Investimento ameaçado
POR QUE O INVESTIMENTO EM ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO PÚBLICA ESTÁ AMEAÇADO?
Em março, o Conselho Nacional de Educação (CNE) revogou parecer que implementava custos mínimos para uma educação de qualidade
“A mensalidade de uma escola privada de SP corresponde a, no mínimo, 3 vezes o que se gasta com um aluno da rede estadual paulista”. É o que afirma José Marcelino, professor de economia da Universidade de São Paulo, para o especial Educação em Disputa: 100 dias de Bolsonaro.
A inversão deste cenário – com um aumento progressivo do investimento na educação pública – parece ficar cada vez mais distante, dadas algumas manobras capitaneadas pelo atual governo.
Em março, o Conselho Nacional de Educação (CNE) anulou um parecer que regulamentava o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), mecanismos que estabelecem padrões mínimos de investimento por aluno para promover um ensino de qualidade.
Embora previsto no Plano Nacional de Educação (PNE), o custo aluno ainda não tinha sido regulamentado. O CAQi deveria ter sido implementado até junho de 2016
Para avaliar o cenário, e como o não cumprimento de parte do financiamento afeta a educação pública, o especial Educação em Disputa: 100 dias de Bolsonaro, entrevistou o doutor em Educação e professor de Economia Universidade de São Paulo, José Marcelino de Rezende Pinto. Marcelino tem experiência na área de Política e Gestão Educacional com ênfase em financiamento da Educação. Confira!
O que é o Custo Aluno Qualidade?
O CAQ é um conceito relativamente simples. Significa definir quanto custa por aluno uma educação de qualidade, considerando como elementos centrais da qualidade: a infraestrutura da escola (salas de aula, laboratórios, biblioteca, refeitório, quadra desportiva, sala de grêmio etc) e equipamentos adequados; uma remuneração e carreira atrativa para todos os profissionais que trabalham na escola; e uma quantidade de alunos por turma que torne eficaz os processos de ensino e aprendizagem. Sempre considerando a etapa (creche, pré-escola, Ensino Fundamental, Ensino Médio) e modalidade ensino (Educação de Jovens e Adultos, Ed. Especial, Ed. do Campo, Ed. Quilombola, Ed. Indígena, Ed. Profissional).
Já o CAQi é a definição da quantidade destes insumos, que devem ser assegurados em todas as escolas do país. É o padrão básico de insumos que toda escola deve possuir, como determina o art. 211 da Constituição Federal. Ou seja, é como o salário-mínimo, ninguém pode receber menos que seu valor.
A animação Zeca Tonho, produzida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, explica de maneira didática como funcionam estes mecanismos:
No mês passado, em uma reunião chamada às pressas, o Conselho Nacional de Educação (CNE) revogou um parecer sobre o CAQ e o CAQi. Como avalia a medida? A revogação impacta a implementação dos mecanismos? Como?
Foi uma atitude covarde do atual CNE. Isso aconteceu porque a Justiça passou a exigir a implementação do CAQi, com base no Plano Nacional de Educação (PNE), tendo por referência o que estava estabelecido em um parecer feito em gestões anteriores do CNE (com outro conselheiros, claro), com base em consultoria de Binho Marques, ex-dirigente do MEC nas gestões Lula e Dilma. Ou seja, o CNE revogou um parecer feito por ele mesmo e se declarou incompetente para definir o CAQi.
Tudo isso para que o Governo Federal não fosse obrigado a ampliar a parcela de sua contribuição ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que atualmente é de apenas 10% dos recursos aportados por estados e municípios, mesmo sendo a União o ente mais ricos dos três.
O efeito imediato é tentar livrar o Governo Bolsonaro das cobranças judiciais a respeito do CAQi. Só que persiste a exigência legal de implementação imediata do CAQi com Base no PNE. O curioso desse processo é que seus dois principais atores, Binho Marques e Maria Helena Guimarães de Castro (que alegam a necessidade de estudos técnicos e financeiros por parte do MEC para a definição do CAQi) foram membros destacados do Executivo: ela presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) na gestão FHC – lembrando que o CAQi já estava previsto no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF) em 1998 -, e ele Diretor da SASE nas gestões do PT que, entre outras atribuições, tinha exatamente a implantação do CAQi!
Ou seja, eles declaram a incompetência do CNE de fazer uma tarefa que o conselho realizou em 2010, e dizem que é encargo do Executivo, sendo que os mesmos tiveram mais de uma década no MEC e não a realizaram! É muito desrespeito com a educação pública brasileira, para não dizer cinismo.
Leia também: http://www.deolhonosplanos.org.br/justica-homologacao-caqi/
E há formas de reverter essa revogação? Se sim, quais?
Sim, todos os atores envolvidos na elaboração do CAQi, capitaneados pela Campanha Nacional da Educação já estão a campo e em breve teremos novidades. Não é a auto-assumida incompetência do CNE que vai inviabilizar o CAQi. Ele é como fênix, porque está previsto na Constituição e é fundamental para garantir a todo estudante brasileiro uma escola com um padrão aceitável de qualidade, o que não acontece hoje.
Quanto o Brasil gasta com educação atualmente? Isto é suficiente?
O melhor levantamento sobre gasto foi feito pela equipe do INEP que monitora o cumprimento das metas do PNE e aponta para 5% do PIB. O PNE, lei aprovada pelo Congresso Nacional, determina atingir 7% do PIB este ano e 10% do PIB em 2024. Ou seja, temos que avançar muito em três frentes: ampliar vagas nas etapas e modalidade sub-atendidas, melhorar a qualidade geral (do CAQi para o CAQ) e pagar a conta dos anos de subfinanciamento, envolvendo especialmente a Educação de Jovens e Adultos. Para se ter um exemplo: a mensalidade de uma escola privada de qualidade de São Paulo corresponde a, no mínimo, três vezes o que se gasta com um aluno da rede estadual paulista.
Qual é o valor atual previsto nestes mecanismos? Ele cabe em nosso orçamento? Quanto falta para que o alcancemos?
As estimativas de implantação do CAQi, com base na matrícula atual, indicam que o governo federal deveria ampliar a sua participação no Fundeb(complementação da União) de 0,2% do PIB para cerca de 1,1%. Para um governo que mais gasta mais de 7% do PIB pagando juros para os amigos de Paulo Guedes (as 10 mil famílias mais ricas do país), como indica o estudo Austeridade e Retrocesso, é plenamente suficiente.
Já os valores do CAQ variam de acordo com a etapa e podem ser consultados no site do Custo Aluno-Qualidade.
Pensando na gestão democrática, você acredita que o CAQi pode influenciar no controle social e no planejamento participativo das políticas públicas municipais de educação? Como?
Sim, pois ele resolve a grande questão: não basta mais dinheiro; é preciso que ele chegue à escola. Ao vincular o gasto aluno com os insumos que devem estar presentes nas escolas (bibliotecas, laboratórios, razão alunos/turma etc) ele propicia à comunidade escolar um mecanismo concreto de aferição se o dinheiro, de fato, está chegando na escola.
Histórico
No mês de março, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNB/CNE) realizou uma reunião extraordinária com o Ministério da Educação e revogou um parecer sobre dois mecanismos de financiamento da educação: o Custo-Aluno-Qualidade-Inicial (CAQi) e o Custo-Aluno-Qualidade (CAQ).
No dia anterior à reunião, quando seu chamado veio à tona, dois apelos ao órgão foram divulgados.
Um deles, de autoria da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, formuladora dos mecanismos, narrava o processo de escanteio da sociedade civil e das(os) trabalhadoras(es) da educação das decisões sobre financiamento e reafirmava a importância de garantir a implementação dos mecanismos para a efetivação do direito à educação no país.
Outra, de autoria de cinco ex-presidentes da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), pedia que o assunto fosse analisado com atenção e alertava o Conselho sobre o risco de revogação dos mecanismos.
Findo o encontro, quando foi noticiada a revogação do parecer, o professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, e a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto, se posicionaram contrariamente à revogação. Ambos avaliaram a revogação do parecer como uma fraude que tinha como fim esquivar o Ministério da Educação (MEC) da responsabilidade de garantir um financiamento adequado para a área.