Hannah Arendt pensando
Hannah Arendt continua pensando
Filósofa refletiu sobre temas que seguem preocupando: o perigo das emoções na política, a confusão entre fatos e opiniões, a crise da cultura e o totalitarismo. Sua obra vive um autêntico ‘boom’ editorial
Máriam Martínez-Bascuñán 31 may 2020
Hannah Arendt, na Universidade de Chicago em 1966.
© Art Resource / Hannah Arendt Bluecher Literary Trust
Isak Dinesen dizia que é possível suportar toda a dor se a transformarmos em uma história. Algo parecido poderia se afirmar de Hannah Arendt e sua fecunda relação com a teoria política, um campo do saber que reivindicou com afinco e que lhe serviu para enfrentar todas as crises políticas e pessoais dos amargos tempos em que viveu. Hoje, como à época, o vocabulário que utilizou para pensar e narrar o mundo, suas reflexões e essa escrita tão bela, tão sua, nos ajudam a interpretar o que nos acontece, ainda que seja somente como simples anões olhando o mundo no ombro de gigantes. Ela, evidentemente, o foi, e é sempre uma maravilhosa surpresa descobrir que, por trás de uma obra brilhante, também há uma vida que irradia luz. Foi assim, curiosamente, como ela mesma descreveu a seus referentes em Homens em Tempos Sombrios: Isak Dinesen, a apaixonada autora de A Fazenda Africana, para quem relatar histórias era “deixar que se fossem” e encorajava a “repetir a vida na imaginação”; Walter Benjamin, aquele “homenzinho corcunda” de poético pensamento; e seu mestre Karl Jaspers, cuja vida dedicada à Humanität fez com que a luz do público terminasse por “modelar toda sua pessoa”
Foi assim que Arendt olhou e descreveu seus contemporâneos, com a mesma empatia e honestidade intelectual com as que tentou contemplar e analisar as turbulências políticas do século XX. Quem quiser encontrar nela um pensamento sistemático, um corpus teórico ordenado e coerente, é melhor que não leia seus escritos. A originalidade de Arendt está justamente em que seus livros escapam a qualquer classificação. Cada um obedece a um propósito e um assunto diferentes, e neles disseca conceitos com a precisão de um cirurgião e a beleza de quem sabe que a linguagem é um precioso tesouro, escapando de qualquer tentação de trancar seu pensamento em um sistema, incluindo de oferecer uma linha argumentativa que sirva de “parapeito” e “corrimão”, como ela mesma dizia, para construirmos um refúgio tranquilizador onde tudo nos encaixa. Muito pelo contrário, descreveu a atividade de pensar como entendeu sua própria vida, como um risco e a partir de uma inspiração profundamente socrática, compreendida como um exercício que sacode e expulsa rotinas, que nos obriga a coser e descoser nossos pensamentos.
Arendt encarou os assuntos mais complexos com a coragem e a prudência do pensador que os observa de frente e os analisa da distância e com o filtro da reflexão. Em suas obras, ressaltou a importância do julgamento político como essa forma concreta que adota o pensar no mundo da política, e também falou de nossa responsabilidade, da radicalidade do mal e sua banalização, do totalitarismo como argamassa homogeneizadora de sujeitos atomizados, da atividade do pensar e a artificialidade e evanescência da esfera pública, e dessa “brilhante luz da presença constante dos outros”. Não se encolheu diante de nenhum tema: a verdade e a mentira na política, o poder como ação acordada e seu oposto, a atração pela violência. São somente alguns exemplos de tudo o que Arendt se atreveu a pensar de maneira genuína, controversa e incisiva, sempre com voz própria: a única maneira de pensar. Por isso não é casual que hoje suas palavras nos interpelem com tanta força. Seu poder está em sua peculiar forma de abordar os grandes temas, de iluminar seus muitos e paradoxais aspectos, de enlaçar sutilmente conceitos e se atrever a fazer todas as perguntas.
Durante os últimos anos, nos vimos obrigados a voltar o olhar ao livro As Origens do Totalitarismo, onde disseca os pontos fundamentais que explicam essa estranha lealdade consubstancial aos movimentos de massas que os populistas de toda espécie buscam. O exemplo paradigmático é, evidentemente, Trump, e aquelas aterrorizantes palavras que pronunciou em Iowa na campanha de 2016: “Poderia estar em plena Quinta Avenida e atirar em alguém, e não perderia eleitores”. Essa forma acrítica de ser partidário estava relacionada com essa ideia que ele soube ativar em seus eleitores e que Arendt descreveu em sua obra-prima: faziam parte de algo maior do que uma força política convencional; integravam um movimento. Muitos dos fenômenos que descrevem essa era da pós-verdade foram explicados e desenvolvidos por Arendt ao nos falar da adesão inquebrantável aos novos demagogos de seu tempo. Sobrevivente de uma época mais atribulada do que a atual, Arendt soube ver como tais movimentos sempre apresentam sistemas de significado alternativos perfeitamente coerentes, onde o que convence seus integrantes não são os fatos (“nem mesmo os fatos inventados”, nos diz) e sim a consistência aparente daquilo a que nos sentimos pertencer. Já aparece aqui a insuportável carga emocional com a que hoje nos ligamos a nossa tribo.
A autora de Verdade e Política também nos ajudou a diferenciar entre verdades factuais e opiniões, nos alertando que “a liberdade de opinião é uma farsa se não se garantir a informação objetiva e os próprios fatos não forem aceitos”. Dessas observações se destila a imensa importância que Arendt concedeu à esfera pública, esse espaço que permite a existência de um “mundo comum” e sua inevitável conexão com a pluralidade de opiniões e a liberdade humana. Porque somente com a discussão “humanizamos aquilo que está acontecendo no mundo e em nós mesmos, pelo mero fato de falar sobre isso; e à medida que o fazemos, aprendemos a ser humanos”. Arendt nos alertava do risco de preencher esse espaço de uma única verdade, pois qualquer verdade “termina necessariamente o movimento do pensamento”. Assim, pluralidade e liberdade estão sempre juntas com ela, conectadas à esfera pública a partir de seu republicanismo, nesse espaço de aparição que possibilita a autonomia pessoal e política exatamente ali onde convivem vozes dissidentes, levando adiante uma discussão autêntica, capaz de gerar um “mundo comum”. Mas é a informação objetiva que garante que possamos nos pronunciar sobre algo com uma ancoragem no real, fugindo de realidades paralelas e da tentação de levar ao público meras inquietudes privadas. As opiniões só podem se formar com a condição de que existam essa informação objetiva e uma discussão autenticamente plural e aberta; do contrário, ocorrerão “estados de ânimo, mas não de opiniões”. É inevitável pensar na atual quebra do espaço público derivada do absurdo poder das redes, de sua potestade para expulsar as vozes dissidentes e preencher o debate de mera emocionalidade.
A reivindicação do puramente fatual não a fez evitar as perguntas políticas sobre como os fatos do passado afetavam o presente, mas também o futuro. Sua motivação, seu impulso político estiveram caracterizados pelo que ela mesma denominou “amor do mundo”, por nossa responsabilidade para com seu cuidado. Por isso precisamos de Arendt, porque constrói a partir da esperança, transformando-a em categoria política. Hoje, quando parece que todos os males residem no futuro, Arendt nos lembra que, enquanto existirem novas vidas, sempre existirá a possibilidade de “um novo começo”, porque “cada recém-chegado” tem a capacidade de “fazer algo novo”, a faculdade de fazer e manter novas promessas que permitam construir “ilhas de segurança”. Tais promessas são os pactos sobre os quais se edificam as instituições, o marco de referência que permitem desenvolver o jogo de nossa vida em comum. Sem elas, não há jogo e estabilidade possíveis, mas também não, curiosamente, pluralidade, ação e movimento. A ausência de certezas não nos libera da responsabilidade de cuidar do mundo que compartilhamos. Esse é o legado de Hannah Arendt. Talvez não seja um ponto de vista ruim.
LEITURAS
Hannah Arendt. Por Amor ao Mundo. Elisabeth Young-Bruehl. Relume-Dumará.
Nos Passos de Hannah Arendt. Laure Adler. Record.