Limites do Novo Ensino Médio

Limites do Novo Ensino Médio

Os limites do Novo Ensino Médio e as alternativas políticas para a etapa

 

O debate sobre o Novo Ensino Médio (NEM) retornou em função da publicação, pelo Ministério da Educação (MEC), da Portaria 521 de 13 de julho de 2021 que institui o cronograma de sua implementação. Busco argumentar neste texto que a reforma do ensino médio feita em 2017 é problemática em relação a suas premissas, frágil em seus aspectos formais/legais e, ainda, aponto alguns desafios para sua operacionalização. Concluo elencando ações que poderiam, essas sim, ajudar o ensino médio a cumprir suas finalidades definidas no artigo 35 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

A título introdutório, cabe dizer que mudanças curriculares no ensino médio, à luz do trabalho com as áreas do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), já vinham sendo experimentadas em alguns estados e debatidas no Projeto de Lei 6.840/13 da Câmara dos Deputados. Porém, a reforma enviada por meio de medida provisória e que se tornou a Lei nº 13.415/2017 se marcou por um processo aligeirado, falta de diagnóstico e estudos sobre seus impactos e introduziu pontos controversos na legislação educacional.

A premissa central da reforma do ensino médio foi a de que o maior problema da etapa era sua arquitetura curricular. Em que pese haver inúmeros aperfeiçoamentos possíveis em termos curriculares, é bastante ingênuo crer que mudanças dessa natureza irão ensejar transformações significativas na direção de uma maior efetividade do ensino médio. Os problemas estruturais do ensino médio são semelhantes aos das outras etapas de ensino e os casos exitosos de escolas de ensino médio que recebem estudantes mais pobres têm características cuja replicabilidade esbarra na dimensão do financiamento.

Além dessa questão orçamentária, o ensino médio tem lacunas ligadas a formação dos professores, tanto do ponto de vista da titulação quanto da formação continuada para garantir práticas pedagógicas mais efetivas, independente de desenho curricular. Esse artigo mostra o impacto da proporção de docentes sem formação superior compatível com as disciplinas que lecionam sobre resultados escolares, taxas de abandono e distorção idade-série.

No que se refere aos seus aspectos formais, a reforma do ensino médio não cumpriu as etapas do circuito de ação legislativa e em pouco contribui para a implementação das metas do Plano Nacional de Educação, como bem demostra esse excelente artigo. O resultado é um texto de baixa qualidade na LDB, que abre flancos perigosos e que induz os estados a elaborarem normativas no formato “colchas de retalhos”, que podem resultar em modificações formais (complexas e pouco intuitivas) cuja assimilação pelos atores da ponta é problemática.  

O texto da lei traz um teto de carga-horária para o trabalho com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), são 1.800 horas nos três anos do ensino médio. Porém, não há a definição de um piso obrigatório para se trabalhar a BNCC. Essa carga-horária máxima soa estranha à luz da previsão de expansão da carga horária rumo ao tempo integral, em 4.200 horas nos três anos (nas escolas com 7 horas de atividades diárias), apenas 1.800 será dedicada a BNCC? Será razoável?

Sobre o itinerário formativo referente a educação profissional, a reforma tensiona a priorização de uma oferta nos moldes da modalidade concomitante, quando a alternativa mais potente para o ensino médio é a oferta na forma integrada (inciso I do artigo 36-C da LDB). O itinerário técnico deveria ser pensado de forma articulada aos outros itinerários formativos, do contrário sua oferta tende a ser aligeirada, isolada e de baixa qualidade. A lei prevê que para a oferta o itinerário técnico será possível realizar parceria com instituição de Educação à distância (EAD) com “notório reconhecimento” (com uma série de possibilidades de comprovação desse reconhecimento). Essa brecha permite que o poder público se abstenha de investir para qualificar sua oferta educacional, sem entrar no mérito aqui da qualidade da educação profissional EAD e nem abordar o tema da inclusão digital como condição para tal.

Em relação a operacionalização da reforma, mais da metade dos municípios brasileiros têm apenas uma escola de ensino médio na modalidade regular, esse cenário impõe muitas dificuldades para que essas escolas únicas consigam ofertar todos os itinerários formativos. A tese de que o estudante poderá “escolher” carece de respaldo empírico no que tange a garantia de oferta e não pode ser concebida como uma panaceia do ponto de vista teórico.

Não estou convencido de que delegar ao próprio jovem a “escolha” do seu “projeto de vida” aos 16 anos seja algo razoável no contexto brasileiro. Os estudos sobre juventude contemporânea alertam para as dificuldades dos jovens na construção de suas trajetórias em contextos de incertezas e desigualdades, a depender das condições da oferta, tende-se a restringir as possibilidades justamente dos jovens mais vulneráveis que estudam em escolas que terão mais dificuldades de ofertar todos os itinerários formativos. Também não me comovo com o argumento de que a possibilidade de escolha de um itinerário, por si, ampliaria a atratividade do ensino médio. O peso dos fatores exógenos à escola no abandono precisa ser considerado, em especial a necessidade de trabalhar precocemente, em geral na informalidade. Isso significa dizer que sem uma política pública que transcenda a escola e que garanta renda aos jovens vulneráveis, o quadro de evasão do ensino médio dificilmente irá se alterar.

Cerca de 40% das escolas de ensino médio do país ocupam suas instalações e recursos humanos nos três turno, qualquer aumento de carga horária demandará aumento de infraestrutura física e contratação de pessoal, mesmo se esse aumento ocorra em formato híbrido ou assemelhado. Todas as redes terão condição de realizar investimentos e admitir mais profissionais?  O acompanhamento pedagógico dos estudantes durante a ampliação da carga horária será outra demanda presente, como as redes e as escolas irão avaliar esse processo? Que insumos terão à disposição para tal? 

A reforma do ensino médio prevê a possibilidade que se componham “itinerários formativos integrados” (parágrafo 3° do art. 36 da LDB) e permite que o estudante concluinte possa cursar mais um itinerário (se houver vaga), essas devem ser alternativas utilizadas em redes e escolas com limites de recursos humanos para oferecer todos os itinerários previstos.

Outro elemento para o qual a reforma do ensino médio silencia é para a oferta noturna. Hoje, 16% das matrículas do ensino médio são no turno da noite que já tem carga-horária reduzida historicamente, como ocorrerá a ampliação de carga-horária nesse contexto? Tudo é delegado aos sistemas de ensino (estados), sem diretrizes também para a Educação de Jovens e Adultos. Podemos mencionar ainda problemas como a redução do espaço no ensino médio das artes, da educação física, da sociologia e da filosofia, que ficaram atreladas a estudos vinculados a parte da BNCC, bem como o alijamento da língua espanhola como primeira opção de oferta.

O tardio cronograma divulgado pelo MEC em julho de 2021 prevê a alteração do ENEM à luz das diretrizes do Novo Ensino Médio, a primeira aplicação da prova modificada será em 2024, mesmo ano em que os livros didáticos referentes aos itinerários formativos chegarão nas escolas e que a implementação dos referenciais curriculares ocorrerá em todos os anos do ensino médio. Como podemos observar, estamos diante de um calendário confuso e truncado.

Nenhuma das críticas tecidas aqui pode ser confundida com a defesa do ensino médio em seu formato anterior, o intento é mostrar que o caminho adotado na Lei 13.415/2017 tem problemas e que há condicionantes para que a implementação do NEM colha algum resultado positivo. É inegável que, diferente das experiências autônomas de estados antes de 2017, a reforma produziu instabilidades e conflitos políticos, tendo em vista a baixa legitimidade social, em especial no meio educacional, do governo que a propôs. Conforme enfatizam os autores desse artigo que analisa a implementação da reforma do ensino médio em todos estados , “tal contexto dificulta a mobilização de atores e a alta ambiguidade paralisa a capacidade de ação”. Eles salientam também que “a falta de antecipação da contestabilidade e de envolvimento de atores-chave leva os conflitos para outros contextos” e finalizam argumentando que “reformas não negociadas, cujo conflito e ambiguidade não são resolvidos, tendem a gerar efeitos distintos em cada contexto, conforme a reação dos atores locais”.

Há um conjunto de medidas que realmente tem potencial de qualificar o ensino médio e que, independentemente da implementação do NEM, precisa ser considerado pelos gestores públicos:

• Garantia de que os docentes tenham formação na disciplina que lecionam, que tenham formação continuada baseada nas melhores práticas e evidências, que trabalhem apenas em uma escola, que tenham respeitado sua carga-horária de planejamento e um número razoável de estudantes por turma. O docente é a variável central da aprendizagem quando tratamos de fatores inerentes a escola, um professor atualizado e com boas condições de trabalho é fator indispensável para qualificar a oferta educacional;

• Oferta de bolsas de iniciação científica e tecnológica para alunos vulneráveis condicionadas a permanência e conclusão da educação básica. Com R$ 5 bilhões por ano poderia se ofertar uma bolsa de R$ 400,00 por mês para um milhão de estudantes do ensino médio. Para se ter noção da ordem de grandeza desse valor, ele significaria apenas repor o orçamento da CAPES executado em 2015. Com R$ 10 bilhões se poderia pagar uma bolsa ainda mais competitiva em relação ao mercado de trabalho (R$ 800,00) ou duplicar o número de beneficiados, passando para 2 milhões de estudantes. Estimativas realizadas por pesquisadores do Insper, mostram que a evasão escolar produz perdas de mais de R$ 214 bilhões por ano para economia brasileira;

• Ampliação da oferta do ensino integrado a educação profissional durante os três anos do ensino médio, expandindo assim as matrículas em tempo integral. Os Institutos Federais (IFs), que deveriam ser majoritariamente (85% das vagas) para alunos de escola pública, são o que de melhor temos de oferta de ensino médio. Há nos IFs o fomento de ações relativas a pesquisa e a extensão já no ensino médio, além de projetos diversos que acolhem e incluem os estudantes. Muitos argumentam que os IFs são caros para se reproduzir em escala, essa é uma avaliação compreensível diante do cenário de crise fiscal permanente e de baixo crescimento, mas a depender do projeto educacional que se quer e do fôlego que ele terá no futuro, trata-se de experiência que deve se fortalecer e inspirar as redes estaduais. Aliás, com a vedação do pagamento de inativos com recursos do Fundeb, várias redes estaduais devem redesenhar seu planejamento orçamentário, priorizando ampliar a atratividade da carreira docente, a qualificação das instalações das escolas e a oferta própria de educação profissional.

• Aperfeiçoar os processos seletivos dos gestores escolares, transcendendo as eleições, sem renunciar a elas.

• Adotar práticas de gestão escolar e do ensino voltadas para a aprendizagem do estudante. Gestão acompanhada de avaliações de resultados por escola e que decorram em intervenções pedagógicas cada vez mais eficientes. Isso requer continuidade de gestão e clima escolar favorável, demandas muito ligadas ao primeiro item dessa lista;

• Fomento federal mais incisivo, por meio de transferências voluntárias, para realização de projetos que utilizem abordagens curriculares especialmente propícias à vinculação entre a escola e a realidade social e cultural dos estudantes. Exigindo que as experiências sejam documentadas e que haja avaliação dos resultados.

• Fomento a programas de mentoria ou tutoria que aproxime os professores de grupos de estudantes específicos, dando prioridade aos que têm mais chance de abandono escolar. Mentorias temáticas podem ser pensadas pelas escolas e redes de ensino como programas de pesquisa, reforço escolar, trabalho extensionista e de combate a evasão.

• Incentivo para que as redes estaduais adotem programas inspirados nas boas práticas observadas nos estados que melhoraram seus indicadores (não apenas de aprendizagem) referentes ao ensino médio na última década. Cooperações, parcerias e consórcios potencializam o aperfeiçoamento da gestão.

• Instauração de sistemas de avaliação no nível estadual mais orgânicos e dinâmicos. Esses sistemas devem servir para um acompanhamento mais próximo e frequente (por turma, escola, região e rede) das questões da aprendizagem e para monitorar o ainda grave problema da repetência (em especial no 1° ano do ensino médio) e da distorção idade-série.

• Fortalecer e modificar o papel dos órgãos intermediários das secretarias estaduais de educação, intensificando e priorizando o acompanhamento e o apoio pedagógico às escolas, e não se restringindo às ações burocráticas. Esse elo é fundamental para criar nas escolas, junto com as equipes escolares e os seus diretores, ações focadas na implementação das políticas e programas das redes;

• Para que a maioria dessas ações se materialize, o ensino médio precisa se transformar em uma prioridade de gestão para os governadores brasileiros, assim como ser objeto de uma ação coordenada por parte do MEC no sentido do fomento e da indução de qualidade.

Há outras medidas micro e meso políticas que poderiam ser elencadas, temos bons mapeamentos sobre boas práticas em escolas de ensino médio. Contudo, finalizo alertando que esse conjunto de iniciativas acima requer investimentos em educação e participação da União no que tange ao seu papel legal de prestar assistência técnica e financeira. Quando avaliamos a execução orçamentária das subfunções finalísticas do MEC ligadas a educação básica, observamos uma redução de recursos aplicados entre 2015 e 2020 da ordem de 20%. Sem reverter de forma importante essa trajetória, as mudanças do NEM podem ter pouco impacto estrutural ou colher resultados muito heterogêneos, inclusive na direção de ampliar inequidades já existentes.

 

https://gregoriogrisa.com.br/os-limites-do-novo-ensino-medio-e-as-alternativas-politicas-para-a-etapa/?fbclid=IwAR2Qz-DsJuICgFiGTkvKPeSWKwJ7P8aFzYteXSGMyCGyVFYMbZpdfHMmlPg 

 

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Os recursos executados do Ministério da Educação vem caindo nos últimos anos. Mas tudo pode piorar, veja no gráfico a variação da taxa de empenho na comparação do 2° bimestre de 2020 com 2021. Como destruir o planejamento educacional na pandemia. Via @todospelaeducacao

Pode ser uma imagem de texto que diz "Gráfico 1-Variação da dotação e da Taxa de Empenho 2020/2021 ao final do 2° Bimestre 20,0% 10,0% 4,0% 0.0% 2,5% 9,6% 10.0% 20.0% -5,3% 2,8% 30.0% 40,0 -39,1% -50.0% -29,1% -17,9% 60.0% -32,3% -54,9% Ed. Básica Ed. Profissional Ed. Superior Administração Encargos Total Geral VARIAÇÃO DA DOTAÇÃO 2020/2021 VARIAÇÃO DA TAXA OF EMPENHO"




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