Império do Medo

Império do Medo

Império do Medo

Frei Betto  14/12/2021



Foto: Raphael Sanz/Cor­reio da Ci­da­dania


Neste mundo des­pro­vido de utopia, senso his­tó­rico e con­fi­ança na re­pre­sen­ta­ti­vi­dade po­lí­tica, o medo ocupa cada vez mais es­paço. As forças con­ser­va­doras in­cutem em muitos tal in­se­gu­rança que, como cor­deiros a serem tos­qui­ados, aceitam trocar a li­ber­dade pela se­gu­rança. Essa do­ença tem nome: eleu­te­ro­fobia, medo de ser livre. Deixa-se de me­lhorar a qua­li­dade de vida ou fazer uma vi­agem de lazer para manter in­to­cado o di­nheiro no banco.

Temos medo do de­sem­prego, da in­flação, da re­cessão. Medo da pan­demia. Medo do go­verno ne­o­fas­cista. Medo do ódio des­ti­lado nas redes di­gi­tais. Medo da ve­lhice. “O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem ca­minho”(Gui­ma­rães Rosa in “Con­versa de bois”, Sa­ga­rana). A toda hora soa o alarme: Cui­dado! A fera está solta!

Nem sempre iden­ti­fi­camos a fera com ni­tidez mas, como ma­nada, dis­pa­ramos em atro­pelos para nos afastar o mais pos­sível do seu al­cance.

Quem é a fera? É o “outro”, o imi­grante que vem roubar nossos em­pregos. É o es­tran­geiro que ameaça sub­verter o nosso es­tilo de vida. É o mu­çul­mano que, por baixo da tú­nica, car­rega um cin­turão de di­na­mites. É o re­fu­giado que obriga o nosso go­verno a des­viar re­cursos para so­corrê-lo. É o ho­mos­se­xual en­ca­rado como pro­míscuo. É quem pensa di­fe­rente e cujas ideias nos pa­recem conter ma­te­rial ex­plo­sivo…

Assim o medo se dis­se­mina pelo país. Pe­netra em nossas casas. Im­pregna-nos a mente, os olhos, os ou­vidos, o ol­fato e o pa­ladar. Medo do ali­mento que en­gorda, do ta­baco que en­ve­nena, da be­bida que em­briaga. Medo de tudo e de todos. Es­que­cemos que a sa­be­doria re­co­menda ter medo do medo.

Cresce a sín­drome do medo. Isso vale para Rio, São Paulo, Nova York, Paris ou qual­quer outra grande ci­dade. Medo de as­salto, o que induz o ci­dadão a tonar-se pri­si­o­neiro de sua pró­pria casa, tran­cada a mil chaves, do­tada de alarme de se­gu­rança, e que­brada, no vi­sual, pelas 
grades que co­brem as ja­nelas.

O medo viaja a bordo do des­co­nhe­cido. O por­teiro do prédio deve exigir iden­ti­fi­cação, o nome é anun­ciado por in­ter­fone, o vi­si­tante con­fe­rido pelo olho má­gico e, por fim, as fe­cha­duras, de ro­liças chaves den­tadas, abertas uma a uma.

Do­ença da moda é a ago­ra­fobia - medo de lu­gares pú­blicos. Teme-se que a praça es­conda la­drões atrás das ár­vores, e cri­anças pe­dintes se trans­formem em pe­ri­gosos as­sal­tantes ao se apro­ximar do carro. Au­menta o nú­mero de pes­soas que pre­ferem não sair à noite, ja­mais usam joias e en­tram em pâ­nico se al­guém se di­rige a elas para per­guntar onde fica tal rua. O homem é, enfim, o lobo do homem. "Quem vive sob o do­mínio do medo nunca será livre", dizia Ho­rácio.

De onde vem tanto medo? Da so­ci­e­dade que nos abriga, mar­cada por de­si­gual­dade e pre­con­ceitos. Se não somos iguais em di­reitos e nas mí­nimas con­di­ções de vida, por que se es­pantar com re­a­ções di­fe­rentes? Como exigir po­lidez de um homem que sente na pele a dis­cri­mi­nação ra­cial e, na po­breza, a so­cial? Como es­perar um sor­riso de uma cri­ança que, no bar­raco em que mora, vê o pai de­sem­pre­gado des­car­regar a be­be­deira na surra que dá na mu­lher? A dis­cri­mi­nação hu­milha, e a hu­mi­lhação gera res­sen­ti­mento, amar­gura e re­volta.

O medo de­corre também das au­to­ri­dades civis e re­li­gi­osas que, na falta de ar­gu­mentos, ate­mo­rizam com ame­aças, bra­vatas, ter­ro­rismo psi­co­ló­gico, evo­ca­ções do demônio e do in­ferno.

O con­trário do medo não é a co­ragem, é a fé. Não apenas re­li­giosa, mas cí­vica, po­lí­tica, utó­pica. Acre­ditar que o fu­turo pode ser me­lhor e di­fe­rente. E co­meçar, hoje, a se­mear os bons frutos a serem co­lhidos no fu­turo.

 

Frei Betto

As­sessor de mo­vi­mentos so­ciais. Autor de 53 li­vros, edi­tados no Brasil e no ex­te­rior, ga­nhou por duas vezes o prêmio Ja­buti (1982, com "Ba­tismo de Sangue", e 2005, com "Tí­picos Tipos")

 

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