Independência do Brasil permanecerá um mito
Sem democracia, justiça e igualdade, independência do Brasil permanecerá um mito
Enquanto existir povos explorados, grupos sociais discriminados e criminosos mandando, celebrações de setembro vão constituir uma enorme mentira
CAROLINA VÁSQUEZ ARAYA - Cidade da Guatemala (Guatemala)
Em vários países de nossa América, ressoam, durante setembro, os proclamas, as homenagens e as festas de celebração dos mais de duzentos anos de uma declaração de independência que cada dia mostra com maior nitidez seus furos. Apesar dos anos transcorridos, ficou patente a fragilidade de nossas estruturas sociais, nas quais se conservou quase intacto um sistema colonial de poder baseado em povos privados de educação, elites possuidoras dos mecanismos legais e jurídicos indispensáveis para garantir sua hegemonia e, como coroamento, em ideologias que a justificam.
Nos têm repetido até cansar que a pobreza é coisa do destino; que mais importante que rebelar-se contra ela, é levá-la com dignidade. Inculcaram no imaginário coletivo – à força de sermões de púlpito – a ideia da resignação diante dos desígnios divinos, como se a miséria e a exploração fossem provas antecipadas para merecer o paraíso. Nos deram uma versão adoçada da História de nossos países na qual dominaram as novas aristocracias locais que, unidas em consenso, criaram à sua medida as normas que regeriam a partir de então e, de comum acordo, repartiram-se todos os privilégios.
O colonialismo de então foi se sofisticando ao longo dos anos e, seu enorme poder, desde o domínio da economia até a ingerência nas decisões e na conformação dos poderes dos novos Estados, conseguiu manter não só a estrutura social, mas também uma atitude de aceitação deste sistema depredador, afastado do propósito de construir autênticas nações independentes e soberanas. No entanto, neste cenário, costumamos passar por alto outros protagonistas de nossa história: as organizações criminosas.
Premunidas de um poder difícil de medir, as organizações dedicadas ao narcotráfico, ao tráfico de pessoas, ao sequestro, ao contrabando dos tesouros nacionais, à lavagem de ativos e à manipulação das leis se infiltraram com pasmosa habilidade em quase todas as instituições de nossos Estados – com especial ênfase nos partidos políticos – mantendo assim sua capacidade de manobra e a impunidade sobre suas operações. Esta é uma realidade diante da qual os estamentos, encarregados de resguardar a paz social e a independência de poderes, são impotentes ou foram já dominados e vencidos.
Maria Hsu - Flickr - O próprio conceito de independência – o qual é aceito como uma realidade sem a menor resistência – requer uma revisão profunda
A independência, sem prejuízo do que significa a imensa pressão de potências estrangeiras sobre nossos governantes, é um mito cada vez mais fraco. As celebrações, tão esperadas por nossos povos, levam em si o selo do silêncio diante dos abusos das castas privilegiadas e seus instrumentos de repressão. O próprio conceito de independência – o qual é aceito como uma realidade sem a menor resistência – requer uma revisão profunda; e como resultado, de um exercício coletivo de reflexão sobre os conceitos e ideias, inculcados desde a infância, sobre os quais se apoia esse velho mito.
A verdadeira independência descansa sobre um sistema autenticamente democrático, justo e igualitário. Enquanto exista povos explorados, grupos sociais discriminados e criminosos mandando, as celebrações da independência constituem uma enorme mentira e uma cara distração que põe em suspenso, por uns dias, esta importante tarefa pendente.
O crime organizado se infiltrou profundamente em nossos Estados.
Carolina Vásquez Araya, colaboradora da Diálogos do Sul na Cidade da Guatemala.
Tradução: Beatriz Cannabrava.