Golpe para implantar ditadura
O golpe era para implantar ditadura

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Milton Pomar (*)
Passaram-se 26 anos, entre a entrevista famosa de Jair Bolsonaro a Jair Marchesini, no programa Câmera Aberta, da TV Band Rio, em 24 de maio de 1999, e o seu depoimento, dia 10 de junho de 2025, no Supremo Tribunal Federal (STF), na condição de réu, acusado de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União; e deterioração de patrimônio tombado, crimes que teria cometido em 2022, na condição de Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas.
O golpe de Estado não aconteceu, provavelmente porque os comandantes militares avaliaram que o seu líder máximo era muito medíocre, a coisa não duraria, e o risco não compensava o crime. Por não ter acontecido, pelo crime não ter se consumado, há quem defenda que Jair Bolsonaro e os demais integrantes da conspiração para derrubar o presidente da República, eleito em outubro de 2022, devem ser absolvidos das acusações. É o que diz, por exemplo, o ex-governador de São Paulo e multimilionário João Doria (entrevista ao Correio Braziliense, em 11/06): para ele, a prisão do ex-presidente seria vista “(…) como martírio e ativaria ainda mais a tensão divisionista no Brasil”. “(…) entendo que o STF deve avaliar o sentimento do País. Não seria contributivo imaginar Bolsonaro enclausurado em pleno ano pré-eleitoral”.
Ou seja, é melhor deixar tudo como está, manter a impunidade histórica dos golpistas no Brasil, impunidade que é a principal responsável por essa nova tentativa de golpe, que pretendia ir muito além do anterior (o golpe parlamentar de 2016).
Por que não assumem o que fazem?
Quem assistiu os depoimentos no STF de Jair Bolsonaro e dos demais acusados de tentarem um golpe de Estado pode constatar que continua o comportamento-padrão dos oficiais: nenhum deles teve a coragem de assumir o que tentou fazer, assim como os torturadores e assassinos da ditadura militar de 1964 nunca assumiram seus crimes contra a população brasileira.
Bolsonaro garantiu, na entrevista de 1999, que “através do voto você não vai mudar nada nesse País” e apontou como única solução para o Brasil “partirmos para guerra civil, fazendo o trabalho que o regime (militar) não fez: matando 30 mil.” Registre-se: matando 30 mil brasileiras e brasileiros.
Bolsonaro sempre manifestou publicamente suas ideias, inclusive, repetidas vezes, ser a favor da tortura (crime contra a Humanidade). Talvez Bolsonaro tenha sido tão específico (“matar 30 mil”), porque essa é a quantidade estimada de vítimas da ditadura militar na Argentina, implantada com o golpe em 24 de março de 1976, época na qual ele estava na Academia Militar de Agulhas Negras (Aman). Na Argentina, os comandantes militares lideraram massacre sem precedentes contra a população do país, prendendo, torturando, assassinando e “desaparecendo” milhares de homens, mulheres, adolescentes e até bebês, fatos comprovados pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep) e publicados no relatório “Nunca Más”, que serviu de base para os julgamentos – e condenação – dos comandantes das juntas de governo, em 1985.
Diferença fundamental: a Conadep foi criada em 15 de dezembro de 1983, poucos meses após o fim da ditadura militar na Argentina, publicou seu relatório em 20 de setembro de 1984, e em 9 de dezembro de 1985 os principais responsáveis foram condenados. Nos anos seguintes, mais oficiais foram condenados, conforme se conseguia provar seus crimes.
Essa é a questão central desse julgamento no STF: o golpe era para implantar ditadura no Brasil, para “fechar” o que fosse possível (universidades, centros culturais, sindicatos), reprimir ao máximo, e, por extensão, prender, torturar e assassinar pessoas que pensem diferente dos golpistas.
Sim, é disso que se trata: o golpe tentado não era apenas para impedir a posse do presidente e do vice eleitos em 30 de outubro de 2022, era para instalar no Brasil uma ditadura, com tudo de horror que esse sistema de governo significa. Por isso, faz sentido a intenção, entre alguns dos golpistas, de já se adiantarem assassinando o presidente da República e o vice eleitos e o presidente do STF.
Cogitaram dar o golpe porque os golpistas de 1964 não foram punidos, nem tampouco presidentes e comandantes militares da ditadura no Brasil, apesar das muitas provas de prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimentos cometidos por militares e policiais que cumpriam ordens dos comandantes máximos do regime.
Quem se emocionou com a história do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva e de sua família, contada no filme “Ainda estamos aqui”, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2025, talvez não tenha registrado que, assim como Rubens Paiva, mais de 100 pessoas foram “desaparecidas” por razões políticas pela ditadura no Brasil, de um total de 434 que foram mortas – quantidade oficial hoje contestada por especialistas, que consideram ter sido muito maior a quantidade de vítimas.
Durante os 21 anos que durou a ditadura militar (1964-1985) no Brasil, estima-se que foram presas – e torturadas – 50 mil pessoas. Considerando que o Brasil na época tinha metade da população atual, não é exagero imaginar um cenário, de 2025 em diante, de 100 mil presos, caso o golpe cogitado tivesse mesmo acontecido.
Assustam as dimensões dos fatos e possibilidades? A intenção declarada da extrema-direita é liquidar com a esquerda – literalmente. Não é por outro motivo que continuam se armando: há hoje no Brasil um “exército” de dois milhões de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC) – eram 800 mil até jul/23 e saltaram para 1.958.799 em dez/24.
Quando Trump instigou o assalto ao Capitólio, em 6/01/2021, muitos dos seus liderados estavam armados. Ao regressar, em 2025, uma das suas primeiras medidas foi anistiar os criminosos da invasão do Capitólio. Lá, como cá, a impunidade é essencial para golpistas, bem-sucedidos ou não, porque garante que atacar a democracia e quem pensa diferente são crimes que compensam.
(*) Professor, geógrafo, mestre em “Estado, Governo e Políticas Públicas”. Autor do livro “O sucesso da China socialista”.
FONTE:
https://sul21.com.br/opiniao/2025/06/o-golpe-era-para-implantar-ditadura-por-milton-pomar/