Licenciatura intercultural bilíngue
Formação inédita no RS visa preservar idioma guarani e qualificar educação indígena
Exclusiva para indígenas, a licenciatura tem duração de oito semestres e abriu 30 vagas, das quais sete ainda estão disponíveis por meio de um edital. A formação é oferecida através do Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor) Equidade, do governo federal, que financia uma única edição do curso.
Coordenador do curso, o professor Vítor Jochims Schneider afirma que a formação vai atender alunos vindos de mais de sete aldeias em diferentes municípios do Rio Grande do Sul. “O curso acontece num regime de alternância, que é uma proposta pedagógica muito frequente nos cursos de educação indígena e tem como objetivo formar os sujeitos vinculados aos seus territórios”, explica Vítor. “Tem um tempo na universidade, em que eles ficam alojados no campus. Depois, os alunos retornam para as suas comunidades e seguem desenvolvendo projetos interdisciplinares junto à comunidade”.
Segundo o coordenador, a licenciatura pretende instrumentalizar os alunos para atuarem como professores das redes públicas. A grade curricular abrange disciplinas de políticas públicas e legislação sobre escolas indígenas. O curso vai ser ministrado por professores guarani e professores não indígenas.
Entre os docentes indígenas, alguns têm pós-graduação e outros são mestres de notório saber. Eles vão ensinar saberes da Mata Atlântica, de saúde e infância guarani. “São várias discussões que não são típicas de uma licenciatura tradicional”, diz Vítor.
Para Kuaray, a graduação será uma forma de preservar a língua guarani. “A gente fala nosso idioma, mas não como antigamente. Vai confundindo cada vez mais, até virar mais misturado com português. Os jovens de agora não se importam mais com a própria cultura”, diz. “Essa é uma grande oportunidade para fortalecer o nosso povo”.
Vítor explica que o guarani é um grupo de línguas variantes, pertencentes à família Tupi Guarani. “Assim como a língua portuguesa tem variantes – por mais que num país monolíngue a gente não se dê conta que existe, por exemplo, um português gaúcho bem diferente do português baiano –, existe essa variação nas línguas guarani, que se dá pela dispersão do grupo”, diz.
O grupo guarani é dividido entre Mbya – o mais presente na região Sul, e cujo idioma será abordado no curso oferecido pela UFSM; o Kaiowá, específico do Mato Grosso do Sul; e o Nhandeva, presente na costa de São Paulo.
Em Santa Maria, sede da UFSM, há duas aldeias indígenas: uma guarani e uma kaingang. Vítor relata que, ao longo dos últimos anos, têm surgido parcerias voltadas para projetos de extensão junto a essas comunidades.
“Estou na UFSM desde 2019 e, desde então, tive contato com as comunidades e mais especificamente com a escola guarani. Sempre houve essa demanda para fazer uma formação para professores”, afirma. “Há professores guarani que atuam há muito tempo nas escolas e nunca tiveram a chance de fazer uma formação. Já houve a oferta de uma licenciatura intercultural em Santa Catarina, pela UFSC, mas muitos aqui não conseguem se deslocar”.
Kuaray, que concluiu recentemente o ensino médio na escola da aldeia onde mora, diz que a falta de formação dos professores impacta o ensino. “Eu fico preocupado pelo futuro das crianças, porque eu vejo que falta profissionalismo nas aldeias. Acho que é um bom avanço, essa oportunidade para os próprios indígenas atuarem como professores nas aldeias de forma mais profissional”, considera.
O professor Vítor acrescenta que há uma grande defasagem do sistema estadual na educação indígena: são poucos os professores guarani formados. “Ainda temos muito a avançar, sobretudo porque são poucos os professores indígenas concursados no Estado. O curso vai formar pessoas aptas a prestar um concurso e serem professores efetivos da rede estadual, algo que era difícil de acontecer anteriormente”, ressalta.
Para o coordenador do curso, a licenciatura em guarani é a consolidação do direito dos povos indígenas de desenvolver e qualificar uma educação específica, bilíngue e intercultural.
“Também é uma ocasião em que a universidade vai receber uma língua indígena. Esses alunos falam português como uma segunda língua, às vezes as pessoas não têm essa dimensão de que os indígenas no RS são bilíngues. É muito surpreendente pensar que, depois de 525 anos de invasão do seu território, o grupo mantém a língua 100% sendo utilizada entre seus membros. O curso cria um espaço para que essa língua seja mantida e valorizada”, diz.
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