enviado do Brasil ao Departamento de Estado sempre vale repetir: “Estamos adotando medidas para favorecer a resistência a Goulart. Ações secretas estão em curso para organizar passeatas a fim de criar um sentimento anticomunista no Congresso, nas Forças Armadas, na imprensa e nos grupos católicos”.

(O trecho reproduzido acima está no livro 1964, golpe-civil-militar, de Juremir Machado da Silva, publicado pela Sulina em 2014)

https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/como-a-imprensa-ajudou-a-derrubar-jango/ 

 

 

Jango sonhava em voltar para casa

   por 

Jango sonhava em voltar para casa
Divulgação / Dossiê Jango / ABr

 

Jango vai morrer.

Todos os dias, ele espera. Contempla um ponto no horizonte, que pode ser o Brasil, e espera pacientemente. Espera algo que lhe fará reviver, ressuscitar, explodir.

Talvez isso se reflita, sem que ninguém note, na sua maneira de contemplar as nuvens, como se no seu olhar uma sombra espessa tomasse o lugar de imagens movediças, ou na gota de suor que se imobiliza na sua testa ampla quando sai do sol e encosta a mão na casca rugosa de uma árvore de sombra generosa. Quem pode observar aquilo que não se dá a ver antes de não poder mais ser visto? Ou haverá coisas que só podem ser vistas depois que já se extinguiram deixando rastros esparsos no ar pesado?

Em Bella Union, ele faz a sua última aterrissagem.

Como é ter a morte nas entranhas sem o saber? Como será carregar o fim num coração desassombrado de quem tem muito, teve muito mais, soube sonhar, entregar-se e perder? Como é viver um dia depois do outro com a sensação de ter sido abatido em pleno voo, não um voo de um pássaro qualquer, mas o voo altaneiro da “grande aventura”, o voo que poderia ter feito milhões de homens também baterem asas? Jango não é de pieguices nem de grandes metáforas. Não é raro, porém, que contemple longamente as suas mãos e, em seguida, sem transição aparente, fite o horizonte da campanha como um animal na quietude mais pura e tensa da angústia farejando o sinuoso caminho de casa, o caminho por demais conhecido, como dizem os gaúchos da sua São Borja, da querência.

Jango vai morrer.

Ele é um herói.

Um herói que não se vê assim e morrerá no exílio.

Carrega a morte nos olhos sem dar na vista. Talvez saiba disso ou pressinta que a sua hora, a “mala hora”, como dizem os camponeses com quem convive nas suas estâncias uruguaias e argentinas, chegou, essa hora de acertar as contas com o destino, esse nome dado ao desconhecido, ao arbitrário, esse tempo misterioso e gratuito chamado existência, essa passagem – não confundir com ponte – pelo mundo sem garantia de coisa alguma. Quem poderá desmentir essa possibilidade? Os amigos sabem que ele tem “memória de elefante”, que jamais esquece um rosto, um nome, uma fisionomia, um olhar, uma pessoa, algo que transparece no brilho dos olhos iluminados quando se depara com alguém capaz de tirá-lo desse confinamento interior que disfarça tomando mate de manhã – quatro horas de sono lhe bastam –, lendo jornais, proseando, pescando, cavalgando, preparando um arroz carreteiro, trabalhando como se fosse um simples peão, fazendo negócios em profusão, contando e ouvindo histórias, entregando-se amavelmente à vida como se não lhe pesasse nas costas o fardo da deposição em 1964 e não sentisse na boca o amargor, misturado com uísque, das derrotas políticas nascidas das suas maiores vitórias.

– Quando eu voltar ao Brasil… – comenta vez ou outra.

Quem poderá desmentir que no seu último domingo ele tenha repassado rostos, frases, gestos, situações, imagens e fatos de tudo o que lhe aconteceu, pois aquilo que lhe aconteceu está dentro dele como uma doença incurável alastrando-se silenciosa ou ardilosamente? Quem poderá negar que tenha pensado no essencial, naquilo que sempre soube, mais do que qualquer um, a verdade suprema da sua queda, a chave do golpe que o arrancou do poder porque passara a realmente exercê-lo? Quem poderá refutar que, antes de começar a sua última viagem, tenha dito para si – já sem raiva, mas com tristeza – como certamente o fizera milhares de vezes em 12 anos de exílio, esse desterro do qual só se livraria morto:

– Fui derrubado com o apoio dos Estados Unidos.

      (Silva, Juremir Machado da. Jango, a vida e a morte no exílio. Porto Alegre: L&PM, 2013).

 

https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/jango-so-queria-voltar-para-casa/ 




ONLINE
73