Infâncias e adolescências invisibilizadas
Infâncias e adolescências invisibilizadas: o direito que não existe de fato
17 de dezembro de 2021
Oito estudos mostram quais informações temos e quais não temos sobre o direito à educação de crianças e adolescentes em situação de rua; migrantes; residentes em territórios urbanos em zonas de conflito e violência; no sistema socioeducativo; da reforma agrária; da agricultura familiar; quilombolas; e indígenas
O Brasil vem sofrendo, nos últimos anos, com um apagão intencional de dados. Há, de forma deliberada, um sucateamento dos órgãos responsáveis por produzir dados, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. O ápice dessa situação se reflete na não realização do Censo 2020. Estamos caminhando no escuro quando falamos de planejamento e, principalmente, quando delineamos políticas públicas.
Somada a este cenário está a política de austeridade, com retrocessos frente aos direitos fundamentais, expressa na Emenda Constitucional 95/2016, a política do teto de gastos. Seus efeitos são evidentes com o aumento da pobreza, da violência e dos homicídios contra crianças e adolescentes, e das violações de direitos humanos e, especialmente, da falta de recursos para frear o avanço da Covid-19 em todo o país nos últimos quase dois anos. Este contexto se agrava ainda mais com posturas negacionistas e avessas aos direitos humanos por parte do governo federal.
Para denunciar esse projeto de exclusão nas políticas sociais e educacionais para as infâncias e adolescências e para construir a transformação e a justiça social é que Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará, Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Serviço Franciscano de Solidariedade, movimentos populares de defesa de direitos idealizaram e se juntaram para conduzir uma agenda comum. Para isso, as organizações lançaram a série de estudos “Infâncias e Adolescências Invisibilizadas”.
Estes estudos surgiram com o intuito de diagnosticar o que existe e evidenciar o que não existe de informações sobre o acesso à educação de crianças e adolescentes em maior situação de vulnerabilidade ou excluídas das políticas sociais. Justamente por entender que a garantia do direito à educação não se realiza apenas pela escola, os estudos “Infâncias Invisibilizadas” também trazem dados mais abrangentes para entender esse contexto de omissão, de redução de direitos e de retrocessos na garantia de condições básicas para a dignidade humana e o bem viver.
O conceito de “Infâncias Invisibilizadas” foi uma escolha política e histórica frente a agenda da criança e adolescente no país. Pois a invisibilidade revela um projeto de país que não prioriza grupos e segmentos de diversas infâncias. Os estudos refletem sobre crianças e adolescentes de diferentes contextos, elencados em oito eixos: em situação de rua; migrantes; residentes em territórios urbanos em zonas de conflito e violência; no sistema socioeducativo, em acolhimento e filhos de responsáveis encarcerados; da reforma agrária; da agricultura familiar; quilombolas; e indígenas.
O pressuposto deste trabalho é de que crianças e adolescentes são sujeitos de direito, são prioridade absoluta e, portanto, também são atores sociais imersos em um conjunto de prescrições e interdições que emergem do contexto em que estão situados. Logo, também estão envolvidos por marcadores sociais como classe, gênero, orientação sexual, raça, etnia, território e suas intersecções, sofrendo as consequências do descaso, da discriminação e do abandono dependendo de suas identidades e pertencimentos.
Por outro lado, partimos também da noção de que não existe uma infância ou uma adolescência, mas diferentes infâncias e adolescências. Entendemos que a infância e adolescência não são etapas da vida marcadas pela incompletude ou pela necessidade de tutela e não podem ser reduzidas ao registro da insuficiência. Ademais, evidencia-se que alguns grupos crianças e adolescentes vivenciam diferentes e desiguais processos de socialização e de garantia de direitos.
Esta série de estudos tem no direito à educação seu eixo condutor, considerado porta para a garantia dos demais direitos. No art. 6º da Constituição Federal de 1988, a educação é estabelecida como um direito social, o primeiro listado, reafirmada posteriormente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), à luz da Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 28 e 29), e normatizada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. A educação é apresentada como condição para a qualidade de vida e cidadania:
[…] A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (LDB, 1996).
Ao apresentarmos normas, dados, experiências práticas e exemplos da realidade dessas crianças e adolescentes pretendemos respeitosamente vê-los, ouvi-los e evidenciar suas realidades. Portanto, nosso objetivo é dar visibilidade ao que é considerado invisível, junto com essas pessoas. Mas o que é essa invisibilidade? Para quem essas crianças são invisíveis?
Aqui essa invisibilidade se reflete, sobretudo, na não garantia de direitos sociais básicos, na ausência de informações sobre essas infâncias e adolescências, que são pouco considerados no planejamento, orçamento e na definição de políticas públicas. Mais ainda, devido às diferentes formas de exclusão a que estão submetidos, enfrentam enorme dificuldade para terem seu direito à educação garantido.
Afirmamos aqui que a invisibilidade é uma política de exclusão. Essas crianças e adolescentes são visíveis de fato e invisíveis de direito.
Apesar de reconhecer a negligência do Estado como uma das causas dessa invisibilidade por não implementar estratégias para reverter este quadro, propomos o questionamento dessa via de análise. Isto porque negligente é o mesmo que ser desatencioso, descuidado e, de fato, não é isso que percebemos. As informações sistematizadas nos estudos do “Infâncias e Adolescências Invisibilizadas” demonstram que existem procedimentos, aparatos legais, instituições e equipamentos burocráticos capazes de garantir os direitos dessas crianças.
A palavra “negligente” realiza a crítica do Estado baseada em uma suposta ausência ou omissão, no entanto, sua forma de atuação está mais próxima de uma atuação fantasmagórica: aparece nas ações repressivas e desonera-se nas ações de cuidado e preservação da vida. É nesse sentido que somente é possível pensar em infâncias e adolescências invisibilizadas sob a condição de uma invisibilidade proposital, fruto de uma forma de gestão das populações pelo Estado.
Sob esse prisma, podemos considerar que a negação de direitos de crianças e adolescentes e, consequentemente, seu processo de invisibilização, não é acontecimento aleatório ou episódico, mas inscrito em um conjunto de políticas voltadas para uma direção bastante específica: a de consentir a morte pela vulnerabilização da vida.
A EC 95/2016, as reformas de Estado construídas nos últimos anos[1] e a falta de seriedade no enfrentamento de problemas sociais são exemplos de políticas que refletem uma escolha do Estado de não promover segurança, direitos e vida, como é seu papel, visto que os orçamentos de áreas fundamentais como Saúde, Educação, Assistência Social e Segurança Pública estão contingenciados. Assim, diferentes dimensões da vida seguem precarizadas, contabilizadas nas pautas como “casos” e acumuladas nas margens como destroços de sofrimentos entre os vulnerabilizados e invisibilizados. Os recortes de raça, gênero, deficiência e etários se fazem sentir, em uma sobreposição de opressões.
Por muito que se estude e intervenha, a impressão que sobressai é a de que ainda conhecemos pouco sobre a condição das crianças e dos adolescentes em situação de “invisibilidade” dos grupos sobre os quais trazemos informações nesses estudos e ainda sobre as políticas, programas e serviços a eles destinados no país, nas várias décadas de sua constituição como um problema social.
Uma parte da persistência do fenômeno acontece pela falta de soluções para problemas estruturais da sociedade brasileira, como as desigualdades social, racial, de gênero, de orientação sexual, entre outras. Outra parte está relacionada com as estratégias adotadas nos processos de formulação e implementação das intervenções junto a tais crianças e adolescentes, particularmente com a falta de prioridade e o de refinamento das estratégias de intervenção no fenômeno para evitar sua transformação em problema social crônico.
Queremos chamar atenção para um Brasil injusto e que coloca ativa e historicamente infâncias e adolescentes negras, quilombolas, indígenas, privadas de liberdade, migrantes, de rua, do campo, pobres às margens ou até mesmo fora das leis, dos dados, das pesquisas, das políticas públicas, das notícias, da sociedade. Não poderemos afirmar que os objetivos e princípios de nossa Carta Magna estão sendo respeitados enquanto nossas infâncias e adolescências seguirem invisibilizadas.
E os representantes dos três poderes da República Federativa do Brasil, enquanto “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”, conforme descrito no preâmbulo de nossa Constituição Federal de 1988, devem se sentir envergonhados por violar a proteção e a educação e, muitas vezes, até mesmo ceifar as vidas de tantas crianças e adolescentes que deveriam ser sua prioridade absoluta.
Nós, enquanto pessoas comprometidas ética e ativamente com os direitos humanos de todas as pessoas, sobretudo de nossas infâncias e adolescências, damos aqui mais um passo coletivo para colocar diante dos olhos dos tomadores de decisão deste país a dura, inadmissível, e criminosa realidade de falta de dignidade que vivem nossas crianças e adolescentes. E não mediremos esforços para que suas invisibilidades se sublimem, por meio de políticas públicas com financiamento adequado, em vidas dignas, com presente e futuro, em uma sociedade justa e democrática.
Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, doutoranda em Ciências (IRI/USP), e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Djalma Costa é da Coordenação Colegiada da ANCED/Seção DCI Brasil da Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Anced),e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Eduardo Oliveira é doutor em Ciências Sociais (UERJ) e professor, é consultor da Campanha Nacional pelo Direito à Educação no projeto Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Fábio José Garcia Paes desempenha a função de defesa de direitos e incidência política do Serviço Franciscano de Serviço (SEFRAS) e é integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
João C. Campos faz parte do Coletivo Nacional de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é integrante do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, XXXXX, e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Luana Pommé é do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Marcele Frossard é assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, doutora em Ciências Sociais (UERJ), e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Marco Antonio da Silva Souza (Markinhus) é do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), Coordenador do Projeto Meninos e Meninas de Rua (PMMR), e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Marina Araújo Braz é Coordenação Colegiada do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará), integrante do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, especialista em Estudos Latino-Americanos (UFJF e Escola Nacional Florestan Fernandes), e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Tânia Mara Dornellas dos Santos é assessora do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, cientista política (UnB), e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
Simone Magalhães faz parte do Coletivo de Educação e do grupo de estudos Terra, Raça e Classe do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é integrante do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, representando o MST, e integrante do Comitê Gestor da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas.
[1] Saiba mais: https://campanha.org.br/noticias/2021/10/13/nao-e-crise-e-projeto-reformas-estruturais-que-reduzem-o-estado-restringem-o-direito-a-educacao-mostra-estudo/