Justiça inacessível aos servidores
Reforma administrativa torna a Justiça inacessível aos servidores
19 de outubro de 2025
Entre as diversas mudanças inseridas pela proposta de reforma administrativa apresentada pelo Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados, uma das mais preocupantes, sob o ponto de vista jurídico e institucional, é a criação do novo § 11-D do artigo 37 da Constituição. O dispositivo propõe restringir de forma severa o reconhecimento e o pagamento retroativo de verbas a servidores públicos, condicionando-os exclusivamente à via judicial. Essa medida, apresentada sob o discurso de “combate a privilégios” e “racionalização de gastos”, insere-se no eixo de austeridade da reforma — um projeto que, em nome da eficiência e do controle fiscal, acaba por redesenha o equilíbrio entre a autonomia administrativa e a tutela judicial das relações funcionais.
Atualmente, o reconhecimento e o pagamento retroativo de verbas podem ocorrer de duas formas: administrativamente ou por decisão judicial. No primeiro caso, a administração, ao constatar erro ou omissão, pode promover o pagamento mediante empenho e execução orçamentária, sem necessidade de precatório, bastando a existência de título legítimo — como um parecer jurídico vinculante ou decisão administrativa definitiva. Já o regime de precatórios, previsto no artigo 100 da Constituição, é aplicado apenas quando há resistência do Estado e a obrigação é reconhecida judicialmente. Essa distinção reflete a essência da autotutela administrativa, que impõe à própria administração o dever de corrigir seus equívocos sem exigir a intervenção do Poder Judiciário.
Nesse contexto, o novo § 11-D do artigo 37 surge como uma das medidas mais drásticas do pacote. O texto determina que o reconhecimento e o pagamento retroativo de verbas a agentes públicos somente poderão ocorrer mediante decisão judicial transitada em julgado, oriunda de ação coletiva ou individual baseada em precedente qualificado dos tribunais superiores, observados o regime de precatórios e os prazos prescricionais.
Ao eliminar a via administrativa e exigir decisão judicial transitada em julgado — ainda limitada a ações fundadas em precedentes qualificados dos tribunais superiores —, o novo § 11-D transforma a administração pública em mera executora de sentenças, proibindo-a de reconhecer e reparar internamente suas próprias falhas. Com isso, a proposta não apenas extingue a possibilidade de solução administrativa de passivos funcionais, mas também cria um entrave inédito ao acesso à reparação individual, já que a maioria dos direitos reconhecidos na rotina administrativa — diferenças remuneratórias, progressões funcionais atrasadas, reposições de valores ou correções decorrentes de erro material — não se apoia em precedentes vinculantes, mas em fatos concretos e normas específicas. Ainda que existam casos pontuais de distorções administrativas, a imensa maioria desses reconhecimentos serve para reparar irregularidades internas e cumprir o dever de autotutela do Estado.
A inovação, portanto, redefine a própria noção de legalidade administrativa. Ao submeter o reconhecimento de todo direito retroativo à chancela judicial, a proposta enfraquece o dever de autotutela, amplia a litigiosidade e compromete a eficiência do Estado. O resultado é paradoxal: em vez de reduzir custos e racionalizar a gestão, cria-se um sistema mais oneroso, lento e dependente do Judiciário, que afronta tanto os princípios da boa-fé e da economicidade quanto o modelo constitucional de administração pública ainda em vigor.
Restrição é barreira constitucional inédita ao acesso à justiça
A exigência de que a decisão judicial individual se fundamente em “precedente qualificado” introduz um conceito de difícil delimitação e que sequer encontra definição expressa na proposta. Embora se possa supor que o termo faça referência a institutos como a repercussão geral, os recursos repetitivos ou os incidentes de assunção de competência — mecanismos voltados à uniformização jurisprudencial —, o texto constitucional projetado não esclarece o alcance dessa qualificação. A imprecisão é, por si só, fonte de insegurança jurídica: cria-se uma condição de procedibilidade para o reconhecimento de direitos que dependerá da interpretação de cada tribunal, sujeita a controvérsias sobre o que seria, afinal, um precedente qualificado.
O impacto concreto dessa exigência é profundo. A imensa maioria dos direitos funcionais reconhecidos administrativamente decorre de situações específicas — erros de cálculo de adicionais, progressões funcionais atrasadas, diferenças remuneratórias localizadas, falhas de enquadramento — que jamais atingirão o status de precedente qualificado nos tribunais superiores. Ao exigir essa vinculação, a proposta exclui de proteção constitucional justamente os casos mais corriqueiros e relevantes na rotina administrativa. Assim, milhares de situações de erro e injustiça, ainda que flagrantes e documentadas, deixariam de ser passíveis de correção, pois o dispositivo proíbe tanto o reconhecimento administrativo quanto o judicial de tais passivos se não houver precedente qualificado correspondente.
Essa limitação representa uma barreira constitucional inédita ao acesso à justiça. A exigência de precedente qualificado como condição para a própria existência do direito é uma inversão da lógica constitucional: transforma o controle judicial e a autotutela administrativa — garantias do cidadão contra o arbítrio estatal — em mecanismos de exclusão. Ao impor tal restrição, o novo § 11-D ofende frontalmente os princípios da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV), da legalidade, da moralidade administrativa e da eficiência, subvertendo a essência republicana do dever estatal de reparar seus próprios erros.
A ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição é evidente. Esse princípio assegura que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, impondo ao Estado o dever de garantir a todos o acesso à tutela jurisdicional efetiva. O novo § 11-D, ao condicionar o reconhecimento de verbas retroativas à existência de decisão judicial transitada em julgado fundada em precedente qualificado, cria uma barreira normativa que impede o cidadão de sequer provocar o Judiciário quando seu direito não se enquadra nesse filtro. Em outras palavras, não se trata apenas de um entrave procedimental, mas de uma verdadeira negação do direito de ação, pois o servidor ficaria impedido de ajuizar demandas individuais baseadas em fundamentos próprios, distintos de precedentes qualificados.
Essa limitação não encontra paralelo em nenhum outro dispositivo constitucional e subverte a própria ideia de jurisdição aberta e universal. A Constituição admite que a lei discipline o processo, mas jamais que condicione a admissibilidade do direito material à existência de precedente, muito menos que restrinja o exercício da ação judicial a categorias de demandas previamente chanceladas pelos tribunais superiores. O resultado seria a criação de um filtro de acesso que transforma o direito de petição e o direito de ação — pilares do Estado Democrático de Direito — em privilégios de poucos casos padronizados, esvaziando a função essencial da Justiça como via de controle e reparação das ilegalidades estatais.
O § 11-D não é apenas problemático sob o prisma administrativo; é frontalmente inconstitucional por violar o núcleo essencial da jurisdição e subverter o próprio princípio da legalidade administrativa. Ao suprimir a via administrativa como meio legítimo de reconhecimento e correção de erros, o dispositivo impede que a administração exerça seu dever de autotutela e de reparação espontânea de ilegalidades, convertendo o gestor público em mero executor de sentenças judiciais. E, ao mesmo tempo, restringe o acesso à via judicial apenas a hipóteses fundadas em precedentes qualificados, privando o servidor do direito fundamental de ver seu pleito apreciado individualmente. Assim, o texto atinge em cheio o princípio da inafastabilidade da jurisdição — cláusula pétrea que garante a efetividade de todos os demais direitos — e compromete tanto a legalidade quanto a eficiência que a própria reforma diz pretender promover. Um monumental retrocesso institucional, que ameaça a lógica constitucional de tutela do cidadão contra o arbítrio do Estado.